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A confusão era total em sua cabeça. Não conseguia entender os sons, pensamentos, tudo era indistinto a não ser a sensação do corpo dilacerado. Desejava mergulhar na escuridão para não mais sentir o mal estar, e assim que o corpo formigou e a visão se tornou negra, foi tomado pelo pavor de estar prestes a morrer. Minúsculas bolas de luz bailavam pelo vazio, duas da cor vermelho vivo, cada vez mais próximas. Ganiu sem forças para se afastar, certo de que a Brusca avançava para exterminá-lo enquanto a escuridão o envolvia com dedos gelados.
Os sentidos retornaram a seu corpo que parecia aos pedaços, a cabeça a rodopiar e arder como se uma Brusca estivesse a rugir lá dentro. Assim que os olhos entraram em foco, vislumbrou resquícios da fogueira, tão pequenos que não o protegiam do frio intenso. O cheiro era dos mais desagradáveis, e assim que percebeu o chão imundo não só de sangue, como também do que pareciam restos de carne, o vômito pulou para fora sem que abrisse a boca, piorando ainda mais seu mal-estar. Trêmulo e com dores a irradiar por todos os lados, tentou se mover e a falta de manga em sua roupa permitiu a visão do braço repleto de sangue, mordidas, falta de carne, inclusive o osso à mostra. Novo vômito escapou junto à certeza de estar maluco. Levou a mão à barriga, sem saber o que pensar ao sentir os sulcos que tanto ardiam.
A ofegar com a dor, tentou ajoelhar e quase gritou. As pernas revelavam diversas mordidas e rasgos e, apesar de tudo vermelho e ensanguentado, não parecia mais sangrar. Sabia que não fazia sentido algum, certo de que estava a delirar. Ao medir o chão, avistou sinais de patas, de seu próprio retorcer inútil, sangue, pedaços, urina, fezes. Teria sentido humilhação se não estivesse tão assustado, confuso e dolorido. Foi com medo que ergueu a mão para tocar o rosto que parecia moído, e não soube dizer se gritou de dor ou terror ao tentar tocar a bochecha e seus dedos encontrarem a língua sem qualquer barreira.
Com novo desespero, lutou a ficar em pé como se assim pudesse acordar para a realidade. Afinal, só podia ser um sonho. Estava deitado na floresta ao lado do Graustro, preso no pior pesadelo de todos, com dentes a remover nacos de carne em tanta dor. Arquejou ao se apoiar na perna ferida e cambaleou quase cego, esforçando-se para respirar.
Ao escutar um ganido, avistou a Brusca caída ali perto, ainda viva, a barriga aberta com parte dos órgãos caídos pelo chão. A visão lhe arrancou outra onda de vômito e a pouca força das pernas, retornando-o ao chão com ainda mais desespero, pois agora também tinha a sensação de ser vigiado.
O mínimo farfalhar das folhas arrepiava sua pele. Gritos e rosnados fantasmas assombravam seus ouvidos. A dor era verdadeira agonia e, por vezes, se retorcia como se sentisse os dentes a arrancar pedaços. A saliva escorria pelo queixo sem nada a impedir, a língua a se movimentar incrédula pelos destroços da gengiva sem diversos dentes. Não demorou a soluçar alto, não só pela dor e por se sentir inútil, como por estar completamente sozinho. O buraco em seu interior não só crescera, passara a machucar com tanta força quanto os ferimentos físicos.
Mesmo com o resto da fogueira a ameaçar apagar, não fez menção de alimentar o fogo, sentindo que extinguia do mesmo jeito. A escuridão o observava faminta, os dedos gelados novamente a tocá-lo. E não havia nada ou ninguém. Nunca teve. Apenas a solidão a enterrá-lo com todas as suas dúvidas e medos.
O farfalhar da árvore sacolejou seu peito de susto. Mal conseguiu erguer a cabeça, avistando o vulto a se aproximar dos restos da fogueira. Era um rapaz de cabelos parecidos com palha seca, espetados para todos os lados. O estranho o media com curiosidade, os olhos a brilhar como dois faroletes, totalmente vermelhos, sem pupila.
– Não vai gritar? – perguntou com um sorriso enviesado nos lábios. – Ah, calem a boca. Não tenho nada a ver com isso. – resmungou, tornando a encará-lo com a expressão zangada. – Se eu não visse, nunca teria imaginado que pudessem tirar alguma carne daí. – riu ele.
– Porfavo... – Zheth se calou com a dor a atravessar sua cabeça. O estranho deu um passo para trás, os olhos arregalados e nenhum sorriso no rosto. Parecia simples, sem carregar nada, e provavelmente não poderia ajudar nem fazer qualquer coisa, ainda assim, o pedido tornou a escapar de sua boca, mesmo com todo o ardor. – Ajuda...
– Ah, eu sei, eu sei. – resmungou a menear a cabeça. – Devo dizer que foi interessante de assistir como as criaturinhas ridículas conseguiram desfazer de você sem dificuldade. Chegou a ser deprimente, guinchou igual uma fêmea a dar cria.
A sentir o que sobrava do rosto arder de vergonha, Zheth acabou por sentir raiva. E não adiantava culpar o estranho, Iasam, Kallemott e seus rapazes mal educados. Ele era o problema. Um mísero magrelo fraco e covarde. Sua ira foi ainda maior por tornar a cair no choro alto.
– Que importa? – vociferou o outro. – Não tenho nada a ver com isso. Nenhuma razão para interferir. Devia ter deixado para os animais. Ajudar um ninguém que não vai sobreviver seja sol ou lua não é da minha conta.
Zheth se encolheu assustado com o rapaz a reclamar sozinho. Achava que nada seria pior do que estar perdido e ferido no escuro, e agora estava em companhia de um completo maluco.
– Não passa de uma troça imunda. Que me importa? Que fale a língua que quiser, não é da minha conta! Tudo acabou, não tem para que pensar a respeito. Nada mais é da minha conta!
O ser soltou um rosnado alto ao revirar os olhos. Zheth sentiu o corpo congelar, sem poder sair do lugar conforme aquele rapaz se aproximava e o segurava com força. Tudo escureceu, a não ser por brilhos esparsos a revoar, os olhos do rapaz a resplandecer como se em chamas conforme se aproximava de seu pescoço. Cerrou os olhos, apavorado enquanto a dormência se espalhava por seu corpo. Por mais que a dor diminuísse, não conseguia sentir alívio, pois não queria morrer. Infelizmente, tampouco tinha meios de escapar.
Como se algo o esmurrasse, Zheth abriu os olhos a ofegar. Piscou lerdo para o estranho rapaz que se afastava a capengar, sentindo-se mais que confuso, principalmente ao olhar seu próprio braço. Não havia mais rasgo ou falta de carne. A conseguir se movimentar, analisou o resto do corpo, e a barriga e as pernas estavam quase completamente inteiras. Levou a mão ao rosto e encontrou a boca e bochecha, além dos dentes pela gengiva intacta. Estava mais que confuso, o chão ao redor ainda com os sinais de toda confusão com as Bruscas, deixando claro que não foi sonho. Tornou a encarar o estranho de costas, certo de que, de alguma forma, o havia curado.
– Obrigado. – gaguejou ainda descrente, feliz em conseguir falar sem tanta dor de cabeça. – Não imagino o que ou como fez isso. Muito obrigado.
– Não vai sair correndo? – perguntou o outro, a voz embolada e estranha.
– Por quê?
O rapaz se virou para encará-lo, e Zheth prendeu o ar. Não pelos olhos rubros ou pela expressão de raiva e surpresa, mas pelo rosto desfigurado, sem parte da boca e da bochecha. Baixou os olhos e, apesar de não poder ver a barriga e pernas daquele estranho, não duvidava que estavam cheias de mordidas e ferimentos tão terríveis quanto nos braços à mostra na regata que trajava. Desviou os olhos, sem compreender, apesar de grato àquele estranho, que o mediu com a expressão atônita antes de cambalear para perto da Brusca caída.
– Quem será ele? – o rapaz perguntou sozinho, arrastando o animal pela cauda.
A cerrar os olhos para não ver a cena, Zheth tornou a tocar o rosto com incredulidade. Havia algumas mordidas pelo corpo, entretanto, eram superficiais, o ardor longe de ser insuportável quanto antes. Ia tornar a agradecer ao estranho, entretanto, descobriu-se sozinho em meio às árvores.
Com o frio cada vez mais intenso, alimentou a fogueira com mais galhos caídos, sem conseguir melhor resultado. Encolheu-se perto do fogo, mantendo as costas para a sujeira ao chão, tremendo sem saber o que pensar ou sentir. Estava mais que confuso e infeliz, aterrorizado por tudo que passou naquele lugar. Ficou concentrado, a querer reunir forças e coragem para levantar e andar, sem parar de se sentir vazio. Sem rumo, caminho, companhia, lembranças, sem nada.
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