05

ELEANOR HUGHES

          Mamãe avisou que elas roubariam tudo de mim e não demorou muito para que isso se tornasse perceptível. Primeiro, meu quarto. Anna tinha problemas respiratórios e estava em tratamento, então papai deu meu quarto a ela.

— Mas mamãe escolheu para mim!

Insisti, elevando mais a voz do que o normal e chamando a atenção de Madame Blackwood, que virou o corpo para nos observar. Estava no meio do quarto, observando Anna, que corria ao redor do cômodo, atrás de qualquer coisa brilhante ou fosse colorido. Ela se distraiu quando a garotinha tropeçou e começou a chorar.

Papai se ajoelhou e me segurou pelos ombros, me girando gentilmente para que fiquemos de frente um para o outro.

— Eu sei meu bem, e vamos fazer questão de levar cada coisinha para o seu novo quarto. — garantiu. — No entanto, precisamos que Anna fique com esse quarto para o tratamento dela. Você entende, não é?

— Não, papai!

Aquele era o meu quarto. Mamãe decorou cada pedacinho dele para mim. É onde tenho o esconderijo para a carta de mamãe, é o meu lugar e mamãe me avisou que não devo deixar que roubem nada do que é meu!

— Papai, Anna pode ficar com o meu quarto. — Papai olhou por cima do ombro bem no momento em que ela entrou. — É bem arejado e tem uma janela enorme onde entra bastante vento. — sorriu tranquilamente como se não fosse grande coisa, me fez parecer malvada. — É melhor que eu fique com aquele com a varanda, Eleanor e Anna são novas demais então pode ser perigoso para elas.

Parou com as mãos coladas ao corpo e os dedos entrelaçados na frente do abdômen, assim como mamãe fazia, assim como a mãe dela faz.

Ela era bonita.

Ela era elegante.

E eu odiava isso.

Odiava que quando estávamos lado a lado era visível a diferença entre nós duas. Odiava me pegar imitando sua postura assim que a observava. Odiava imitá-la inconscientemente.

Papai me deu as costas para ficar de frente para ela, me excluindo da conversa. Como todos pareciam fazer desde o momento que ela pisou nessa casa.

— Como você é uma boa irmã mais velha, Vivi. — disse acariciando o cabelo dela. — Sabe que não poderá levar seu piano se ficar com aquele quarto, não sabe?

— Tudo bem, papai, eu tenho a varanda. Posso ler livros ali enquanto tomo chá se estiver acompanhada, não posso mamãe?

Victória olhou para a mãe dela, esperançosa, enquanto a mulher acompanhava Anna com o olhar. Naquela época, Anna já era incontrolável. Escapulia para todo lugar, se pendurando nos móveis mais perigosos possíveis.

— Claro, querida.

— Viu, papai? E também, Anna adorou a Ella, ficaria feliz de ficar no quarto ao lado do dela.

— Ella! — Anna comemorou ao ouvir meu nome enquanto a mãe a impedia de escalar uma das minhas mesinhas.

— Você toca piano? — uma sexta voz perguntou e olhamos para a porta, onde vovó estava parada. O mesmo semblante sério e o terço enrolado entre os dedos indicava que estava saindo para a missa.

— Sim, vovó. — ela confirmou, animada. — Estou aprendendo agora Ouskald.

Aquela foi a primeira vez que vi os olhos de vovó arregalar. Ela imediatamente olhou para o papai que confirmou o que Victória estava dizendo. Soltei a respiração ao ver o olhar desconfiado da vovó. Se a vovó dúvida de Victória, então nem tudo estava perdido.

— É uma obra bem avançada para uma jovem da sua idade.

— Vivi é bem talentosa no piano, mamãe. — papai colocou as mãos nas costas dela e a empurrou de leve na direção de vovó, querendo que ela mesmo falasse.

Eu odiei aquilo. Odiei cada momento de como vovó ouvia com atenção enquanto ela explicava como era fácil decorar a partitura. Papai nunca me incentivou assim, sempre agia como se precisasse mudar de assunto porque eu não sei nada. Vovó nunca me olhou com esse interesse.

Ninguém nunca me tratou dessa forma!

— Por que não descemos até a sala de música e você toca para mim? — ofereceu. — Se você se sair tão bem quando diz, pode ficar com o quarto do outro corredor.

— O quarto do palácio?! — perguntei e todos os rostos se voltaram na minha direção.

Tem um quarto no corredor da Ala Blackwood também tem uma sacada enorme com vista para o nosso jardim. No entanto, se você olhar ao longe consegue ver a cidade real. Eu e mamãe queríamos aquele quarto, assim eu poderia ficar observando a Cidade Real.

Vovó se recusou a deixar que eu me mudasse para lá, disse que só poderia ficar com ele quando papai se tornasse oficialmente o Chefe da Família e todos nós passássemos a ficar naquela Ala. Naquela época, apenas ela e vovô ficavam ali.

— Esse mesmo.

— Papai eu fico com o quarto do palácio e a Anna pode ficar com...

— Nem pensar! — vovó ralhou e eu me encolhi. — Não vou oferecer para você depois de ouvir você negar ceder o quarto para sua irmã mais nova. Essa oferta é somente para a Victória. O que acha?

Todos olhamos para ela. Recuse, recuse, recuse, recuse. Por favor, recuse. Ela deve ter percebido o que passava na minha cabeça porque hesitou enquanto seus olhos pulavam de mim para vovó.

Recuse, aquele quarto é meu!

— Vovó, se eu conseguir posso deixar Ella ficar com o quarto? — perguntou com um sorriso e eu franzi a testa, não entendendo porque ela se ofereceu para me dar o quarto.

Passei pelo papai e me aproximei de vovó, agarrando a saia do seu vestido e erguendo o olhar do jeito que mamãe havia me ensinado. Se fosse vovô, ele teria permitido depois disso, mas vovó era diferente. Isso não funcionava com ela.

— Não. Não estou dando opção de escolher quem fica com o quarto. — ela olhou para baixo, na minha direção, o olhar severo me faz soltar sua saia e recuar um passo. — Você queria ficar com o seu quarto atual e conseguiu isso. — Ela olhou para Victória. — Para você estou dando a oportunidade de me provar que precisa mesmo de um piano particular e de um quarto onde ele caiba.

Victória olhou para mim como se pedisse desculpas e deu um passo a frente, erguendo a mão na direção da vovó para que ela segurasse. Congelo. A surpresa de vovó não durou nem um segundo, em seguida deixou o terço em uma mão e com a outra segurou a de Victória.

— Vamos, vovó. — disse e vovó assentiu, guiando ela.

Anna pulou em cima do papai, arrancando uma risada dele. Ele a pegou no colo e levantou, brincando com ela enquanto saia do quarto também. Fiquei parada do lado de fora, observando eles.

Como vovó andava de mão dada com Victória e parecia interessada no que ela dizia. Como papai brincava de fazer cócegas em Anna e sua risada ecoava pelo corredor. Tudo isso deveria estar acontecendo comigo, tudo isso deveria ser meu. Todo esse carinho, essa atenção, tudo...

Uma mão surge na frente do meu rosto.

Os dedos longos com um anel brilhante. Subi o olhar pelos braços, ombro, até que encontrei o rosto de Madame Blackwood. Ela sorriu e me senti derretida. Um sorriso involuntário surgiu em meu rosto, como se eu não tivesse outra opção além de imitar seus gestos.

— Vamos, Ella?

— Sim. — concordei, como se estivesse sob algum feitiço e segurei sua mão. Mamãe odiaria me ver fazendo isso.

A mão dela era macia e quentinha, bem maior que a minha. A sensação de segurar e andar ao lado dela é boa.

— Você sabe tocar piano, Ella?

— Não.

— Violino?

— Não.

— Uma menina esperta como você deve ter um talento secreto. — ela disse e senti meu rosto esquentar quando me elogiou. — O que você gosta de fazer?

— Gosto de brincar no jardim e desenhar.

— Desenhar é uma habilidade importante, fico feliz que você se interesse por arte. O que você mais gosta de desenhar?

No começo, me senti desconfiada. Mamãe não se importava com desenho ou instrumentos, odiava quando eu insistia muito em falar sobre as pinturas da vovó que eu gostava. Eu só precisava estar sempre bonita para ela ficar feliz.

A Madame Blackwood não pareceu entediada quando contei sobre como gostava de pintar flores e paisagens. Também não ficou entediada quando contei sobre as minhas pinturas preferidas das que temos aqui na mansão. Falei tanto, que até mesmo esqueci que estávamos indo ouvir Victória tocar.

Quando entramos na sala de música ela foi direto para o piano, se preparar e a Madame Blackwood deixou que eu ficasse ao seu lado. Ela sorriu para mim enquanto terminava de ouvir minha história sobre a pintura do Rio Argan.

— Por que não me mostra seus desenhos mais tarde? Vou adorar vê-los.

— Mesmo?

— Certamente. — sorriu. — Podemos fazer um espaço com telas e tintas para você no seu quarto. Assim pode treinar ainda mais.

Assenti, animada, mas o barulho do piano me trouxe de volta a realidade. Vovó perguntou se ela precisava de uma partitura e Victória negou, naquele momento fechei os olhos e implorei.

Para Victória errar e não conseguir o quarto. Então eu mostraria minhas pinturas e a Madame Blackwood ficaria orgulhosa de mim. Todos vão gostar mais de mim e eu serei a preferida, assim ela não conseguiria roubar mais nada que fosse meu.

Ela começou a tocar as primeiras notas e todos ficaram em silêncio, observando o modo como seus dedos corriam pelo piano. O modo como cativou aqueles que a ouviam. Eu nem sabia que era possível que o piano fizesse um som como aquele.

Do começo ao fim ela tocou cada nota perfeitamente. Sem nenhum erro.

...

Depois daquele dia me tornei familiarizada com o amargo gosto de ser a irmã mais nova de Victória Blackwood. Ao assistir o modo como vovó elogiava suas habilidades e passou a frequentemente pedir que ela tocasse algo no piano.

Ter que acompanhar sua mudança para o quarto que deveria ser meu. Ela ainda me viu espiar do corredor enquanto indicava para um dos criados onde colocar seu piano particular. Naquele dia ela ainda teve a coragem de se aproximar de mim e dizer:

— Você gosta de observar a Cidade Real? Você pode vir no meu quarto quando quiser observar um pouco.

No meu quarto, ela disse, exibindo para mim que ela havia ficado com ele no final. Sorrindo como se fosse uma irmã mais velha bondosa que só queria ajudar. Eu fiquei tão furiosa que derrubei minha tinta azul de propósito no vestido rosa dela e fui embora.

Esperei no meu quarto que alguém viesse brigar comigo para contar o quão maldosa ela foi em se exibir. Queria que vovó, papai, mas acima de tudo, Madame Blackwood a repreendesse pelo que fez comigo.

Ninguém apareceu, então eu fui atrás deles. Atrás de Madame Blackwood. Eu a encontrei no quarto dela, mas parei na frente da porta entreaberta ao ouvir a voz de Victória.

— Por que não disse nada?! — ela a repreendeu e eu sorri. Ela merecia. — Olhe o estado do seu vestido novo!

— É que ela está triste porque a mãe dela morreu e nós aparecemos do nada. — explicou. — Eu ficaria muito triste se não tivesse a senhora, mamãe. Então, eu entendo ela. Não tem problema sujar o vestido.

Corri de volta para o meu quarto e chorei debaixo das cobertas. Me sentia humilhada por ela ter pena de mim. Senti raiva por ela ser vista como boazinha outra vez e senti ainda mais raiva por me sentir mal, mesmo que só um pouquinho, por ter derrubado tinta no vestido novo dela.

Não importava que ela fosse boazinha comigo, ela estava tirando tudo de mim aos poucos, assim como mamãe disse que ela faria. Primeiro a atenção do papai, depois o meu quarto preferido, depois a atenção de vovó. Ela era bonita e elegante e gentil e, se eu não tomasse cuidado, acabaria tentando roubar o meu final feliz também.

As coisas pioraram ainda mais quando começamos a ter tutores. A Madame Blackwood havia prometido que nós duas ganharíamos tutores depois de ver meu talento com desenhos. Não disse uma palavra sobre o vestido arruinando. Apenas sentou comigo no meu quarto e olhou desenho por desenho, fazendo perguntas sobre cada um deles e não pareceu entediada em ouvir a explicação.

— Nunca vi uma menina da sua idade com essa habilidade em pintura. — elogiou com um sorriso enquanto segurava um dos meus desenhos mais recentes. Contemplava a imagem do nosso jardim com um sorriso orgulhoso no rosto. — Precisamos arrumar um tutor para você.

Naquela época todos já sabiam da situação da nossa família, então achei que não teríamos dinheiro para isso. Mas os tutores chegaram, não só para mim e Victória, mas para Mary e Richard também.

Mas minha animação logo azedou.

O nível de etiqueta do Vitória era mais alto que o nosso. Enquanto nós três conseguimos fazer uma das três reverências sem espatifar no chão ou bambear de um lado para outro, ela havia dominado as três com perfeição. Seus modos à mesa eram impecáveis, assim como sua apresentação. Logo a professora avisou Madame Blackwood que ela deveria fazer aulas avançadas.

Em história ela já sabia o básico da história aszrianesa, o professor disse que ela estava pronta para livros e conteúdos mais difíceis. Até porque o resto de nós ainda nem sabia ler. Matemática, finanças, astronomia, kersato e darsko e todas as outras matérias. Ela ganhou professores diferentes e tanto Madame Blackwood quanto vovó acompanhavam de perto as aulas dela.

Não havia um conteúdo que eu aprendesse que Victória já não sabia melhor do que eu. E me irritava ainda mais quando ela se exibia como se todos precisassem ver que ela sabe mais para aplaudirem e elogiarem ela.

— Eu posso ajudar vocês com a segunda reverência. — disse certo dia, depois de assistir eu e Mary quase cairmos no chão. — Não é tão difícil, vocês só precisam...

Eu joguei meu suco de morango nela.

Anna, para quem ela estava lendo uma história antes de se aproximar, começou a chorar. Mary soltou um grito surpreso. Enquanto eu só fiquei ali parada com a respiração acelerada, os punhos fechados, o corpo todo formigando. Esperando que ela brigasse, que devolvesse e jogasse um copo de suco também.

Ela apenas limpou o suco dos olhos e colocou o livro longe dela, em cima da mesa, para que não fosse danificado. Ficou de joelhos, de frente para Anna e sorriu.

— Olha Anna, agora você também está cheirando a morango. — Passou as mãos úmidas nas bochechas dela e o choro se transformou em risada.

Eu corri de volta para o quarto e chorei no colo de Aileen. Odiava não ser boa em nada quando ela estava por perto, odiava não ser a preferida, odiava como todos preferiam ela. Odiava como ela roubou até mesmo a minha posição de Senhorita Blackwood. Tudo o que é meu ela roubava para ela. Tudo.

— Não é verdade, senhorita. — Aileen disse, tentando me acalmar. — Todos os criados adoram somente você, ainda que tenham que chamá-la de Senhorita Blackwood, sabem que você é a verdadeira. Que aquela mulher e as filhas delas estão apenas tentando roubar tudo o que é seu enquanto gastam cada centavo dessa família.

Aileen enxugava minhas lágrimas enquanto eu tentava respirar fundo. Me fez sentir melhor imaginar que pelo menos eles sabem quem ela é de verdade e o modo como tem roubado o meu lugar. Ainda que papai, mamãe e vovó não vissem o mesmo. Tia Rietta também não gostava delas e talvez conseguisse mostrar para eles como a Victória é má.

— Não se preocupe, senhorita. Vou pensar em uma forma de garantir que ela não tentará diminuir você outra vez.

— Mesmo? — perguntei chorosa e ela me abraçou.

— Sim, senhorita. Pode confiar em mim.

...

Nos três meses seguintes todos da casa pareciam ter esquecido que elas eram intrusas. Ainda que a vovó não gostasse da Madame Blackwood, eu sabia que ela gostava de Victória e Anna. Assim como todos os criados da mansão passaram a adorá-las.

Sorriam quando viam Victória e Anna sentadas na sala lendo algum conto de fadas e ela tentava ensinar a irmã mais nova a pronúncia correta das palavras. Sorriam ao ver Anna correndo pelos jardins ou ao ter que ajudar Victória a carregar uma pilha de livros para dentro do seu quarto. A única além de vovó e vovô que tinha um quarto na Ala Blackwood.

Também sorriam toda vez que passavam pelo novo quadro da família. Apontavam para Victória e para Anna e para a Madame Blackwood, como se eu não estivesse ali também.

"A Senhorita Anna é tão adorável, ontem ela colheu várias flores do jardim e foi até a cozinha entregar para os criados."

"Você ouviu a Senhorita Blackwood tocando essa manhã? Eu quase chorei!"

"A Senhorita Anna e a Senhorita Victória herdaram a beleza da Madame Blackwood. Parecem dois anjos naquele retrato."

Tudo era sobre elas.

Tudo era sobre Victória.

Apesar de tudo o que aconteceu nos últimos meses, uma notícia boa chegou até mim. Um convite para um chá organizado por Willa Terrintown e sua madrasta. Esse era o mais próximo que estive em meses de rever James e titio se esforçou para conseguir um convite. Eu desenhei retratos dele com o mais próximo da realidade que minhas habilidades iniciantes consigam replicar, ainda que eu achasse impossível esquecer seu rosto ou seus olhos.

No entanto, aquilo não era suficiente.

Queria conversar com ele novamente.

— Lembre-se do nosso objetivo. — titio relembrou, ao aparecer pela primeira desde a morte da mamãe. — Garantir o seu final feliz.

— Está bem, titio.

— E como é sua madrasta? — perguntou enquanto levava uma xícara de chá à boca. — Ela é boa com você? Trata você mal?

Coloquei um biscoito amanteigado na boca. Me sentia mal por gostar tanto da Madame Blackwood porque mamãe ficaria irritada e talvez titio também. No entanto, não queria mentir e dizer que era malvada comigo quando não era. Então não disse nada.

Titio disse que não poderia ir comigo dessa vez, que era responsabilidade de Madame Blackwood. Tentei esconder minha animação até que ele fosse embora.

Seria um dia para apenas nós duas e Victória não estaria por perto. Se eu praticasse e me esforçasse, seria mais elegante que Victória e me tornaria sua preferida. Por isso, me dediquei nas aulas e me esforcei para aprender o máximo possível.

Escolhi meu vestido mais bonito para o chá. Era verde-bebê com uma saia cheia de tule. Aileen deixou meu cabelo solto, mas prendeu um pouquinho as laterais usando presilhas de esmeraldas que mamãe me deu de presente.

Minha animação toda se foi quando entrei na carruagem e Victória estava sentada ao lado da Madame Blackwood.

Ela olhou para mim e sorriu.

— Você está linda, Ella!

Eu chorei metade do caminho.

Victória disse que poderia voltar, mas Amber se recusou, me explicando que no convite também constava o nome dela. Aquilo não me importava. Não queria que ela fosse também, não queria que ela conhecesse James. Queria deixar ela na metade do caminho e nunca mais voltar para buscar.

Ainda assim, ela entrou comigo.

Haviam duas festas. Uma para as mulheres mais velhas que tinha a Viscondessa Terrintown como anfitriã. A outra que era a de Willa.

— Não perca sua irmã de vista. — Madame Blackwood disse para Victória e eu quis chorar de novo. Ela não era minha irmã.

Ela não era a minha irmã, era uma ladra. Era uma vilã horrenda que queria roubar tudo o que era meu, mas ninguém percebia isso. Victoria assentiu com um sorriso.

— Está bem, mamãe.

— Comporte-se, Ella. — Madame Blackwood pediu e eu assenti, não querendo decepcioná-la.

— Está bem.

— Boa garota.

Criados nos levaram para o lado oposto que ela seguia. Logo conseguimos ver ao longe um gazebo de ripas brancas com um telhado azul marinho. Trepadeiras subiam pelas ripas de madeiras até o teto. Pendentes de plantas, com flores desabrochando, desciam do teto do gazebo. A mesa abaixo deles estava elegantemente posta, com porcelanas finas e o aroma delicado do chá escolhido.

Lembro que observei tudo boquiaberta enquanto subia os dois degraus da entrada. Então ouvi os risinhos e notei que eram por minha causa. Meu rosto esquentou e eu me encolhi, ficando em silêncio.

— A Senhorita Blackwood e a Senhorita Eleanor Blackwood.

Victória se abaixou e eu imitei a reverência que ela havia escolhido. Não era a mais formal, apenas tinha que colocar uma perna atrás da outra e abaixar.

— Ficamos imensamente honradas pelo convite, vossa graça. Eu sou Victória Blackwood e essa é minha irmã mais nova, Eleanor Blackwood.

Willa nem mesmo olhou na minha direção. Assim como todos faziam desde que Victória havia chegado. Todos a observavam com curiosidade e ela nem mesmo parecia desconfortável com a atenção. Sorriu como se fosse tão nobre quanto Willa. Boba. Ela nem ao menos sabia que a rainha queria Willa como sua nora, que Willa era amiga próxima do Príncipe James.

A mesa era redonda e Victória ficou com um dos assentos do meio, oposto ao de Willa, enquanto eu me sentei à sua direita. Já havia vivido aquilo antes, conhecia aqueles olhares. Eles apareciam e logo as meninas começavam a usar palavras difíceis ou conversar sobre coisas que você não conhecem, mas eu estava preparada dessa vez. Eu havia estudado.

— Espero que desfrute do chá. — Willa disse enquanto Victória adoçava o seu para beber um gole. — Prestei atenção especial a escolha de hoje já que ouvimos dizer que você vem de Darska. Soube que o chá de Lafa é bastante apreciado na capital.

Victória tomou um longo gole enquanto as demais meninas soltavam risinhos. Desde o momento em que levou o chá à boca até devolvê-lo ao pratinho de porcelana, não cometeu qualquer deslize.

Lançou um sorriso agradecido para Willa.

— Vossa graça é muito atenciosa e além do ótimo gosto para chá, seu conhecimento é bastante vasto. — elogiou. — Não saberia sobre o chá mais apreciado da capital darskaniana, visto que nasci aqui em Egline.

— Pensei que a Madame Blackwood não fosse Aszrianesa, todos dizem que... — uma das meninas ao meu lado levou uma cotovelada e se calou. Victória não se abalou com os comentários e sorriu.

— Nossa mãe é aszrianesa, mas a nossa bisavó era estrangeira. — respondeu casualmente e focou sua atenção na garota a direita de Willa. — Senhorita Greville, as suas presilhas são adoráveis... São diamantes?!

Giulia Greville sorriu, como se esperasse que em algum momento suas presilhas de diamantes fossem notadas. Victória conseguiu engatar uma conversa com Giulia Greville. Começou com as presilhas, depois vestidos e então pinturas e família.

Ela conseguia conduzir a conversa, mas sempre deixando Giulia no centro do assunto. Sabia o momento de elogiar o acessório de alguma das garotas presentes de forma convincente para que não parecesse apenas bajulação. Sabia o nome e sobrenome de todas elas.

Sabia o modo de fazer elas rirem com histórias inofensivas sobre a atrapalhada e encantadora Anna, conseguindo arrancar um sorriso discreto até mesmo de Willa. Em certo momento, não precisou mais se esforçar para manter o assunto, as perguntas vinham até ela, as meninas curiosas para saber sua opinião — e para que ela cometesse algum deslize também.

Principalmente Annalise Ortiz, que parecia desesperada com a aproximação de Victória e Giulia. No entanto, quando viu que suas armadilhas não funcionavam com Victória, mudou seu foco e mirou em mim. Seus olhos castanhos afiados como flechas miraram nos meus enquanto ela bebericou um gole de seu chá.

— Senhorita Eleanor, está tão calada, quase não a reconheci do baile de aniversário de Vossa Graça. Você conversou tanto naquele dia, lembro como nos contou que foi a South Emerald e viu o Rio Argan. — relembrou e uma onda de risinhos veio em seguida.

Queria parecer tão importante quanto elas, então contei uma mentirinha. Não sabia que o Rio Argan não passava em South Emerald, mas sim em Aria. Só de lembrar do erro senti a necessidade de me encolher no assento e desaparecer.

Era a oportunidade perfeita para ela se livrar de mim. Já podia prever pelo modo como riu ao meu lado — o leve escárnio oculto em seu tom — que ela também notou a oportunidade e não a desperdiçaria.

— Fico feliz em ver que o conhecimento de minha irmã foi tão bem apreciado. Sua fascinação por geografia sempre me surpreende. — disse e eu me encolhi ainda mais. — Muitas pessoas não têm esse conhecimento de que, tecnicamente, o Rio Argan também passa em South Emerald. Recentemente houve uma alteração na delimitação do condado de Aria, devido a uma disputa de terras próxima a fronteira. Com o recuo de um pedaço do condado, o rio também cruza South Emerald.

A observei sem me mover, sem dizer nada, quase sem respirar. Ela colocou a mão sobre meu ombro, sorriu para mim e depois para todas as convidadas. Não entendia parte daquelas palavras, mas podia ver pela expressão no rosto de Annalise que ela estava me defendendo.

— O conhecimento de Eleanor sobre geografia certamente é impressionante.

Annalise Ortiz não disse mais nenhuma palavra. O chá transcorreu tranquilamente com a ajuda de Victória, que não se importou em me incluir em todos os assuntos e me tornou o centro deles ao mencionar minhas presilhas ou minha habilidade de pintura.

— Seria encantador passear no parque e fazer alguns esboços, deveria se juntar a nós. — Giulia convidou e fiquei tão surpresa que Victória teve que responder em meu lugar.

Não entendia porque ela fez isso. Não entendi porque não aproveitou a oportunidade e me tornou uma excluída, não fez todos se voltarem contra mim.

Não somente se recusou a fazer isso, como ajudou e fez com que me encaixasse. Isso fez o chá infinitamente mais agradável. As xícaras esvaziaram rapidamente, risadas preenchiam o ar e houve promessas de novos encontros.

Ao final, depois de nos despedirmos de Willa e das demais meninas que ainda não haviam partido, meu peito estava aquecido com um sentimento tão bom que me senti menos triste por não ter esbarrado com o príncipe hoje.

Enquanto seguíamos até a entrada acabei não conseguindo me conter.

— Como fez aquilo?

— O quê? — perguntou.

— Como fez todas elas gostarem de você?

— Eu só sabia dizer sobre o que elas queriam que eu falasse, depois que conquistei o interesse delas foi fácil. São boas pessoas.

— Vão ficar furiosas se descobrirem que você mentiu sobre o Rio Argan. — avisei, tentando ser gentil e ela franziu a testa.

— Eu não menti. — respondeu. — Gosto de ler jornais e em um desses li sobre a mudança nos limites do condado. Achei interessante e fui pesquisar sobre a área com meu professor e descobri sobre o Rio Argan. Não estou mentindo, então não precisa se preocupar.

— E por que me ajudou? — ela pareceu ainda mais confusa com essa pergunta do que com a anterior. Demorou alguns segundos até entender que eu queria mesmo saber.

— Porque você é minha irmãzinha e devo cuidar de você. — respondeu. — Somos família. Não vou ficar assistindo alguém intimidar você sem fazer nada.

— Mas todos sabem que você é só minha meia-irmã. Todos vão dizer que não somos família. — disse porque Aileen sempre me relembrava disso.

— As pessoas comentam porque percebem seu desconforto, se você começar a chamar de irmã e começar a mamãe de mamãe, as pessoas não dirão nada. Não é algo complicado, afinal somos todas Blackwood, não é?

Madame Blackwood não demorou muito para aparecer e entramos na carruagem. Victória contou detalhes sobre o nosso dia e ela escutou com atenção enquanto eu as observava.

O modo como me defendeu de Annalise não saiu da minha cabeça. Ninguém me defendia assim desde mamãe. Victória também me defenderia de vovó se necessário, eu sei disso. Não tem medo dela.

Mamãe ficaria furiosa, mas ela não está mais aqui para me proteger. Mesmo quando ela estava, não conseguia me ajudar da forma como Victória me ajudou. Ela não só me protegeu, me ajudou a ser aceita.

Talvez, nós duas poderíamos ser irmãs de verdade se Victória não fosse tão bonita. Já tinha perdido tanto e não queria abrir mão do meu final feliz com o Príncipe James também.

Não queria abrir mão dele.

Se ela não...

Foi naquele momento, naquela carruagem, que percebi que talvez havia um jeito de pôr um final naquela angústia.

Talvez, não.

Existia.

— E você, Eleanor? Achou divertido?

— Sim, mamãe. — respondi com um sorriso e as duas não conseguiram esconder os olhos surpresos e sorrisos felizes. — Vivi me ajudou e foi divertido.

Observei o modo como Vivi sorria e pedi desculpas à minha mãe mentalmente. Sabia que ela odiaria, mas não queria mais viver nadando contra a corrente. Vivi poderia ficar com os quartos e o orgulho de papai e vovó, contando que não roubasse meu final feliz.

E se ela deixar de ser bonita...

Bom, isso não será mais um problema.


Bom, esse capítulo marca o fim do ato um e entramos no próximo onde vocês finalmente vão encontrar respostas para o que aconteceu na primeira parte de Vilã. Beijos e até o próximo capítulo!

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