Capítulo 65 - Acho que não vai dar
Acho que não vai dar
Marcela
— Bom dia, Má — eu ouvi a voz do Valter atrás do meu corpo e eu fingi um sorriso antes de desviar meus olhos do reflexo do meu rosto no espelho do elevador, mas eu acho que nem com aquela tentativa de arreganhar os dentes em um sorriso, eu consegui aparentar estar menos acabada.
Sinceramente, as bolsas dos meus olhos tinham bolsas.
— Bom dia — eu falei com a voz arranhada, porque era isso o que acontecia quando você achava que do dia para noite seu corpo funcionava à base de etanol.
Não sei nem como eu ainda estava viva, porque o motorista do Uber errou a minha rua duas vezes e eu tive certeza de que aquele era o meu fim. Só que depois ele acertou, então eu consegui chegar até o meu apartamento em paz, tomei um banho e eu simplesmente... peguei um copo d'água e fui até a minha sacada, encarando as poucas luzes ainda acesas, sabendo que o sono não viria e que eu não estava animada por dormir de qualquer maneira.
Eu amava o Eduardo?
Aquele pensamento não saía da minha mente, porque, desde o momento que aquela revelação surgiu, era como se todo o restante fizesse sentido. O carinho que eu tinha por ele, como o seu sorriso era meu sol particular e que eu nunca me cansaria da sua risada. E isso também explicava porque o meu coração continuava doendo tanto apenas por pensar nele e mesmo assim eu colocava uma de suas blusas esquecidas em casa depois do banho apenas para ficar mais perto do seu perfume, porque isso era tudo o que me havia restado. E, assim como o restante, eu entendi porque eu apenas não conseguia parar de pensar mesmo sabendo que doía.
Era isso o que era amar e não ser correspondido? Porque era uma bosta.
Eu sabia que a gente nunca deveria ter misturado as coisas. Eu sabia, mas eu não consegui resistir, porque quanto mais eu tinha dele, mais eu queria ter, nunca me satisfazendo com um toque ou um beijo ou uma transa, porque eu queria mais. Eu queria tudo dele. Eu queria ele. Eduardo Senna, arquiteto sustentável.
Só que eu não poderia ter nada dele, porque não dava. E agora não era mais apenas uma questão dele não gostar de trabalhar comigo ou odiar nossas construções — porque lá no fundo eu acho que ele gostou de alguma coisa, pelo menos —, mas era saber que durante todos esses meses ele achou que eu não sentia nada por ele. Que eu o estava usando? E na primeira oportunidade, ele achou que eu estava com outro — ok, eu comecei, mas eu pedi desculpas por ter errado e ele... ele não.
E todos esses sentimentos doíam. Todas essas coisas que eu estava guardando no peito que eu não sabia mais como eu conseguiria conter isso tudo dentro de mim estavam prestes a transbordar.
Existiam tantos corpos celestes no universo e porque eu, justo eu, sentia que estava carregando o peso do mundo nas minhas costas? Será que as estrelas sofriam como nós? Será que quando nós morrêssemos e nossa matéria virasse poeira intergaláctica, elas saberiam um décimo de tudo o que passamos?
Por que a gente se colocava em posições de tanto sofrimento se no fim, quando a vida acabava, a dor também acabava? Qual era o sentido de tudo?
Por que Saturno tinha anéis e os outros não? Eles não ficavam com ciúmes?
E Plutão? Ele não ficava revoltado de estar sempre entrando e saindo da lista de planetas?
Justiça por Plutão!
E eu só notei que havia amanhecido quando meus olhos estavam pesados e eu quase não conseguia mais mantê-los abertos, contudo meu despertador tocou antes que eu finalmente conseguisse me convencer a dormir.
Sete noites sem dormir e contando, mas como eu poderia dormir? Dormir era para aqueles com a consciência tranquila, para os que não olhavam para o seu quarto e sentiam que havia espaço demais, e para quem sabia que iria acordar mais feliz do que quando foi dormir.
Eu fechei meus olhos, sentindo uma leve tontura.
— Você está meio pálida — Valter comentou para mim, segurando-me pelo cotovelo quando eu me apoiei na parede de metal do elevador — mais do que normalmente, quero dizer — e ele percebeu o que disse quando eu arqueei minhas sobrancelhas — não que você seja pálida, porque não é. É tipo uma cor de leite. Meio off-white.
— Eu entendi, sério — eu dei um meio sorriso e coloquei meu cabelo atrás da orelha — eu só... não ando dormindo muito bem e acho que meu corpo tá me cobrando isso agora.
— É por causa do negócio de ontem? — ele questionou com leveza e eu dei de ombros, porque era mais fácil deixar que ele acreditasse naquilo do que lhe contar a verdade. Toda a verdade — se serve de algo, eu acho que o Marcos que errou. Ele deveria ter validado os cálculos. É o trabalho dele, sabe?
— Já foi, Valtinho — eu respirei fundo e usei o apelido que Andreia sempre o chamava, não querendo falar realmente sobre isso.
— Eu sei é só que... — ele levantou uma das suas mãos e mostrou um copinho de café — te comprei isso daqui. Fiquei sabendo que é o seu preferido. Com canela.
Eu acho que demorei mais do que ele havia suspeitado que eu iria demorar para pegar o copo de suas mãos, porque eu me sentia estranha com aquele gesto, afinal era o Valter e ele era um amor, só que ele nunca foi um amor comigo. Ele tinha medo de mim, não tinha? Ou algo tinha mudado e eu não notei?
— Obrigada — eu murmurei baixo, sentindo um sorriso involuntário subir pelos meus lábios, colocando minhas mãos contra o copo e sentindo o calor do líquido praticamente fervendo contra os meus dedos antes de olhá-lo de novo — de verdade, obrigada, mas não precisava.
— Não é questão de precisar, Má. É muito bom trabalhar com você. Eu acho que nunca aprendi tanto quanto com você e eu acho que nunca te disse disso, mas você precisava saber — ele me deu dois tapinhas no ombro — e eu sei que você não precisa de um elogio meu para saber disso, mas eu precisava te contar que você é uma engenheira foda pra caralho — e saiu quando a porta do elevador se abriu.
"Engenheira foda pra caralho"? Mas quem dizia isso era o Eduardo, não era? Eles conversaram sobre mim? Será que isso foi antes da briga? Possivelmente, porque agora eu acho que ele não deveria ter tantas palavras boas sobre a minha pessoa.
E isso quase balançou minhas convicções do que eu tinha que fazer hoje, como a mensagem de Eduardo que eu ainda não tive coragem para responder, porque... o que eu diria? "Oi, acabei de descobrir que eu te amo, então como ficamos"? Não, provavelmente ele pensaria que eu era ainda mais louca do que já achava. Por isso eu apenas... não fiz nada.
Eu acho que demorei um segundo para sair do elevador, tomando um gole do líquido daquele copo como se fosse energia pura — e de certa forma era, pois ele estava cheio de cafeína com frescuras.
Assim que eu coloquei a minha bolsa em minha mesa, não foi necessário ser um gênio para saber que todas as pessoas estavam olhando e falando sobre mim, especulando sobre minha vida e qual a próxima cagada que a ex-estrela da CPN estava prestes a fazer.
Eu respirei fundo, buscando...
Não. Não busquei ninguém.
Eu nem ao menos loguei no meu computador, apenas deixei minha bolsa ali e fui até a sala da Gisele com o meu copo de café, engolindo mais alguns goles de coragem líquida e cafeinada antes de bater na sua porta, ouvindo um leve "pode entrar" antes de abri-la.
— Má, querida, como você está? — ela me perguntou quando eu fechei a porta atrás do meu corpo e eu agradeci que a sua sala não era de vidro, porque eu não queria mais me sentir um peixinho no aquário — não responda, a pergunta foi tola, desculpe. Senta.
Ela apontou para a cadeira à sua frente enquanto arrumava a agenda em cima da mesa de maneira milimetricamente calculada e eu aceitei, então tomei mais um gole do meu copo, só que ele não me caiu muito bem.
— Gi, eu queria falar sobre algo com você — eu comecei, tentando não olhar para ela, porque eu tinha certeza de que ela conseguia me analisar como um scanner se eu apenas mirasse suas íris por dois segundos e eu queria tentar passar por este discurso sem grandes emoções.
Eu não aguentava mais emoções.
— Fique tranquila, Má, eu já falei com o Thales e mandei um lembrete que gritar com coleguinha é inaceitável e agora ele vai ter que fazer um curso online de reatividade — e ela soltou uma risadinha quando eu levantei meus olhos na direção dos dela, pois eu conhecia muito bem aquele curso.
Eu tinha feito mais de sete vezes, quase como uma reabilitação. E, na teoria, eu tinha a nota máxima, o que não exatamente havia marcado que eu havia me tornado uma pessoa menos reativa.
— Então hoje você pode focar no seu dia que ele vai falar com você em breve e... — ela continuou falando e eu apertei um pouco o papelão do copo, soltando a tampinha dali de cima sem querer.
Ok, agora ou nunca.
— Eu acho que a minha trajetória dentro da CPN acabou, Gi — eu externalizei aquela frase que estava queimando meus olhos desde a noite anterior e tentei dar um sorriso para ela mesmo que eu tivesse certeza de que ela não iria sorrir de volta para mim — eu acho que estou pronta para novos desafios. Fora daqui. Então eu gostaria de me desligar.
Gisele não era o tipo de pessoa que falava sem parar, porque ela era ótima em escutar e sempre nos mostrar que ela realmente ouvia tudo o que falávamos e estava levando aquilo em consideração, mas naquele momento o rosto dela era uma tela em branco, com seus lábios levemente entreabertos e um vinco que eu nunca vi em sua testa antes. Eu não sabia se ela estava me escutando ou se havia dado curto circuito.
— Desligar? — ela me perguntou com calma e eu ouvi o barulho da sua perna tremendo atrás da mesa.
Minhas mãos estavam suando quando eu assenti.
— Demissão? — ela indagou de novo, como se quisesse confirmar que eu não estava falando apenas do meu computador.
— Sim, demissão, Gi — eu confirmei enfaticamente com o sorriso mais falso que consegui arrancar de mim mesma, mas eu logo o matei, porque meus lábios começaram a tremer e eu pisquei rápido para não chorar, porque foi no momento que aquelas palavras saíram do meu corpo que eu notei que...
Eu não queria ir embora.
Eu amava aquele emprego apesar dos apesares.
Só que não dava mais. Havia acontecido tanta coisa nos últimos dias que eu não sentia que conseguia permanecer ali. E não era apenas Eduardo Senna. Era... era eu mesma. Era Matheus Kaiser. Eram os boatos maldosos. Eram os erros de projetos.
Parecia que o mundo estava me expulsando dali e eu simplesmente não conseguia me forçar a ver os sinais.
— Ok, eu preciso apenas formalizar aqui — Gisele me respondeu e girou o seu corpo bruscamente para o lado, derrubando sua caneca com todas as suas canetas coloridas no chão. Por sorte o carpete amorteceu a queda e a caneca não quebrou — deixa no chão, tá tudo bem, eu só preciso... — e ela apontou para o seu computador e começou a digitar freneticamente.
Ela disse que não precisava arrumar nada, mas precisava, sim, porque sua sala era um antro da organização, então eu apenas me ajoelhei no chão e comecei a pegar uma a uma com calma, sentindo minha visão um pouco embaçada e o meu estômago ronronar baixinho, avisando-me que ele estava com fome depois de... quando foi que eu comi mesmo? Eu havia almoçado ontem? Senão...
Café serve como alimento? Ouvi dizer que uma cerveja de trigo era o mesmo que um pão francês, mas acho que não exatamente substituia o pão de verdade, né?
Aí a porta da sala abriu subitamente e eu tentei me levantar, apenas batendo minha cabeça na mesa da Gisele e quase desistindo de sair do chão.
Ai que dor.
— Marcela Noronha, que história é essa de demissão? — Renata Pinheiro me perguntou assim que eu me levantei, colocando as canetas da Gi em cima da sua mesa e arrumando os cabelos do meu rosto para tentar ajeitar minha roupa que estava completamente torta.
Eu poderia até tentar entender de onde a Renata sabia disso, mas a Gisele estava olhando com aqueles seus grandes e culpados cílios na nossa direção, então era quase óbvio que ela espalhou a fofoca em tempo real.
— Rê, eu estou buscando novos... — eu tentei dizer, porém ela franziu os seus lábios pintados de vermelho sangue e eu me perguntei se era do sangue das pessoas que tentavam se demitir. E se logo eu me juntaria aos demais.
— Se você falar desafios, eu vou dar na sua cara — ela apontou o seu dedo em riste na minha direção e eu olhei para o RH para que ela dissesse algo, porém a Gisele apenas deu de ombros, deixando-me sozinha ali.
Eu nunca vi aquele lado de Renata Pinheiro e eu fiquei assustada pela minha vida.
— Ela pode falar assim comigo? Não é assédio moral? — eu indaguei em voz alta, querendo apenas confirmar que a Gisele estava escutando o mesmo que eu, mesmo que a palavra que começava com A quase não saiu dos meus lábios.
— Você recebeu uma proposta? Foi da Heitor Alberto Construções? Ou do Juvenal Amadeu Restaurações? — ela continuou avançando na minha direção e eu recuei até estar encurralada contra a mesa de madeira — seja lá qual for a proposta deles, eu cubro. Não faça isso, Marcela. Você tem...
— Não tenho um futuro brilhante aqui — eu a interrompi com força antes que ela terminasse o seu raciocínio, sentindo um assopro contra a minha nuca que sempre vinha antes de um beijo e... minha pressão baixou.
Eu me apoiei na mesa da Gisele antes de cair para trás, sentindo um calafrio percorrer a minha coluna e os meus lábios secarem. A sala deu um pequeno giro e eu precisei respirar fundo para notar que Renata não havia se multiplicado em quatro para conseguir me fazer ficar — ou matar — com mais facilidade.
— Má? Você está bem? O que aconteceu? — a loira me perguntou, abanando uma folha de papel na minha direção com rapidez — você está bem? Seu rosto...?
— Minha pressão caiu — eu senti minhas pernas mais firmes no chão, porém Renata estava apenas me olhando com a sua expressão um pouco menos assassina e um pouco mais investigativa, o que eu não sei se foi uma troca boa.
— Marcela, o que está acontecendo? — a engenheira-mor me perguntou com calma e eu apenas arrumei meus cabelos enquanto umedecia os lábios — foi por causa de ontem ou aconteceu algo a mais?
— Não é nada, Rê, eu só... — eu tentei dizer, mas as palavras não saíram de mim, porque eu não fazia ideia do que estava fazendo. Eu não fazia ideia de como começar — eu só queria formalizar aqui que eu...
— Eu acho que não vai dar — ela me respondeu, enrolando seus dedos contra o meu pulso para me desencostar da mesa da Gisele que ainda nos olhava com curiosidade e um leve susto — primeiro que essa queda de pressão tem nome: fome. E o seu rosto cadavérico tem sobrenome: sono. Então eu vou te perguntar mais uma vez e desta vez eu espero que você seja sincera, Marcela. O que está acontecendo?
Eu abri a minha boca, olhando no fundo os seus olhos negros como a asa de uma graúna e eu quase falei, porque eu me sentia fraca e cansada e eu só queria acabar com tudo aquilo para tentar seguir em frente. Só que mesmo assim as palavras se enrolaram na minha garganta antes que eu pensasse no que eu poderia dizer.
Então a porta da sala de Gisele foi aberta e Galileu apareceu ali com um sonho na boca, quase engasgando por ver que eu e Renata também estávamos no cubículo, e a nossa expressão não era uma das mais amigáveis possíveis para as nove e vinte da manhã.
Aí ele saiu correndo dali como se tivesse feito algo ilegal, mas, novamente, eu estava exausta e com fome, o que me deixava com uma tedência de enxergar coisas que não necessariamente eram daquela maneira.
— Vamos comer algo, ok? — minha gestora me informou, não deixando muito espaço para questionamentos — Gi, pega a bolsa da Má, por favor? Tá livre para um brunch?
Gisele não precisou ouvir a palavra "brunch" duas vezes para sair correndo da sala e ir atrás da minha bolsa esquecida em cima da minha mesa enquanto minha chefe me levava pelo braço até a catraca — e é óbvio que metade da empresa estava vendo aquilo.
Será que agora eles diriam que eu estava seduzindo a Renata? Olha, uma mulher daquelas...
Eu tentei resistir, mas daria tanto trabalho que eu só fui.
⟰
Depois de comer dois pães na chapa e tomar quase um litro de suco de laranja, eu me sentia mais forte e disposta a lutar pelo meu posicionamento de me desligar da CPN — algo que eu tinha certeza de que era mais simples do que realmente estava sendo e não ocorria em um brunch e sim apenas com uma papelada e olhares magoados.
Bem, os olhares magoados estavam rolando por todo lado, então acho que eu estava indo pelo caminho certo.
Nós estávamos em uma padaria na esquina da CPN, porém como era sexta-feira e as pessoas trabalhavam naquele horário, o local estava praticamente vazio, o que permitiu que Gisele fizesse a festa nos docinhos do cardápio.
Eu não fazia ideia de que ela era tão formiguinha assim.
— Então — eu comecei, limpando minha boca com o guardanapo e vendo que as duas estavam me observando com um olhar coordenado para me julgar. Com certeza aquilo fazia parte de algum treinamento online que eu havia faltado, porque o Sandro tinha o mesmo olhar — sobre meu desligamento...
— Não rola, Má — Renata me respondeu com um sorriso que eu quase acreditei ser sincero, mas cinco anos ao seu lado me ensinou que ela sabia mascarar bem suas intenções.
Ela poderia me mandar a merda, porém, se estivesse sorrindo, eu apenas agradeceria pelo elogio.
— Rê, por favor, não faça isso ser mais difícil do que é — eu pedi, invocando a força do pão na chapa para que eu conseguisse me manter firme, porque minha voz havia voltado a falhar — eu preciso deste novo horizonte.
— Marcela, o que não está bom? É a remuneração? São os projetos? Eu sei que atualmente você está sem um arquiteto, mas isso já está no nosso RH — e a negra olhou para a loira que apenas fingiu que não era com ela enquanto devorava uma tortinha de limão — então saiba que estamos pensando em você.
— Você não entende. Não é nada disso, eu só preciso...
— Eu posso cobrir outra proposta...
— Eu não quero...
— Eu posso te realocar na obra que quiser...
— O que eu preciso...
— Quer falar sobre pagamento de hora extra? Podemos ajeitar o seu contrato para...
— Não é isso! — eu falei mais alto, chamando, finalmente a sua atenção, porém foi no momento errado, porque os meus olhos estavam marejados e não era assim que eu imaginei que a conversa ocorreria — não é isso, Rê. Acredite em mim quando eu digo que... eu amo a CPN. Só não dá — eu olhei um momento para o teto, querendo impedir que as lágrimas escorressem quando eu comprimi meus lábios — eu só... preciso de novos desafios. Eu preciso deles.
Eu precisava começar do zero de um lugar que não estivesse em ruínas.
— Marcela, se for sobre... o rumor... saiba que estamos investigando a fonte e a pessoa que o espalhou vai ser severamente punida — Gisele me garantiu, segurando minha mão de maneira afável.
— Vai? Como aconteceu com o caso da Alice? Ou da Andreia? Ou da Betânia? — eu comecei a citar nomes e notei que a mão da loira ficou tensa em cima da minha, quase magoada com meus questionamentos — eu não estou te culpando, Gi, mas você sabe que não resolve. Semana que vem vai ter mais uma dessas e o ciclo continua.
— Que boato? — Renata perguntou, enfiando uma uva na boca e quase engasgando quando notou que ela tinha sementes.
Eu e Gisele nos calamos, encarando a toalha da mesa que era salmão e tinha uma rendinha francesa para não termos que responder. Eu me calei porque não conseguia falar sobre isso, já Gisele acho que ficou em silêncio, porque possivelmente não sabia por onde começar. O que será que ela escutou, por sinal?
— Se vocês não sabem como falar, eu já imagino o que seja — a engenheira apoiou seus cotovelos na mesa e pressionou suas têmporas, inspirando profundamente pelas suas narinas antes de soltar pela boca, olhando para mim com menos postura profissional e um pouco mais... pessoal. Mais como amiga do que chefe — Marcela, você pode falar comigo sobre o que for, saiba disso.
— Rê, não é nada demais — eu tentei desdizer, porém ela havia visto a fragilidade no meu olhar antes das palavras saírem dos meus lábios e sabia que aquilo era mentira.
— Eu costumava pensar a mesma coisa, sabia? Quando eu tinha vinte anos, no meu primeiro emprego, um dos diretores me perguntou se eu escolhi engenharia para encontrar um marido e eu achei que era apenas uma piada de mal gosto. Outro supervisor um dia me pediu para limpar o banheiro masculino, porque pensou que eu fosse a faxineira e eu tentei entender se ele realmente me confundiu ou se foi por maldade. E teve um homem que trabalhou comigo que tentou passar de um limite que eu aprendi que existia, simplesmente porque eu aceitei uma carona um dia — minha chefe me contou e eu prendi minha respiração, não conseguindo desviar meus olhos dela, mesmo que eu quisesse, porque eu nunca havia visto Renata Pinheiro falar sobre algo que não fosse estritamente trabalho. E tudo o que ela estava contando era tão real que eu conseguia ouvir aquelas palavras saindo de mim — então sim, é uma bosta ser mulher na engenharia, mas você tem que saber que você não é a primeira que está desbravando esse mundo. Eu estou aqui e eu não vou dizer que eu facilitei a jornada, mas ela com certeza não precisa ser tão difícil assim, porque você não está sozinha.
Eu senti meus olhos queimando e a mão de Gisele começou a afagar minha palma com carinho, porque se existia alguém naquele mundo que eu admirava mais do que minha mãe, provavelmente esta pessoa era minha Renata Pinheiro — e isso dizia muito sobre o quanto aquela mulher era importante para mim.
E foi por isso que eu contei — não contei tudo, claro, porque eu não queria envolver meu drama pessoal com Eduardo naquela história, principalmente depois que... bem... só que quando eu notei, já estava falando sobre os olhares de Matheus Kaiser bem antes do assédio, como eu me senti impotente e culpada por ter deixado aquilo acontecer e como isso culminou em uma sequência de noites mal dormidas, boatos maldosos sobre a minha índole até que veio o dia de ontem.
Eu não sei exatamente quanto tempo eu falei sobre o assunto, apenas sei que elas seguraram a minha mão e disseram que tudo iria ficar bem, que as coisas iriam melhorar — e desta vez eu quase acreditei.
— E eu fico me perguntando se eu que dei alguma abertura para ele pensar que poderia ter este comportamento comigo — eu dei de ombros, sentindo as lágrimas ainda escorrendo — e depois disso eu não sei o que aconteceu, mas eu só... eu não conseguia mais me ver como uma engenheira e sim como a fraude que estava enganando todo mundo. O que é mérito meu? E eu me sinto tão incapaz quando eu estou perto dele, porque ele continua a agir como se o mundo fosse dele, como se eu fosse dele, enquanto meu mundo está de cabeça para baixo.
— Os homens são ensinados desde pequenos que o mundo é deles — Gisele comentou com a sua pose de psicóloga sem diploma e eu ofeguei, em busca de ar — e aí eles crescem e percebem que o mundo não é. Que se eles quiserem algo, terão que trabalhar e lutar para fazer isso acontecer. Alguns tomam o caminho correto, mas outros preferem apenas... serem escrotos.
Eu engasguei com aquelas palavras, porque nunca havia visto o anjo que era Gisele soltar um palavrão na vida e eu me sentia cúmplice de um delito.
— Eu não fazia ideia, Marcela — ela entrelaçou seus dedos nos meus e me segurou com atenção — isso tudo bem debaixo do nosso nariz e eu, que deveria proteger vocês disso, não fazia ideia de que isso estava acontecendo. Jamais imaginei que a empresa estava com este ambiente tão tóxico.
— Eu só... eu não sei o que me dói mais. Tem tanta coisa que passa pela minha cabeça neste momento que eu acho que... será que não é mais fácil começar em outro lugar? Como eu vou voltar a ter respeito na empresa se todo mundo na primeira oportunidade que tiveram, colocaram meus anos de trabalho no lixo e assumiram que eu estava dormindo com alguém? Eu! — eu confessei e Renata me ofereceu mais um lencinho de papel para que eu limpasse meus olhos e assoasse o nariz de maneira nada elegante.
— Gi, assim que voltarmos para a empresa, peça para o jurídico rescindir nosso contrato com os Kaiser. E conte a história toda — Renata comentou com tanta tranquilidade que até mesmo a Gisele pareceu surpresa — e se eles quiserem abrir um processo contra nós, vamos abrir um mais forte — e ela voltou a me olhar, segurando minha mão. Sua pele negra brilhava contra a minha branca e opaca — melhor ainda, você quer abrir um processo de assédio sexual e moral contra ele? A CPN te dará todo apoio.
— Não — eu sussurrei as palavras — é a minha palavra contra a dele e a gente sabe qual vale mais — eu limpei meu nariz e soltei as mãos delas para tomar mais uma água.
— A sua. Sempre a sua, porque é verdade. Nunca mais duvide disso, Marcela Noronha — Gi tentou sorrir, mas eu sei que ela também não estava bem depois da nossa conversa. Não tinha como estar, só que apenas de ouvir aquilo... que alguém acreditava em mim...
— Marcela — Renata me chamou de novo, inclinando-se na mesa e colocando uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha — não posso te prometer que isso nunca mais vai acontecer, mas eu quero que você não tenha dúvidas que se isso acontecer, você tem a mim.
— E a mim também — Gisele concordou, seus olhos castanhos segurando ao máximo as lágrimas nos olhos — a partir de hoje vamos ter uma política mais severa contra assédio. Eu sinto muito que as coisas chegaram neste ponto para que algo tivesse que ser feito.
— Me dá mais uma chance, Má — Renata me pediu e eu juro que vi um vislumbre de culpa e dor nos seus olhos — eu te peço uma prova de confiança de que você acredita em mim. As coisas vão melhorar. Eu juro. E se não melhorarem, eu mesma me demito, porque eu não falhei só com você, mas com todas as mulheres da CPN.
E não havia palavras no vocabulário português que pudessem explicar o que eu estava sentindo, mas era muito parecido com o abraço que meus pais me deram logo antes de eu me mudar para São Paulo, por isso eu apenas murmurei um "ok" cansado e cheio de sentimentos.
— E agora vai pra casa dormir, ok? Preciso que você esteja inteira para voltar aos trabalhos — Renata me pediu eu comecei a menear a cabeça, tentando murmurar "durmo final de semana", só que ela me cortou com seu olhar que não estava mais tão gentil — posso pedir que você vá até o médico da empresa para que ele te passe uma licença, mas eu acho que o melhor é você apenas ir embora e dormir. E comer. E saber que segunda-feira vai ser um dia melhor.
E, desta vez, eu acreditei nela.
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LIBRIELA OUVIU A PRECE DA NAÇÃO E A MARCELA FINALMENTE SE SENTIU SEGURA O SUFICIENTE PARA FALAAAAAAAAAAAAAAAR <3
Para todo mundo que estava esperando e torcendo e sonhando com isso, a Má finalmente falou sobre aquilo que a estava matando todo dia um pouquinho a mais (e com quem efetivamente poderia ajudá-la. RENATA RAINHA! GISELE DEUSA DO RH! Marcela tá mais do que bem amparada).
Ela não se demitiu (como muitas pessoas pensaram que ela iria) e ainda conseguiu acalmar o coração dela. Hoje foi uma vitória completa (((: Pensamos muito se a nossa engenheira preferida deveria sair da CPN ou não, mas a gente chegou a conclusão que se ela saísse, seria uma vitória pro time do mal, então aqui a gente inicia uma nova era <3
Nós sempre ficamos meio chorosas com esse cap afinal ele é um abraço em forma de palavras, porque mesmo que todo mundo queira que Mardo se entenda, a jornada da Má é super importante também.
E a gente espera que a partir de agora seja apenas ladeira acima <3 Ela merece.
Não esqueçam de nos contar o que estão achando da história e da estrelinha!! Depois desse super ultra blaster capítulo, com certeza vocês devem imaginar o que vem aí... hehehe
Beijinhos,
Libriela <3 (hoje o coração ta permitido?)
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