Capítulo 68 - Quem é Cristal?

Quem é Cristal?

Marcela

— Aí o cara meteu o pé na porta do Thales com tudo e saiu putinho. Bem estilo hétero topzera quando descobre que acabou o whey antes do treino e começa a andar como se tivesse assadura? — Andreia me contou e eu limpei as minhas lágrimas, não conseguindo parar de rir por um segundo que fosse — e aí ele ainda teve a pachorra de apontar o dedo pra Rê e falar algo no parecido com "empresa ridícula, pessoas ridículas, projetos ridículos" — ela tentou imitar, fazendo um beicinho com a sua voz falsamente grossa que me fez cair no chão de tanto que meu abdômen estava doendo — e saiu batendo o pezinho que nem uma criança da pré-escola, sabe?

Eu sabia que as coisas não tinham acontecido exatamente daquele jeito, porque a Gisele já havia me inteirado do barraco que aconteceu na empresa na tarde de ontem, porém eu deixei que a Deia me divertisse com a sua versão, que com certeza era muito mais emocionante do que a original.

E havia algo nisso tudo, em saber que a Renata fez tudo isso por mim, que o Thales e o Fernando compraram essa briga e que, finalmente, finalmente, eu nunca mais precisaria ver a cara de Matheus Kaiser de novo... era como se eu fosse Atlas e o peso do mundo acabasse de sair das minhas costas.

Era engraçado como um dia poderia mudar a sua vida. Tanto para o mal quanto para o bem e hoje, exatamente neste dia, foi um dia que tudo mudou para melhor.

— Aí, depois disso tudo, o Lucas apareceu com a patinha... você já tinha notado que ele parece um Golden? Gali disse que a Sâmia ouviu esse apelido um dia e eu não consigo mais deixar de querer fazer carinho na cabeça dele pra ver se ele abana o rabo — ela me contou e esse foi o meu fim, porque eu nunca mais conseguiria parar de rir depois disso.

Ou olhar para o Lucas sem imaginar um Golden Retriever foférrimo com a língua pra fora.

— Você quer ver o Lucas balançando o rabo? — eu repeti a sua pergunta e ela tombou a cabeça no meu sofá, engasgando e cuspindo uma parte do seu chá no meu tapete. E um pouco escapou pelo nariz.

Meu Deus, a decadência!

Isso porque nem estávamos bebendo álcool.

Seria possível ela morrer afogada sem estar na água? Porque ela estava com claros sinais de afogamento, tanto que eu comecei a bater em suas costas para ajudá-la, porém ela apenas me empurrou para longe, reclamando que eu havia acabado de deslocar uma de suas costelas com a força que eu havia usado — Marcele ficaria orgulhosa.

— De maneira canina! — ela se defendeu, ainda tentando recuperar o seu fôlego.

— Lucas é um cachorrão, então? — eu complementei arqueando minhas sobrancelhas para cima apenas para provocá-la, vendo o seu rosto ficar vermelho de tanto rir e de vergonha por ter dito aquilo, o que tornava tudo muito mais divertido — será que se você pedir para ele fingir de morto, funciona?

— Meu Deus, Marcela, eu vou te amar pro resto da minha vida se você falar isso pra ele! — ela ajoelhou no chão e segurou minha mão, quase em um pedido informal de matrimônio — eu te ofereço meu primogênito por esse momento, se você fizer isso na segunda.

— Tentador, tentador — eu fiz um sanduíche das nossas mãos e ela me olhou em expectativa.

— Se você não fizer, quem poderia fazer isso? O povo tem o direito de saber a verdade! — ela juntou seus lábios em uma expressão que pedia e implorava que eu a ajudasse naquele mistério nada misterioso.

— Um dia quem sabe, mas essa segunda não vai dar. Thales me repassou uma bucha na Ponte de Navegantes-Itajaí, aí eu viajo para lá na segunda e volto na quarta de noite se tudo der certo. Deve ser algo... — eu continuei falando, empolgando-me com o e-mail que ele havia me mandado no final do expediente de sexta, porém eu vi no olhar de Andreia que ela não estava muito animada que eu desvirtuei o assunto — e nem precisa de tanto pra assustar o Lucas. Aposto que é só falar grosso que ele começa a chorar — eu dei de ombros e olhei para o chá que havia sido esquecido em minha xícara fazia uns bons minutos.

Eu estava começando a me perguntar se era uma ótima ideia beber mais uma xícara ou se era uma ideia incrível.

Ótima ideia incrível, com certeza! — só que minha bexiga se contraiu e eu notei que mesmo depois de umas três xícaras eu ainda não havia ido ao banheiro e talvez fosse a hora, mas eu não queria ser a primeira e acho que Andreia estava com o mesmo dilema.

— Se você falar grosso, possivelmente metade da CPN começa a chorar. Tipo no dia da prancheta. Épico. Maravilhoso. Você fez o seu nome, mocinha! — ela deu de ombros e eu revirei meus olhos, porque ela adorava me lembrar dessa história sempre que estávamos juntas, mesmo que a verdade não fosse nada parecida com o que ela narrava.

Eu poderia muito bem apenas mandá-la a merda, como ela já estava acostumada com a minha delicadeza, mas eu não queria, porque ela havia vindo me visitar mesmo depois de todas as mensagens e ligações ignoradas e... e eu acho que pouquíssimas pessoas me entenderiam como Andreia Ramos entendia — que veio com o kit completo de "por favor, não me mande embora, porque eu trouxe comida e chá", então eu a apenas a deixei entrar e ela entendeu o jogo da noite: deixar rolar.

E a coisa era que a Deia era incrível neste jogo, apenas me contando sobre as Desventuras da PNC (um trocadilho não muito gentil que as pessoas apelidaram a empresa, mas agora eu não conseguia mais pensar na CPN como uma empresa Pau No Cu, pelo menos não depois da minha conversa com a Renata e de saber que naquele mesmo dia ela havia realizado o distrato dos Kaiser. Por mim. Por acreditar em mim) e aceitando que eu tinha histórias que preferia guardar comigo. Ou melhor, se ela eu tinha certeza de que ela queria saber todas, porém havia respeitado que eu não queria falar sobre aquilo. Ainda. Quem sabe um dia.

Por enquanto eu estava apenas aproveitando a tranquilidade e paz de espírito que uma noite muito bem dormida me proporcionou.

— Apostou na mega sena? — ela me perguntou do nada, antes de se levantar lentamente, quase como se esperasse que fosse perder o equilíbrio e cair. Infelizmente isso não aconteceu, mesmo que eu estivesse torcendo para que ela caísse madura no meu tapete.

Espera. Não. Ela estava com uma xícara e eu não queria ter que comprar uma nova.

Espera... ela poderia se machucar também e... sangue no meu tapete?

Por favor, Deia, não caia!

Eu estendi minha xícara na direção dela, porém ela apenas me segurou pela mão e me puxou para cima, claramente me dizendo que ela faria mais chá para nós duas, porém que ela não faria aquilo sozinha.

Pelo jeito ela e Gali haviam enchido a cara na noite anterior e ela não conseguia nem suportar a menção de álcool a sua frente.

— Claro. Que não! — eu lhe disse e ela rolou seus olhos dramaticamente — é o maior engodo da modernidade achar que você vai ganhar isso daí. Sabe quais as chances reais de você ganhar?

— Má, a resposta correta é "nossa, Deia, ainda não, mas o que você faria com quinze milhões?" — ela me contou com paciência a conversa que havia montado dentro de sua mente e eu empurrei o seu quadril com o meu, aceitando meu papel.

— O que você faria, Andreia Ramos?

— Compraria um castelo e seria a princesa que eu nasci para ser — ela me explicou, colocando mais água em minha chaleira, abrindo vários pacotes de chá e fungando cada um até escolher um que se chamava "Kleber".

Um nome extremamente exótico para um chá, se me perguntassem, mas eu havia aprendido a não duvidar do poder da Fada do Chá. Só que o nome estranho foi o que me deixou ainda mais curiosa para bebê-lo e eu acho que talvez aquela fosse a ideia desde o começo.

— Você já é a Princesa do Orçamento e do meu coração — eu lhe disse e ela fingiu se emocionar com a minha declaração.

Nós continuamos falando sobre a Andreialândia, o seu reino para quando ganhasse a mega sena e eu fiquei impressionada que ela já havia até mesmo criado suas primeiras proclamações reais:

Aperol Spritz seria um item básico de alimentação;

Todos os andreienses (pessoas que morassem em seu reino) comemorariam o seu aniversário como feriado nacional;

Haveria uma semana festiva chamada "Semana Orçamentária" onde as pessoas teriam aulas de finanças para conseguirem cuidar da sua conta bancária;

Farofa seria tombado como patrimônio real;

O povo teria direito ao Vale-Livro para comprar um livro uma vez por mês por conta da realeza...

E eu estava quase torcendo para ela realmente ganhar na mega sena, porque eu adoraria morar naquele lugar.

Então ela apenas me entregou uma xícara de chá prontinha e quentinha, porém nós duas ficamos encarando a cor meio clarinha, parecendo xixi.

— Isso daqui não está muito apetitoso, né? — ela fungou a bebida e foi ler a embalagem — mas que porra é Tília? Tem cara de camomila, mas eu odeio camomila — continuou resmungando consigo mesma e eu tentei não me engasgar enquanto bebia um novo e fervente gole daquele elixir.

Eu nunca fui fã de chás, porém, depois que a Andreia se tornou a campeã de drinks bonitos e gostosos da CPN, com uma caipirinha de umbu-cajá invicta até hoje desde 2016, eu confiaria em qualquer coisa que ela colocasse na minha mão, inclusive o álcool de posto — felizmente este momento da nossa amizade ainda não havia surgido.

— Você odeia pêssego, então está sob observação — eu pontuei, sorrindo contra a minha xícara.

— Bem colocado — ela comprimiu os lábios, quase orgulhosa do que eu havia dito, brindando nossos chás em harmonia para depois escutar o barulho da cerâmica em contato com a outra, quase como se esperasse o ressoar delicado de um cristal — e você faria o que com a mega sena?

— Nunca joguei, sinceramente — eu andei até a sala e me perguntei se eu deveria pegar mais algum docinho para complementar os doces & chás que a Andreia trouxe, porém eu senti uma leve preguiça de ter que andar dez passos e voltar para a cozinha.

— Mas se você ganhasse? — ela me incentivou e eu me joguei no chão, vendo o líquido amarelado se aproximar perigosamente da borda da xícara e eu apenas me dar por vencida, porque meu tapete estava a um farelo de bolo de oficialmente precisar ir para lavanderia, então era melhor apenas mandá-lo de uma vez.

— Eu acho que primeiro colocaria meus avós em uma casa de repouso decente enquanto reformo a casinha deles de hoje. Ela tem muitos defeitos como alguns degraus altos, janelas não muito boas para ventilação, o norte da casa fica no estacionamento e não na sala... — eu comecei a falar e a minha amiga apenas atirou uma trufa na minha direção e me acertando no olho!

Meu deus, eu poderia ficar cega por uma trufa de chocolate!

Será que eu precisaria usar óculos de proteção com ela?

Quando foi que aquela trufa apareceu?

— Tá, Santa Marcela de Noronha, mas e para você? Impossível que você seja uma pessoa tão boa que esteja pensando apenas nos seus avós, enquanto eu quero ser uma princesa — ela me pressionou e eu fechei meus olhos, tentando parar e pensar no que eu realmente queria.

Como diria Lúcifer, qual era o desejo mais profundo do meu coração?

Só que aquela resposta era tão estupidamente óbvia que eu inspirei fundo, porque o meu maior desejo, sonho, amor, ou como quer que eu chamasse, tinha nome, sobrenome, RG e um olhar que me fazia esquecer tudo — inclusive o motivo para o qual nós não estávamos nos falando naquele exato segundo.

Acho que tirar a variável Matheus Kaiser dos meus pensamentos fez com que eu conseguisse respirar melhor e enxergar o mundo com uma nova perspectiva, como se nem tudo fosse tão ruim quanto eu pensava e as coisas não necessariamente sempre tenderiam a dar errado.

Eu acho que eu só comecei a notar que nem tudo estava perdido, quando a Andreia, que eu havia ignorado a semana toda, apareceu com um sorriso e cheia de carinho. Eu nem sabia que eu ainda merecia esse tipo de gente em minha vida e lá estava ela, com um abraço, e me fez sentir tão bem que eu demorei mais de um minuto inteiro para me separar dela.

Ok, então eu tinha que pensar em outro sonho, algum que estivesse mais palpável e perto do meu alcance e que, efetivamente, dinheiro poderia me comprar.

— Acho que eu levaria minha avó para ver neve — eu sorri, lembrando-me da nossa conversa no cruzeiro e senti um travesseiro atingindo a minha cara — Andreia!

Chata! Cadê a vontade de ir para uma noitada em Vegas e encher a cara e fazer merda? Para de ser uma boa pessoa! Estamos falando de quinze milhões e não do bônus de março! — ela me implorou com a voz ficando mais e mais aguda, aí eu comecei a rir do seu desespero.

— Tá bom, então eu quero... — eu cocei meus olhos com meu punho e bufei alto — um jatinho particular para ir e voltar de Vitória sem trânsito ou problemas de aeroporto. Pronto, melhor?

— Muito! Viva o capitalismo! — ela brindou consigo mesma e eu joguei o travesseiro nela de volta, nocauteando o cookie que ela estava quase comendo — ei!

— Regra dos cinco segundos? — eu ofereci e Andreia apenas deu de ombros, aceitando aquela desculpa, mesmo que meu apartamento jamais chegasse aos pés do chão límpido do Leandro... — se você tivesse que fazer um vídeo para entrar no BBB o que diria? — eu perguntei na maior aleatoriedade das nossas vidas e ela estreitou os olhos para mim.

— Que eu sei transformar o flexível em estático, claro. E não estamos falando apenas de orçamentos — ela piscou para mim e eu dei um gritinho animado, adorando — sua vez!

— Eu... consigo erguer prédios. Físicos e metafóricos — eu arqueei minhas sobrancelhas em sua direção e ela começou a bater palmas como uma foca esganecida.

— Praticamente um boliche às avessas. Ao invés de derrubar, você... — ela começou a falar, porém parou quando a porta de casa se abriu e Retúlio entrou como o furacão que era, cheio de barulho e grito e novidade e carinho.

— Um absurdo essa foto! — ouvi Romeu resmungando enquanto olhava para Túlio, mesmo que seu olhar não estivesse completamente amigável, ainda havia amor ali. Muito amor. Só não para a foto que era absurda, aparentemente — eu tô me sentindo até sufocado com tanta hétero topzerice!

— Para de falar assim, ele ainda é o Cristal! — Tutti apontou a sacola que tinha em mãos para o seu marido como se ela fosse uma arma e eu sorri, porque eles estavam felizes e bem e se amando... e isso era tudo o que eu queria para o meu Romeu.

Eu tentei não reparar sobre quem eles estavam falando, mas não era qualquer um que tinha o apelido de Cristal, principalmente para Retúlio e... ok, eu não estava olhando minhas redes sociais, porque eu tinha medo de descobrir que ele havia me bloqueado, então não poderia opinar com propriedade sobre a foto em questão, mas se fosse dele com aqueles braços pós academia...

Então os dois nos viram.

Quero dizer, viram a Andreia primeiro.

Eu já comentei que Retúlio amava a Andreia desde o meu aniversário do ano passado quando ela me fez jogar beer-bong com vinho e eu passei a noite imitando uma borboleta e abraçando o meu livro de "Introdução a Engenharia Civil, livro I" que pesava mais de cinco quilos enquanto brincava de dar estrelas? Pois bem, eu achei que era mentira, mas os vídeos estavam ali para comprovar aquela façanha.

— Preciosa! — Eles foram em direção dela e os três caíram no meu tapete em um abraço que... não deveria ser meu? Não era eu a amiga triste e chateada e que precisava de amor e carinho? — quanto tempo! Como você está? Como foi a viagem? — e eles começaram a falar um por cima do outro, mas eu acho que mesmo que eu tivesse dormido mais de dezoito horas entre ontem e hoje, eu ainda não estaria conseguindo acompanhar muito bem a conversa pela leseira.

Sim, dezoito longas e preciosas horas em que eu acordei para fazer xixi e comer um resto de macarronada, pronta para dormir mais quando a campainha tocou e a Andreia apareceu, e é isso.

Foi minha melhor noite de sono em tanto tempo que quando eu acordei, fiquei alguns minutos olhando para o teto apenas tentando entender como eu havia conseguido apagar sem pensar em nada. Nenhum sonho. Nenhum pesadelo. Nada. E possivelmente foi isso o que Romeu viu nos meus olhos e por isso que ele me deu um longo e aliviado sorriso.

— E como está o namoro? A Má contou que você e o astrônomo estão mega firmes indo pra uns seis meses, né? — Túlio bateu seus cílios de maneira meiga, mas eu sabia que aquilo era apenas para arrancar as fofocas da Andreia.

— Eu e a Deia estávamos passando muito bem no teste de Bechdel, ok? Não estávamos falando de homens até agora — eu revirei meus olhos na direção deles, porém Tutti apenas fez um beicinho desentendido, então eu suspirei e continuei — sabe aquele teste que as pessoas fazem em filmes? Em que duas mulheres estão conversando e o assunto quase sempre é homem ou relacionamento? Neste caso não era.

— A gente falou do Golden — minha colega apontou, pensando que falhamos.

— No quesito profissional e canino, né? Acho que não conta — eu busquei aquela brecha dentro da minha mente.

— Mas agora não são mais duas mulheres conversando, porque nós chegamos, então o teste foi cancelado — Romeu sorriu e eu desisti, porque não era como se eu quisesse ter razão. Pelo menos não daquela vez.

— Ah, e a gente também falou do hétero top que a gente odeia — ela revirou seus olhos dramaticamente e eu ri contra o minha xícara — mas acho que aquilo não é homem, né? Não deveria ser considerado, pelo menos.

— Ah, o Cristal? — o pediatra indagou com a maior calma do universo e se a Andreia não havia entendido que Cristal era uma pessoa antes, agora ela havia.

E é claro que ela queria saber mais.

Claro.

— Quem é Cristal? — minha amiga perguntou e eu olhei para o casal maravilha apenas esperando que eles soubessem como responder aquela pergunta sem estragar tudo, porque eles que haviam nos metido naquela furada.

Quem é o Cristal? Bem, sabe o Edu, arquiteto sustentável de olhos azuis e sorriso hipnotizador? Então, esse mesmo.

Essa era a resposta mais simples e direta, só que eu não queria pensar nele e os seus grandes e brilhantes e cristalinos naquela noite, não quando eu estava sorrindo e me divertindo e curtindo uma vibe indescritível com a Andreia, algo que não fazíamos há meses — culpa completamente minha — e me sentindo apenas... leve.

Eu, também, não queria ter que explicar a ela o motivo para Romeu praticamente ter fundado um clube do "eu atropelaria Eduardo Senna com um patinete elétrico" e tentar angariar membros para onde quer que ele fosse, mesmo que eu tivesse garantido que nós não o odiávamos, estávamos apenas magoados. Tristes. E talvez de coração partido, mesmo que eu sentisse que eu mesma o havia partido — ou talvez fosse mútuo, mas isso não mudava a realidade de que nós não estávamos mais juntos.

E aí eu senti uma arritmia cardíaca que gerou uma dissonância dentro de mim. Era como se meu corpo estivesse trabalhando em um ritmo e meu coração tivesse ligado o alerta Eduardo, cantando um novo momentum sempre que eu notava que ele estava por perto, fazendo um calor se espalhar do meu peito até as pontas dos meus dedos dos pés.

Era engraçado, porque sempre que eu pensava nele, um sentimento quente surgia no meu peito, ou quando eu esbarrava com uma foto nossa na minha galeria do celular, ou quando eu escutava a sua risada pela empresa.

Eu queria me desvencilhar dele, mas era quase biologicamente impossível. Ele já fazia mais parte de mim do que eu mesma e toda essa coisa começava quando eu apenas olhava para um chiclete jogado na rua ou via a parede laranja-terrosa da minha sala ou me deparava com o seu shorts de pijama embaixo do meu travesseiro e...

Não dava para apenas não pensar em Eduardo Senna e esse era o problema. Esta era a raiz de todos os meus problemas porque, quando eu começava, nunca era um pensamento único. Eu desviava e derivava e me perdia e voltava. Eu mergulhava em um lago de lembranças e eu não conseguia apenas me lembrar de uma. Eu queria todas, só que... era complicado.

Olhar e não poder tocar.

Querer e não ter.

Amar e não ser correspondida.

— Ele é... hum... sabe? Da Má — Rommi tremeu na base e ele me lembrou o Theodore de Alvin e os Esquilos, pois suas perninhas estavam literalmente tremendo enquanto olhava para o seu grande amor em busca de um resgate.

— Tipo um rolo, mas mais sério, só que não tão sério assim. E acabou. Bilateralmente? No fim, a Cela tá solteira de novo — Tutti complementou e eu senti meu queixo caído, porque ele foi um profissional em dizer tudo e nada ao mesmo tempo.

Nem eu havia entendido o que ele queria dizer e eu era uma das partes envolvidas.

— Quando foi que você começou a namorar? Quando você teve tempo para isso? — Andreia me questionou, empurrando o meu ombro com indignação e surpresa, o que eu acho que foi um bom sinal, não é? Significava que ninguém tinha mesmo desconfiado de nada.

O que era completamente o meu plano desde o princípio.

No entanto, agora que eu estava mais calma e com o coração mais em paz, eu parei para pensar nas palavras de Eduardo quando brigamos, chamando o nosso rolo de segredo sujo e eu não consegui evitar um suspiro, porque... realmente, era um segredo. Mas não foi sujo — pelo menos não para mim.

Será que foi porque eu quis ser discreta demais que ele pensou que eu não gostava dele? Que eu estava com outra pessoa? Que aquilo não significou nada para mim? Será que se eu... não, Marcela, não faz isso. Não entra na estrada dos "e se...", porque ela nunca vai te levar para um lugar bom.

Já foi.

Acabou.

E o meu coração doeu com a realidade daquela frase, porque a verdade era que eu amava todas as pessoas que estavam naquela sala, só que eu queria mais uma. Queria dormir em seus braços, acordar com seus beijos, mandar uma mensagem quando o dia estava ruim e apenas saber que se em algum momento eu precisasse, ele estaria a uma ligação de distância — assim como eu estaria a um suspiro de socorrê-lo quando fosse necessário.

— Celinha, se você estiver pensando na pessoa que você não deveria pensar, eu vou te dar uma sapatada — Romeu me ameaçou e eu pisquei algumas vezes ao tentar relaxar a minha expressão que estava, possivelmente, a um suspiro de ser dramaticamente sonhadora.

Aí eu notei que, de fato, Romeu Sampaio estava com o seu sapato em mãos, olhando-me com uma acusação clara e uma vontade de me acertar na testa para ver se arrancava o rapaz da minha mente na marra.

— Por isso vocês são tão amigos! Você joga pranchetas e ele, sapatos — Andreia fez a associação, me entregando uma piscadinha discreta que teria me matado se estivéssemos jogando Detetive — agora eu só tenho que descobrir o que jogar nas pessoas para entrar nesse time. Getúlio, qual é o seu dom de arremesso?

— Tutti joga pirulitos — eu apontei com meu queixo na direção dele, e, como resposta, o pediatra tirou um do bolso do seu casaco e atirou na minha barriga como prova de que eu tinha razão.

— Acho que o jeito vai ser jogar grampos de cabelo nas pessoas, porque eu tenho um estoque disso lá no meu porquinho da CPN — ela mexeu em suas madeixas, confirmando que elas ainda estavam firmemente presas com os metaizinhos.

— Normalmente os grampos somem e não se acumulam — eu estranhei.

— Bem, se ele some de algum lugar, tem que ir para outro, né? Não é como se eles entrassem em um buraco de minhoca e fossem parar na época dos dinossauros — ela disse com tanta simplicidade que eu me perguntei quantas vezes ela havia usado aquele argumento antes e porque ele fazia tanto sentido.

— É oficial, vocês são as pessoas mais chatas do universo com esse papo de pranchetas e grampos de cabelo. E eu pensando que quando vocês duas se reuniam era para falar sobre dominação mundial e como transferir o cérebro para um computador antes de morrer — Rom se sentou ao meu lado e eu tombei minha cabeça em seu ombro, sentindo que meu pescoço estava em um ângulo estranho, porque ele era um pouco mais baixo do que...

— Ah, essa foi a pauta da primeira xícara, a gente já tem o cronograma todo pronto se quiser ver — Deia gracejou mexendo o seu nariz de um lado para o outro, o que era o primeiro sinal de que ela estava ficando levemente cansada.

— Eu amo essa mulher, Cela, entenda que ela tem que vir aqui mais vezes — Tutti retirou mais um pirulito do bolso e o enfiou na boca — eu ainda não descobri qual o sabor do pirulito azul.

— Câncer, provavelmente — o seu marido comentou com pouco caso, sendo brutalmente chutado pela sua cara metade.

— Diabetes — eu e Andreia respondemos juntas e a gente deu um high five estranho que pegou apenas metade da mão de cada uma.

Então Romeu roubou minha xícara como era de praxe e tomou um gole com toda a intimidade que nós havíamos criado ao longo dos anos.

— O que estamos bebendo? — Tutti pegou a xícara da mão de Rom e tomou outro gole — isso tem cara de Deia, então parabéns, Preciosa.

Como foi que a Andreia, que os conheceu por uma noite embriagada, virou "Preciosa" e eu, que era a madrinha do casamento deles e possivelmente dos seus futuros filhos, era apenas a "Celinha"? E vamos combinar que Celinha dava a impressão de que meu nome era Célia e eu tinha cinquenta anos.

Eu não sabia o que fazer com aqueles dois, sinceramente.

— Sabe o que a gente tem que fazer agora? Ioga! — ela saltou do chão e enfiou uma aula de ioga na minha televisão, retirando o meu chá de três pares de mãos que não estavam muito contentes assim com aquela ideia — primeiro a gente treina o corpo e a mente, depois alimenta o corpo!

— Eu não sei se você é tão preciosa assim — Romeu murmurou embaixo da sua respiração, porque até mesmo ele já havia reparado que se ele reclamasse, ele seria o primeiro a ter que fazer uma posição estranha, jogando a perna para cima e... como meu braço ficaria ali embaixo?

Vendo que seu público não estava muito motivado assim, ela resolveu me usar como cobaia e me fez imitar a "postura do arco" que estava mais para um banco invertido e eu tinha certeza de que o estalo da minha coluna não estava previsto e não era natural.

Tutti começou a rir de mim, porém este foi o seu erro, porque ele foi o próximo, tendo que sair da posição sentada que ele se encontrava e segurar o pé — o dedão para ser mais exata — com a mão estendida e... bem, ele caiu.

E feio.

E isso fez tudo valer a pena, então eu comecei a gargalhar.

Só que aí foi a minha vez de novo...

Depois de duas quedas do Romeu tentando colocar os pés em cima das coxas — sim, ele havia caído sentado —, o interfone tocou e ele mesmo, após duas idas ao banheiro e mais cinco xícaras de chás caprichados da Andreia, começou a berrar "shiu" para todos nós, completamente perdendo a linha de que o "shiu" deveria ser para silenciar as pessoas e não ser um berro noite adentro!

— Diminui o som, por favor! — eu pedi, pulando os sapatos do corredor e vendo que Tutti foi o único que havia me escutado, porque ele com certeza era o menos inspirado nas aulas de Ioga entre as três fadas madrinhas que haviam descoberto o glitter do meu último bloquinho de carnaval e jogando nos cabelos.

Novamente, zero álcool envolvido.

É, o tapete ia para a lavanderia.

Será que dava pra levar o apartamento inteiro também?

Eu arrumei o meu cabelo por hábito e sorri contra o telefone, porque eu já havia ouvido dizer que quando você sorria enquanto falava, as pessoas conseguiam notar, o que era algo ótimo se eu fosse levar uma bronca por barulho.

— Alô? — eu tentei dizer de maneira casual e gentil.

— Marcela? Aqui é o Agenor — meu síndico amado e venerado me chamou e eu gelei, porque eu ainda não tive vergonha na cara de ir falar com ele e me desculpar depois de chamar o seu bigode de "gaivota cor de pomba", de acordo com... bem, é.

Ok, era oficial, eu era péssima em tentar não pensar em Eduardo, porque ele simplesmente não saía da minha cabeça!

Era como se a minha mente não tivesse entendido que tinha que parar de ficar me lembrando dos pequenos detalhes. Dos sorrisos entre nossos monitores, das figurinhas trocadas, dos toques nada acidentais e dos sussurros noite adentro — isso se eu pensasse apenas em coisas físicas, mas não era apenas isso. Era muito mais. Era... era a maneira como ele fazia com que eu me sentisse com a sua presença. Era como se eu fosse invencível só porque ele disse que eu era. Era como ele me olhava antes de uma apresentação, me dizendo que eu conseguiria sem que ele dissesse nada. Era como ele me beijava e eu sentia que mesmo que nossos lábios nunca mais se separassem, ainda sim não seria tempo suficiente.

E eu sentia falta até mesmo do manjericão da pizza ou do suco de couve, ou seja, eu estava perdidamente apaixonada por Eduardo Senna e não sabia o que fazer com esse sentimento completamente inoportuno, afinal de que me adiantava amar alguém quando eu já não poderia mais estar com ela?

Eu deveria ter percebido que o amava antes, ou ter dito o quanto eu gostava dele todos os dias, ou simplesmente ter me entregado e não apenas ter dado doses homeopáticas de carinho, como se ele não merecesse o frasco inteiro.

Eu me sentia tão estúpida por ter dito que... ele odiava nossos projetos. Não foi isso o que a Gisele disse e eu sabia, mas eu estava apenas machucada, confusa e completamente desiludida e agi errado com a pessoa que menos merecia aquilo.

Só que se fosse apenas este o motivo da nossa briga (ele odiar os nossos projetos) era uma situação, mas não era. Não pra ele, pelo menos. Não quando ele achava que eu estava com outro ou que eu tinha vergonha de ser vista com ele — o que era um absurdo, porque a pessoa vil e sem coração que havia feito aquilo com ele era... oh.

Eu era Ágata.

Meu Deus.

Ele achava que eu estava fazendo exatamente a mesma coisa que a Ágata e tudo estava...

— Entendeu? — eu ouvi o Agenor indagar e percebi que eu havia ido muito longe e não havia prestado um mínimo de atenção em suas palavras.

Sua voz estava abafada, porque tudo o que eu escutava era o retumbar do meu coração contra meu peito, sentindo que a qualquer momento ele iria estourar e eu começaria a cantar como a Gabriella em High School Musical em um solo dramático e cheio de olhares apaixonados-desapaixonados.

— Hum, desculpa, mas você poderia, por favor, repetir, por favor? — e eu me dei um tapa na testa por notar que eu havia pedido "por favor" duas vezes, ainda tentando me acalmar.

Ágata?

Da última vez ele ficou mais de três anos sem nem ao menos trocar uma palavra com ela.

Será que ele faria isso comigo?

Era por isso que ele não me olhava na empresa?

Mas ele havia me mandado uma mensagem!

— Apenas... é bom ouvir um pouco de barulho, Marcela — ele me disse e cerrei minhas sobrancelhas, querendo entender a pegadinha que havia ali e tentar diminuir o volume dos meus pensamentos — o seu apartamento estava com muito silêncio e eu fiquei preocupado se você estava bem.

Eu acho que eu sorri antes de pensar em sorrir e isso valeu a noite inteira.

Agenor Soares estava me dizendo que sentia falta do meu barulho?

Acho que este era um daqueles momentos que você sentia que havia completado uma lista imaginária de coisas que precisava fazer antes de morrer que você nem ao menos sabia que havia montado.

— Eu estou bem, obrigada. Tive uma semana complicada, mas já passou — eu apoiei meu corpo contra os azulejos da cozinha e respirei fundo, sentindo que minhas mãos já não estavam mais tão agitadas quanto antes — obrigada pela preocupação. De verdade.

— Fique bem, mas lembre que o horário tolerável de barulho é até às dez — ele me recriminou, porque já havia passado da meia-noite fazia muito tempo.

— Desculpe, eu pago essa multa sem atraso — eu dei um riso contido, sentindo meu celular vibrar continuamente contra o meu bolso, porém eu apenas o coloquei em cima da mesa da cozinha, porque provavelmente era apenas o tio Cristiano tentando marcar um churrasco para comemorar que a tia Vanessa finalmente havia topado trocar a televisão da sala de casa.

Ainda era aquela de tubo, um trambolho, então eu entendia o motivo da comemoração.

— Multa? Hoje é só uma advertência apenas — o senhor disse depois de uma tosse seca.

— Chá de alho e mel ajuda a garganta — eu comentei com presteza, pois ele estava sendo um anjo comigo e eu queria mesmo ser uma pessoa melhor com ele.

Aí o Romeu caiu de novo e o chão tremeu.

Amanhã. Eu seria uma vizinha melhor, amanhã.

— Obrigado, vou fazer. Espero que goste de Bee Gees — e, assim, ele desligou.

Eu estava prestes a me perguntar o que ele quis dizer com aquilo, porém a música do andar debaixo surgiu alta e imponente, preenchendo todos os cômodos da minha casa com Stayin' Alive como provavelmente eu já havia feito muitas vezes com ele — só que neste caso eu apenas continuei sorrindo e voltei a me encontrar com meus amigos.

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Quem está curtindo a Maratona não oficial de CEM manda um coração aquiiiiii <3

Marcela admitindo os seus sentimentos pelo Edu é tudo o que a gente não sabia que queria, mas tava precisando demais!!!

É tão bom ver essas interações leves dela com a Andreia (PERFEITA) e Retúlio (MAIOR ENTIDADE DE CEM), porque estávamos precisando demais destes momentos! E O SEU AGENOR PREOCUPADO COM A NOSSA MÁ? Quem se derreteu também????

Para quem perguntou: nosso grupo de whats ainda existe e está vivíssimo com teorias, spoilers e conversas aleatórias (desde pets, faculdade, família e as vezes time de futebol também), então se quiser embarcar no grupo mais maravilhoso do wattpad, manda mensagem que a gente envia o link!

Não esqueçam da estrelinha por esse capítulo que é tudo o que a gente queria: a Má feliz de novo <3 E não esqueçam de contar o que estão achando e o que vocês acham que ainda vai acontecer hihi

Beijinhos, 

Libriela <3

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