5
Fisicamente, Zheth se sentia formidável. A pouca dor era suportável, os hematomas desapareciam, nem usava mais a bengala. Ao contrário do resto do corpo, a mente relutava em cooperar, deixando-o perdido com relação ao futuro. Já sabia o que ou como falar com os Kallemottanos, assim como evitar ser alvo dos rapazolas. Não errava mais nenhum verso da encapuzada, mesmo que persistisse a detestar aquela música. Apesar de tudo, sentia-se deslocado. À exceção de Cristialli, sempre simpática e pronta para ajudar, havia certo distanciamento com a aldeia, pois ele não passava do rapaz misterioso que significava seu nome.
– Meu jovem... – disse Mjehad. – Está muito melhor agora. Deve começar a pensar nos sóis por subir. Por Írmia, já leu, releu, até redesenhou mapas. Precisa soltar os livros e realmente explorar a ilha.
De rosto rubro, encarou o chão. Não queria soar ingrato, tampouco abusar da hospitalidade. Por mais que desejasse visitar outros lugares, também era invadido pela sensação de quando foi convidado para sua primeira refeição ao luar. Estava com medo.
– Se estiver muito preocupado, posso traçar um caminho bem simples para visitar lugares próximos e retornar para cá. – continuou o homem. – Que seus sóis já postos não se encontram em nossa aldeia, isso você já sabe. Explore a ilha e a mudança de ambiente pode favorecer suas lembranças. De repente se depare com algum lugar que já visitou antes.
Sem saber o que dizer, ficou mais que grato quando Cristialli o convidou para levar os gunnas ao pasto. Acompanhou em silêncio, cada vez mais apreensivo, principalmente ao rever o prado de Callior. Por mais que tentasse ignorar as vozes distantes, o rosto ardeu assim que escutou "esse saco de ossos ainda está aqui?". Mesmo que não se sentisse pronto, teria de ir embora. Não era bem-vindo. Provavelmente não o seria em nenhuma aldeia que visitasse. Esperava ao menos criar confiança para sair por Crônomis em busca de respostas.
Cristialli seguia com sua tarefa sem fazer menção de ouvir os sussurros e risadas, e Zheth a imitou. Observou os altos quadrúpedes a pastar ali perto, tão diferentes dos rabiscos em seu livro. Pelas informações, aqueles eram Graustros, seres orgulhosos e poderosos. Eram altos, fortes, de pelos negros, pernas finas, mas musculosas. Por alguma razão, esperava encontrar cascos ao fim das pernas, contudo, a patas eram compostas de três garras afiadas. Também achava que a cauda deveria ser de pelos iguais aos da crina, e era comprido, no que sua mente julgava como o de um lagarto, por mais que não fizesse a mínima ideia do que era um lagarto. O focinho longo com nariz de fenda revelava a respiração forte do animal, e os olhos amarelos demonstravam imponência.
– Eu adoraria ser sua guia. – Cristialli disse de repente, a respirar fundo. – Papai disse que seria um ultraje, e eu provavelmente seria banida e ter meu cabelo cortado.
Zheth engoliu seco com o rosto rubro. Estivera a ensaiar um modo de perguntar a Mjehad se não poderia ser acompanhado por Canovéraz. Só não tinha feito ainda por medo de soar ofensivo. Respirou fundo, humilhado pela própria covardia.
A perceber seu mal-estar, Cristialli convidou a subir o monte. Desta vez, não teve dificuldade, pois o ardor das pernas era mínimo. Assim que alcançou o topo demarcado, admirou a paisagem que não havia percebido da outra vez. O campo a se estender com animais a pastar. Florestas a perder de vista.
– De tudo que eu conheço, este é meu lugar favorito. – disse a garota. – Aqui em cima, é como se tudo pudesse ser diferente. E foi aqui em cima que eu o encontrei. – ela sorriu diante de sua surpresa. - Sabe que precisa partir, Zheth. A verdade é que eu também quero. A vida em Kallemott é boa, mas imutável. Os mesmos trabalhos, conversas, sóis e luas. E então algum rapaz irá trançar meus cabelos e se tornar parte de mim. Afora o cabelo, a diferença estará em ter filhos para ensinar. E esperar o último sol subir ao meu céu. – discreta, secou os olhos marejados, observando a paisagem sem muito interesse. – A maioria ficou incomodada com sua chegada. É por isso que querem que vá embora, para retornar à mesmice de sempre, sem surpresas, sem nada. – a se calar, permaneceu no mais completo silêncio por um longo período. – Quando eu era pequena, a Jovem Sá visitou nossa aldeia. Ela tinha uma linda voz e cantou uma música que se referia a Írmia. Contam luas antigas, que Írmia vivia em sua pequena ilha, que nunca apresentava nada diferente, todos os sóis eram iguais. Por causa disso, as mais novas nunca foram ensinadas sobre perigos, e a irmã gêmea de Írmia morreu por causa desta inocência. Ao perceber que a mesmice também apresentava risco, Írmia abandonou sua ilha para cruzar Crônomis, e assim seu poder cresceu e a tornou a Dona do Destino. O que realmente importa é o perigo da mesmice. Com tudo sempre igual, você baixa a guarda, perde seu propósito, fica preso ao mesmo... Fará bem em deixar Kallemott. Aqui não há nada. Nunca teve, nunca terá. Mas estou feliz em ter esperado. – ela se virou para encará-lo com os olhos brilhantes. – Eu queria ter partido junto com a Jovem Sá, e fiquei tão magoada quando não permitiu. Ela me confiou um presente e pediu que eu esperasse. Disse que chegaria alguém especial. Sempre duvidei e, ainda assim, permaneci aqui. – a estender a mão, lhe entregou uma runa branca. – Papai vai lhe traçar um caminho rápido e seguro, estará de volta em três sóis. Mais confiante, talvez com o nome de sua casa nos lábios.Vou esperar seu retorno. E estarei preparada para partir em seguida. Talvez então não precise ir sozinha. – Zheth ergueu os olhos da pedra esbranquiçada, sem saber reagir diante daquela fala. – Aqui só existe a mesmice. Sem novidade, não há vida. Se não há vida, para que ficar? Não peço que compreenda, está cheio de suas próprias preocupações. Apenas saiba que, se não quiser sair dessa ilha sozinho, ficarei mais que feliz em acompanhá-lo.
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