CAPÍTULO 10

UM SINAL

27 de Dezembro de 2022.


A ESCOLA FUNDAMENTAL de Santo Antônio era decrépita como todas as escolas do interior costumam ser. As vidraças da sala estavam quebradas, não tínhamos luz e o quadro apresentava-se tão manchado por fita crepe e cola que não seria surpresa imaginar que os professores evitavam escrever nele.

Eu e Pat estávamos juntos nessa, e francamente, já não aguentávamos mais olharmos para as mesmas coisas sempre. As últimas atividades das crianças ainda estavam grudadas na parede, uma miscelânea de papais noéis, trenós e caixas de presentes pintados com muita vontade e entusiasmo. Dois dias preso dentro daquela sala de aula foram suficientes para fazer-me analisar cada cantinho dali, e meu Deus! Quando dei uma olhadela no que escreviam nas carteiras, compreendi que as crianças de hoje em dia não estavam mesmo para brincadeira.

Eu fazia licenciatura em Biologia, então de certa forma o ensino me encantava em algum lugar remoto do meu coração — a bem da verdade, acho que escolhi esse curso em um momento de maluquice. Que outra explicação tinha para encarar pequenas criaturinhas que escreviam atrocidades como se estivessem brincando?

Mas Pat, por mais que tivesse bons 10 anos a mais que aquelas crianças, não saía muito atrás. Nessa manhã encontrou uma caixa de giz e coloriu o quadro verde com frases tão violentas que até a mim constrangiam. O canto direito do quadro fora reservado para um desenho assustador: os dois militares que nos sequestraram, enforcados, com os pés flutuando.

— Isso não vai adiantar de nada. Você sabe, não sabe?

— A ideia é que eles me odeiem bastante — falou ela com aquela voz alta e dura que costumava usar em momentos de estresse.

— Eles já te odeiam bastante, Pat — falei. — Só de você gritar todas as noites e não deixar eles dormirem já é motivo suficiente para te detestarem.

Pat continuou de costas para mim, com o giz na mão, concentrada em desenhar a cabeleira mais feia que eu já vi na vida.

— Tanto faz. Quero que aquela vaca veja isso com os próprios olhos.

Eu inspirei fundo.

— A vaca já foi embora, Pat. E de toda forma, ninguém está se importando com o que você desenha ou escreve no quadro. Eles nem olham aqui pra dentro pra ver se estamos vivos, quanto mais ficar vendo quais as idiotices que escrevemos aí.

Vi os ombros de Pat se erguerem, e um segundo depois ela rodopiou sobre si mesma e se voltou para mim, com aqueles olhos duros chamuscando como uma fogueira, que ela costumava usar sempre que estava raivosa.

— Quer me deixar em paz? Se eu quiser desenhar um demônio com chifres aqui eu desenho. E dane-se! Não tem nada pra fazer nessa merda de lugar!

Me encolhi ante a reatividade dela.

— Tudo bem então. Desculpa.

— Rá! Desculpa! E então faz essa cara de cachorro que caiu da mudança, e eu sou obrigada a perdoar você!
Eu abri um meio sorriso.

— Ei! Você não é obrigada a me perdoar coisa alguma.

Ela atirou o giz no chão, caminhou na minha direção, puxou uma cadeira e sentou de costas para a parede, afastando carteiras.

— Sou sim — e apontou com um dedo para a própria cabeça. — Pela minha consciência. Fazer o que se eu te amo!

Com Pat, sempre era assim. Ela parecia raivosa e embravecida na maior parte das vezes, mas era apenas o jeito dela. A forma casual como dizia que me amava fazia-me arrepiar sempre, como um gratificante presente inesperado que se ganha em dias aleatórios do ano. E naquela declaração vi a oportunidade perfeita para me vitimizar — coisa que eu também adorava fazer.

— Às vezes parece que não ama.

Pat rolou os olhos e chacoalhou a cabeça.

— De novo você vai falar da maldita tartaruga?

Meu sorriso morreu. Não era a intenção falar daquilo. Não mais. Para mim, estava suficientemente superado. Até demais. Sim. Bastante superado.

...

Superado uma ova! Eu me remoia a cada segundo!

— Poxa, Pat. Não é a tartaruga. É tudo o que vem dela, tá ligado? Era o último dia que a gente ia se ver antes das...

— Como se essa cidade não fosse um cisquinho de nada — interrompeu-me ela.

— O último dia que a gente ia se ver antes das férias — completei mesmo assim. — Eu queria um pedido de desculpas.

Pat fungou, e começou a falar enquanto mexia as mãos pelos cabelos, destruindo nozinhos.

— Na verdade, eu não ia te entregar presente algum, mas fiquei constrangida, porque todo mundo ia ganhar. Maldito dia que fui sortear você no amigo secreto do grupo.

Não era usual ter amigo secreto na faculdade, mas nosso grupinho de "amigos" resolveu organizar um. Daqui um instante você vai entender o quanto as aspas foram bem empregadas aqui.

— Que desonesta. Trocou os papeizinhos pra me pegar que eu sei.

— Pra te pegar eu só preciso sorrir, lindinho — protestou ela. — Se não gostou da tartaruga, jogasse fora. Pronto. Não ia ficar triste.

Foi a minha vez de rolar os olhos.

— Você obviamente ia ficar triste.

Ela sorriu, debochada.

— Obviamente, mas ia passar.

— Mas não era pela tartaruga, você sabe. Eu queria um pedido de desculpas, e ganhei um abraço frio e nem uma única palavra.

Pat achou o cúmulo eu ter dito aquilo, como pude ver pela sua expressão indignada.

— E seja grato por ter ganhado um abraço ainda. Não queria olhar na sua cara.

Aquela história ainda fervia por dentro de mim.

— A Aline falou que você tinha beijado outro cara. Queria que eu ficasse como?!

Pat se levantou, com a mão na cintura. Aline era uma colega de turma dela, e a relação delas duas sempre foi complexa. Elas brigavam e se perdoavam, mas Pat falava mal dela pelas costas mesmo assim, com perdão ou não. Mantinham a amizade de mentira pela união do próprio grupo, achava eu.

— É claro que foi a vaca que falou. Rá!

— Porque você chama todas as pessoas que não gosta de vacas?

— Porque são! Mas não mude de assunto! — Ela apontou o dedo indicador para mim. — Quer lavar a roupa, pois que lavemos! Você preferiu acreditar na vaca da Aline a acreditar em mim.

Mordi o lábio.

— Como eu poderia pensar diferente se você simplesmente parou de falar comigo?

— Foi o Fernando quem falou que você não queria mais me ver na frente. Eu que não ia procurar você pra me desculpar por coisa que não fiz. Que ficasse emburrado.

— O Nando, ora! É um mentiroso!

Pat caminhou pela sala, inquieta.

— Você viu só como tudo foi apenas um grande mal entendido? Bastava...

Depois de um instante de silêncio, nós dois falamos juntos:

— ...você ter me pedido desculpas.

Eu e Pat nos encaramos. Ela fez biquinho e voltou para o seu quadro de giz.

— Ah, dane-se! — disse eu, levantando. — Vou mijar.

E fui até o banheiro da sala de aula.


===


O som de pisar veio aumentando pelo corredor da escola. Era um quê metálico com um eco profundo e oco, que perturbava meus ouvidos. De repente, num instante, ouvimos o som parar, e eu e Pat olhamos na direção da porta. Uma sombra indistinta preencheu a fresta inferior dela, e sabíamos que o militar tinha parado ali atrás.

— Vou jogar uma coisa aí — disse ele. Então abriu uma janelinha minúscula que ficava sobre o batente da porta e atirou de lá um saco de papel, que deslizou pelo chão quando caiu. — É pra fazer o teste.

Vi Pat ranger os dentes.

— E se eu não fizer? — perguntou.

— Aí você não sai — falou a voz. — Se ficar negativo, tudo bem. Tá liberada.

Minha namorada rolou os olhos.

— Eles são uns merdas, não são? — ela falou para mim. — Tenho a cara de uma menina minimamente doente, Mercúrio?

— Considerando que você não toma banho há alguns dias...

— Ahá! É fácil falar quando o cabelo é um ninho de corvo in natura — ela me respondeu, sem esperar um contragolpe. — Eles tão com tanto medo assim?

Levantei-me, espreguiçando os braços.

— Penso que sim. E não é um medo sem fundamento. Você viu o que os caras da brasília fizeram.

— Eles estavam malucos — disse Pat.

— Justamente — continuei. — O vírus de agora tá deixando o povo agressivo, eu acho. Encontrou algum caminho pra chegar no cérebro. Consegue imaginar, Pat, que isso às vezes nem considerado ser vivo é? E olha o transtorno que está nos dando!

Pat me olhou, desinteressada.

— Hum...

— Acho que o Exército tá caçando essas pessoas infectadas e violentas. Tipo, pra parar o contágio, tão prendendo a galera aqui. Igual eu e você.

Vi uma espécie de surpresa passar rapidamente pelo rosto de Pat, mas ela voltou a fixar os olhos no chão, tornando-se introspectiva mais uma vez.

— Minha mãe tava infectada — Pat recordou-se.

— Sim — concordei eu, meio sem jeito. — Eu me lembro.

— Eles me levaram por isso — concluiu ela. — E levaram você por estar comigo.

As coisas encaixavam-se na minha memória, peça por peça.

— Mas, a sua mãe...

— Não estava violenta — disse Pat. — Não. Muito pelo contrário. Estava amuada. Quieta. Cansada. Como qualquer pessoa doente fica. E mesmo assim, os canalhas mataram ela. Mataram.

Lembrei do demônio saltando para a mata atrás da casa de Pat, e não consegui evitar um arrepio.

— Comentei com você sobre a criatura que eu vi sair da sua casa, um pouquinho antes de...

— Mais ou menos — falou ela. — Você disse que viu o Diabo.

Bufei.

— Não, não disse. Eu disse que vi um demônio. É diferente.

— Diabo, demônio... Qual a diferença?

— Não faço ideia, mas é diferente. Tanto faz. Te juro, Pat, aquilo era uma criatura diferenciada. Se era um homem, eu sou cego.

Pat olhou para a janela, lembrando.

— Pelas costas, era muito homem. Mas não o vi no rosto, como disse antes. Estava vestido com uma lona preta até na cabeça.

— Eu me lembro. Vi ele espreitando o seu quintal quando passei na frente pra ir na casa da tia Mônica. Foi por isso que voltei pra lá. Achei muito estranho.

— Eu não vi nada. Já estava deitada para dormir. Mas quando fui perceber... já era tarde demais.

Mordi os lábios.

— E como...

— Ah, deixe. Outro dia.

— Tudo bem.

— Então ótimo.

— Ótimo.

Caminhei até o saco de papel e o rasguei. Lá estavam dois testes rápidos.

— Francamente! — exclamei. — Esses militares são burros? Um teste de anticorpos, ora!

— O que tem? — perguntou Pat, arriscando agarrar uma das caixas.

— O que tem é burrice, Pat. Anticorpo é só depois de uns 8, 9 dias de contato. Não posso acreditar que não tenhamos um PCR pra fazer aqui!

Pat não parecia estar entendendo muita coisa.

— Então, se a gente fazer...

— Vai dar negativo — respondi. — Certeza.

Vi um sorriso maníaco surgir no rosto dela.

— E então vamos poder zarpar fora desse cativeiro. Enfie logo esse cotonete no meu nariz, Mercúrio. Nunca isso aqui fez tão bem na minha vida.


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