Dissipating

Os dias passam mas parecem todos iguais. As vozes vem e vão, durante brechas de quase consciência, e embora eu as reconheça, é difícil me concentrar no que dizem, pois dizem milhares de coisas. No geral era um looping de desculpas, promessas e desejos para que eu melhorasse e voltasse logo para casa. Numa dessas brechas entre o desconhecido e o despertar, consigo ouvir uma melodia familiar, uma voz suave que ecoa em minha alma. É a voz da minha mãe:

— No topo da montanha, o sonho vai chegar. O vale das luas, ele irá te encantar. Deixe a brisa te guiar, suavemente a soprar. Envolvendo seu sono, te fazendo acalmar.

A música era familiar e lembrava todos os sons, gostos e cheiros da infância. Eu não sinto nada, não sou capaz de absorver totalmente suas palavras, mas eu me lembro dela e de vários momentos. Era um alento ouvir sua voz, pois fazia anos que eu não ouvia aquela música. Ela prossegue suavemente:

— Nas estrelas cintilantes, vou tecer uma canção. Para embalar seu sono, com ternura e emoção. As montanhas sussurram segredos ao luar. E a lua prateada irá te abençoar.

A melodia se extende por mais alguns versos até que termina falando sobre estrelas, um vale de montanhas, a brisa suave e a lua prateada. Tudo isso faz sentido e ao mesmo tempo não faz. Era estranho e quase reconfortante. As vozes frequentemente vem acompanhadas de toques, e ambos trazem fragmentos de momentos distantes que já vivi. Em um momento havia uma melodia instrumental, feita com um violão. Nesse em específico há diversas vozes cantando baixinho, em coro ou se revezando. Reconheço as letras pois fui eu quem as escreveu. As vozes vão embora depois de algum tempo, dizendo mais coisas:

— Você vai sair dessa, grandão!

— Fica bem, Nick!

— Volta logo, mano!

Apesar das vozes serem muitas, e eu não prestar a devida atenção em todas, há vozes que são mais frequentes, e essas eu reconheceria em qualquer lugar. Não sou capaz de estimar precisamente, mas Caleb e Megan aparecem sempre, e me garantem que tudo está bem, que eu não devo me preocupar com nada. Eles me dizem para descansar, para que eu pudesse ir logo para casa. Apesar de todas as vozes, havia uma em específico que me causava mais sensações do que as outras.

No começo ela não dizia nada, mas eu podia ouvir seu choro baixinho no quanto do quarto. Nas primeiras vezes ela me confidenciou que não sabia o que dizer. Com o passar do tempo, ela passou a contar histórias sobre seu cotidiano. Ela havia dado entrada no processo de receber o diploma, mas não estava animada para a formatura. Ela até brincou que me convidaria para a cerimônia caso eu acordasse até lá, mas eu não acordei. Preeya continuou vindo mesmo assim. Ela trazia flores, eu podia ouvir a água do vaso de plantas sendo trocada. Ela trazia músicas novas, que eu nunca tinha ouvido.

— É lançamento daquela banda que você gosta — ela disse, e pela primeira vez sinto um beijo suave no rosto.

A máquina que faz "bipes" ressoa numa frequência levemente diferente. Ela se sobressalta e vai chamar alguém, mas nada de fato muda. "Erros acontecem, provavelmente foi só uma falha", foi a resposta que deram a ela.

Preeya retornou depois, com mais músicas e histórias. Em algum momento ela menciona que sonhou comigo. Em outro momento ela contou que havia cortado o cabelo novamente, em um momento em que estava emocionalmente instável.

— Era cortar o cabelo ou fazer terapia... — sua risada ecoa pelo quarto — A tesoura estava mais perto então... Bom, espero que ainda me reconheça quando acordar, tá bem curto agora.

Sinto seu toque em minha mão, o local onde a loba mordeu lateja. Suas mãos acariciam meu cabelo, meu rosto. Preeya ajeita o travesseiro, o cobertor, ajusta a temperatura. Não sei quanto tempo se passa, mas ela fica um tempo sem vir. Quando finalmente retorna, eu reconheço sua respiração. Desta vez o rádio não é ligado, e ela não começa a me contar histórias. Desta vez apenas ouço-a chorar no canto, inconsolável e distante. Pela primeira vez, um resquício de consciência me faz ter vontade de ir até ela. Quero sentir seu toque, quero abraçá-la.

Além do som do choro e da máquina que faz "bipes", um outro som se aproxima. Passos hesitantes adentram o quarto, e Preeya subitamente fica em silêncio.

— Eu não acredito — sua voz sai como um sussurro, carregada de descrença.

— Eu... Eu só queria ver como ele está — reconheço a voz, e naquele instante meu desejo é de apenas perder a consciência novamente e mergulhar na escuridão.

— Agora? — Preeya rebate — Já faz quase dois meses.

— Eu sei — ela responde — Não me deixaram entrar no outro dia. Obrigada por me deixar ficar, quer dizer... Se não se importa.

— Fica — a resposta é indiferente.

— Obrigada. Todos os parentes e amigos dele parecem me odiar... Menos você — ouço Irina dizer — Aliás, qual o seu nome? Você já sabe quem eu sou aparentemente. 

— Não se engane, eu te odeio também. — Preeya rebate, ignorando sua pergunta — O que você fez com ele... Foi imperdoável. 

Enquanto permaneço imerso na escuridão do meu coma, sou capaz de captar a conversa entre as duas mulheres ao meu lado. As palavras carregadas de ressentimento e mágoa ecoam em minha consciência fragmentada. É difícil processar tudo, mas uma mistura de sentimentos confusos toma conta de mim.

— Como ele era? Antes de mim? — pergunta Irina, sua voz trêmula.

O ambiente inteiro fica em silêncio por um tempo, e até a máquina parece perder a capacidade de produzir som.

— Ele era... Maravilhoso. Um ótimo cara, inteligente, incrivelmente talentoso, gentil... Ele tocava guitarra e violão como ninguém. Eu nunca admiti, mas sempre amei a voz dele... — Preeya luta para não soluçar, enquanto Irina permanece em silêncio.

Preeya continua a compartilhar suas lembranças com Irina:

— Nós trabalhávamos perto um do outro. Ele tinha um estúdio de tatuagem no fim da rua, e toda sexta-feira ia no bar tocar com a banda, jogar sinuca. Uma vez ele perdeu uma competição, ou aposta, sei lá... Ficou tão bêbado que eu tive que chamar um táxi. No dia seguinte ele voltou pra me pedir desculpas, o movimento estava fraco e nós ficamos conversando. Ele me perguntou meu aniversário e eu disse que já tinha passado. No dia seguinte ele voltou de novo, me deu uma ótima gorjeta e um desenho. Era um dragão no estilo tailandês. Disse que se eu quisesse fazer aquele ou qualquer outro desenho seria de graça. Mais tarde, quando cheguei em casa, fiquei me perguntando como ele sabia, e aí eu lembrei que há muito tempo eu tinha uma camisa com essa estampa, era da minha antiga escola do ensino médio... Ele lembrou o logotipo da escola e fez... Fez um desenho só para mim e ainda me ofereceu uma tatuagem. Eu já tinha elogiado as dele, acho que ele sempre soube que eu queria fazer uma, mas nunca tive coragem.

As palavras de Preeya trazem à tona memórias e sentimentos em mim, mesmo que eu não possa expressá-los ou de fato experienciá-los. Flashbacks de momentos felizes, de uma vida que parece distante, surgem em minha mente. Eu me lembro do estúdio de tatuagem que eu tinha, das noites de sexta-feira tocando com a banda, das risadas e das competições de sinuca. Ouvir as lembranças de Preeya traz um misto de emoções. Alegria por ter sido capaz de trazer felicidade a alguém que amei, mas também uma profunda tristeza por não poder estar presente para apreciar esses momentos novamente.

— Ele teria ficado melhor sozinho — Irina comenta de maneira dura, era meio óbvio que ela não fazia ideia do que as palavras dela significavam.

Preeya, no entanto, não parece se importar com as palavras de Irina.

— Não... Ele me chamou para sair várias vezes... — Preeya revela — Ele teria ficado melhor comigo...

— Espera... Você é a Preeya? — a outra mulher parece chocada. 

No estado em que estou, não seria preciso dizer que estou intrigado com essa informação. É mais como um fragmento de esperança em meio ao caos da minha mente inconsciente. Preeya se aproxima de mim e continua a falar, agora direcionado para mim:

— Eu devia ter aceitado. Devia ter ido com você para algum show maluco de metal que você quisesse ir... Mesmo assim, duvido que você me levaria em um desses no primeiro encontro. Você sabia que eu odiava metal, sabia dos meus gostos, tinha prestado atenção... Fala sério, que tipo de cara faz um desenho tão significativo para mim? — Preeya enxuga as lágrimas e se aproxima ainda mais de mim. Desta vez, ela segura minha mão — Nicholas, por favor, se estiver ouvindo, saiba que eu iria a qualquer show de metal que quisesse ir. Até do Cannibal Corpse...

Enquanto Preeya expressa suas palavras  cheias de sentimento, enquanto Irina permanece silenciosa. Suas palavras ressoam em minha mente, enchendo meu coração com uma mistura de emoções indescritíveis.

Enquanto permaneço em meu mundo de silêncio e escuridão, sinto um raio de esperança. Através das palavras dela eu sinto que, de alguma forma, estou presente, mesmo que apenas como espectro do que eu era antes. Os sons e ruídos começaram a ganhar forma, e lentamente meu corpo encontra um modo de reagir.

— Meu deus... — Preeya aperta minha mão — Você viu isso?

— Nicholas? — Irina se aproxima.

— Por favor, se estiver ouvindo fala comigo... Por favor — Preeya diz com a voz embargada pelas lágrimas.

Minha mão direita formiga bem no local da mordia, o local em que Preeya segurava. Eu sou capaz de sentir minhas mãos pela primeira vez em um longo tempo, sei disso pois uma voz em minha consciência me mantém informado deste fato. Meus dedos estão rígidos, como se eu não os movimentasse há muito tempo. Ainda assim, tenho a impressão de tê-los movido, retribuindo o aperto levemente.

Irina eventualmente vai embora, mas Preeya permanece ao meu lado, segurando minha mão, atenta para ver se iria mexer novamente. Depois de um tempo, ouço sua voz suave, me dizendo que precisava ir, mas que voltaria logo, assim que o horário de visitas reabrisse no dia seguinte. Sinto suas mãos deslizando pelo meu cabelo, sinto seu beijo no meu rosto, sinto o calor que ela me proporciona, e mais ainda, sinto suas emoções. Naquele momento posso sentir uma conexão, sensações boas me invadem e sei que vêm dela.

Ela me deixa ali, sozinho, mas não totalmente. Suas emoções permanecem comigo e reverberam por todo o meu corpo e mente até chegar na minha alma. A retomada de consciência é gradual. Primeiro ouço meu coração batendo. Ouço o "bip" da máquina nitidamente, e não abafado e distante. Estou consciente da minha respiração, dos lençóis me cobrindo, do cheiro de álcool, medicamentos, sangue e um monte de produtos químicos. Após um longo período que não sou capaz de estimar agora, consigo abrir os olhos.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top