2
Os dedicados cuidados e constante alimentação tornaram sua melhora notável com o passar do tempo. Existia satisfação em se levantar sozinho, sem mais tontura, mesmo que as pernas doloridas ainda o obrigassem a se apoiar na bengala cedida por Mjehad.
Passava a maior parte do tempo no quarto simples, aproveitando para ler os curiosos livros no armário ou se arriscar em andar sem bengala, o que rendia tombos dos mais doloridos.
A vista da janela permitia avistar a aldeia e a floresta que se erguia logo em seguida. Evitava ficar ali ao sol, já que a maioria dos aldeões que passavam lhe lançavam olhares assustados, desconfiados, enojados, ou uma mistura de tudo. Não passava de um estrangeiro para eles e, diante daquelas expressões, incomodava-se por ser um estranho para si mesmo. Por mais que tentasse, não conseguia recordar nada, sem saber quem era, por que estava ali, muito menos a razão de ter sido encontrado tão ferido.
No entanto, quando a lua se erguia ao céu, depois que os aldeões terminavam a reunião ao redor da grande fogueira e retornavam para casa, ele podia ficar à janela para contemplar a paisagem sem mais olhares estranhos em sua direção. Por mais que não recordasse de nada, o céu noturno lhe era curioso, com estrelas em posições que julgava estranhas ou erradas, a lua de um brilho enevoado a parecer uma pérola ao céu. Sempre que pesadelos o acordavam, aproximava-se da janela para se acalmar diante da infinidade faiscante ao alto e, certa vez, deparou-se com uma cena mais bonita. A lua se retirou, e a coloração roxa do céu adquiriu um tom ainda mais profundo, pontilhada de estrelas. Por alguma razão, calor invadiu seu peito, deixando-o tão tocado que começou a despertar cedo para contemplar aquele infinito.
Naquela manhã, após revigorante banho gelado, vestiu a roupa feita sob medida, do que parecia juta verde escura, sem recordar quais vestimentas costumava usar. Adentrou o cômodo para o desjejum, que sempre o deixava apreensivo, tanto pela ideia de acender fogo dentro de uma casa de madeira e palha, quanto pela estátua à janela. Não conseguia apreciar aquela coisa, muito menos julgá-la bonita, pois mais parecia um amontoado de panos até mesmo macabro. Segundo Mjehad, era a representação de Írmia, a mais famosa criatura de Crônomis.
O casal fez questão de lhe ensinar o quanto antes as honrarias devidas à criatura, ou ele não seria digno de se sentar à mesa para comer. A ignorar seu mal estar, colocou um pão ao pé da estátua, sempre com o cuidado para não tocá-la, depois juntou as mãos, encurvou-se e proferiu as palavras esperadas. Por mais sem graça que se sentisse ao fazer aquilo, não queria ofender aquela família. Muito menos depois de ter escutado explosões de fúria da mulher e ter certeza de que não era boa ideia contrariá-la.
A refeição era servida em uma tábua baixa, toda talhada com animais dos mais estranhos, e ele aceitava comer tudo que não carne. Arriscava experimentar até o que parecia estranho, por vezes a descobrir gostos deliciosos, em outros momentos a engasgar e engolir vários copos de água para disfarçar o mal estar.
– Está caminhando bem, rapaz misterioso. – começou Mjehad, após terminar a refeição. – É meu sol de levar os gunnas. Caso se sinta disposto, pode me acompanhar. E se sentir que está forte suficiente, o convidarei para comer à lua.
Sem imaginar o que eram gunnas, meneou a cabeça, certo de que dar uma volta fora da casa seria agradável. Também apreciou a chance de comer na praça, sempre podia escutar as conversas e cantorias das reuniões das famílias ao luar. Mjehad só não o levara até aquele momento por medo de que passasse mal. Ou por não confiar em mim, pensou amuado. Não que pudesse culpá-lo. Queria ao menos lembrar o que fez para aparecer tão machucado naquela aldeia.
– E precisa de um nome, por Írmia que precisa. – continuou Mjehad.
– Nomes são importantes. – resmungou Crizhad, olhando-o de relance. – Ele é o rapaz misterioso. Que esse seja seu nome até que recorde o verdadeiro.
– Tudo bem... – murmurou com um dar de ombros enquanto a filha do casal revirava os olhos. – Pela língua antiga, seria Zheth!
A conter um suspiro, ele se sentiu diminuto ao receber o nome com aquele significado, e de forma que lhe pareceu de tão pouco caso por parte da mulher.
Persistiu desanimado ao seguir Mjehad pela trilha de pedras bem cuidada. Os aldeões persistiam em suas tarefas sem olhar em sua direção, e ele respirou fundo. Podia não recordar de nada, mas era mais que evidente não pertencer àquela aldeia. Todos tinham corpos robustos, tornando o seu ainda mais magro. A cor de pele morena o deixava como um fantasma descorado. Os cabelos eram lisos, escuros e grossos, enquanto o seu era castanho e fino. Considerou desrespeitoso perguntar, apesar de acreditar ser regra: homens de tranças curtas, mulheres de tranças longas, jovens e crianças de cabelos soltos.
A aldeia era limpa e bem cuidada, organizada de forma humilde, com uma trilha de pedras no chão a guiar até o chamado pátio central. As casas de madeira e palha só eram diferentes nas decorações ou tamanhos, que variavam de acordo com a quantidade de membros da família. A maior construção era de proteção aos gunnas, baixos quadrúpedes que pareciam bolas de pelos amarronzados, e por uma razão qualquer sua cabeça teimava em chamá-los de ovelhas.
Mjehad pastoreou os animais pelo caminho sem demonstrar cansaço, enquanto ele seguia cada vez mais lento, a respiração ofegante. Desviou a atenção ao entorno para se distrair, prestando atenção ao estardalhaço dos pássaros pelas frondosas árvores, os pequenos animais a saltar por entre galhos. Ao longe, podia divisar casas e, por vezes, pessoas distantes acenavam. Era bonito e pacífico, e sua única certeza era de nunca ter passado por ali. Ao menos, não de forma consciente.
– Por Írmia, anime-se, rapaz misterioso. – disse Mjehad. – Melhora a cada sol e, mesmo sem memória, consegue pensar, conversa, e já aprendeu as honras de nossa querida Írmia. Isso é um bom sinal para quem sequer parecia capaz de sobreviver.
Forçou um sorriso para transmitir uma animação que não sentia, pois tinha gratidão pelos cuidados que recebia, só que nada tampava o buraco em seu interior. Um espaço negro e vazio a crescer desesperado para ser preenchido por respostas que não chegavam. Que talvez nunca chegassem.
– Não sei quem sou. – murmurou a desviar os olhos ao chão, infeliz diante daquela verdade. Não fazia a menor ideia de quem foi ou o que fez. – E se eu fiz algo... Coisas ruins que mereceram punição...
– Também temos esse medo. – respondeu sem rodeios, a apertar seu ombro. – Tem se mostrado bom e educado, e eu adoraria afirmar que nada fez de errado, mas assim como você, eu não sei. Írmia lhe cedeu uma nova chance ao deixá-lo sobreviver. Não desperdice isso, rapaz misterioso.
– Como sabe que ela quem fez isso?
Mjehad estacou com o rosto tão fechado que Zheth se encolheu mais que o normal, a corar de vergonha.
– Sei que está sem memória, por isso vou relevar. – esbravejou. – Írmia é elevada demais para ser tratada com desdém ou por um simples 'ela'. Pode ter certeza que não fosse por Írmia, estaria morto.
O homem recomeçou a andar com passos duros, a competir com o barulho dos cascos dos gunnas. A se sentir mais sozinho que antes, Zheth se apressou ao seu lado, mesmo que isso lhe custasse algumas pontadas de dor a mais.
– Sinto muito. – disse sem graça. – Não tive intenção de desonrar Írmia, e muito menos desonrar quem tem cuidado tanto de mim, Mjehad. Saiba que não tive intenção de zangá-lo. Se não puder perdoar, vou embora...
– Não precisa sair da aldeia ainda. Írmia é sagrada demais, não suporto desrespeito ao seu nome. – apesar do rosto carregado, o homem sorriu.
Zheth preferiu guardar silêncio pelo resto da caminhada, os pensamentos presos ao 'ainda' em sua fala. Era bem tratado, recebia alimento e teto, contudo, não se considerava exatamente bem-vindo.
Qualquer animação para caminhar ou avistar coisas novas começou a ir embora, deixando espaço para o cansaço em suas pernas. Foi com alívio que avistou a planície coberta pelo tapete verde de grama fresca, um pequeno monte a reinar soberano ao centro. Mjehad cumpriu suas funções com os gunnas antes de se sentar ao seu lado em pedras chatas, explicando que, todo sol, os animais eram levados para pastar em diferentes prados. Certa vez, os animais reagiram de forma estranha ao chegar ali e, ao subir para averiguar o cume do monte, o corpo caído foi encontrado. O seu corpo caído.
– Não imagino motivo para alguém feri-lo daquela forma. Muito menos para deixá-lo ao topo de Callior. – disse o homem, franzindo a testa. – As aldeias vizinhas sabiam menos do que nós e, até esse sol, não apareceu ninguém perguntando a seu respeito.
Sem saber o que pensar, Zheth observou o monte, e como não o considerou tão elevado, resolveu ir ao topo. Ao meio do caminho suas pernas já ardiam pelo esforço. Não fosse a bengala, sequer poderia continuar. A arfar e suar, ficou ainda mais encabulado em notar Mjehad a não esboçar qualquer sinal de cansaço.
Conforme se aproximava do cume, reparou a mudança na vegetação baixa. O verde se tornou amarelo, mais adiante acinzentado, depois queimado, então apenas a terra dura. Seus olhos negros pararam hipnotizados pela marca no solo destruído. O feio sinal a demarcar a origem do que parecia incêndio. Esforçou-se a relembrar qualquer coisa e a única imagem que conseguiu visualizar, borrada pela poeira e fumaça, era composta de destroços e corpos. O sentimento de solidão aumentou junto ao medo.
– Rapaz misterioso... – chamou Mjehad, pousando uma mão em seu ombro. – Por Írmia, não precisa chorar.
Surpreso em descobrir as lágrimas e humilhado por não conseguir contê-las, Zheth seguiu morro abaixo sem parar de tremer. Fez grande esforço para não cair, pois suas mãos estavam molhadas e escorregadias, sendo preciso apertar a bengala com força para não perder o apoio. De volta à planície, tornou a sentar, sem encontrar nada que pudesse falar, assombrado tanto pelas ruínas como pelo vazio em sua cabeça.
Virou o rosto ao escutar vozes distantes. Devido à vista marejada, vislumbrou vultos de homens a pastorar animais baixos, além de manchas negras e altas a percorrer o campo. Nenhum deles se aproximou, apesar de Zheth escutar a frase 'Quem é aquele puro osso?'. Como se não bastasse, depois escutou 'Agora ficou vermelho.'. As risadas pareceram golpeá-lo, deixando-o com raiva e vergonha. A ignorar as risadas, tentou pensar em um meio de se distrair.
– Onde estamos? – perguntou sério.
– Aqui é a planície Callior. Seu quarto fica na Aldeia Kallemott. Pode chamar de Kalle se for mais fácil. – sorriu o homem. – Nosso sol está sobre uma das treze ilhas Crihma, no mundo de Crônomis.
A respirar fundo, Zheth encarou o céu. Nada lhe soava familiar. Sequer conseguia repetir os nomes que acabara de ouvir. Mjehad pediu que tivesse bom ânimo, pois lhe mostraria mapas mais tarde, o que o encheu com a expectativa de encontrar um nome conhecido e recordar tudo.
– Posso perguntar quem são eles? – perguntou sem muita vontade, apontando a cabeça para os homens com seus animais.
– Pertencem a aldeias vizinhas. Geralmente, nos ajuntamos e conversamos. Como estou em sua companhia, eles não se aproximam.
– Por eu ser diferente?
– Não, por Írmia que não. Faz parte de nossos costumes. Não nos misturamos com visitantes dos outros. Como não o conheço direito, não tenho como apresentá-lo, nem como levá-lo em uma festa entre aldeias.
Zheth meneou a cabeça. Não fazia questão, pois não sentia qualquer animação para festas. Menos ainda para ser motivo de chacota dos outros.
– É bom que fale minha língua, pois não terá problemas para se comunicar em nossa aldeia, nem por algumas outras vilas pela ilha. E isso significa que é Crônomiano. Por Írmia, apareceu de forma tão estranha que alguns pensaram que não era daqui.
– E de onde eu poderia ser? – gaguejou confuso, sem fazer a menor ideia em que idioma estava falando.
– Qualquer lugar. Crônomis não é o único mundo que existe.
A se remexer incomodado, desejou ser brincadeira de Mjehad, mas o homem carregava o mesmo rosto sério de sempre. Respirou fundo, certo de que era muita coisa para uma manhã só.
Mais encurvado que antes, tanto por exaustão como por infelicidade, seguiu Mjehad assim que o pasto dos gunnas foi encerrado.
– Por Írmia, não fique tão afetado. Pode sempre buscar a ajuda de Írmia. – ele levou a mão ao peito com devoção. – Seria uma viagem longa e arriscada até o grande deserto de Crônomis. Mais difícil ainda cruzar as areias. A recompensa seria encontrar a sábia de vários nomes, a nossa querida Írmia. Írmia pode falar sobre sóis já postos, sóis ao céu ou sóis a nascer, pois conhece tudo e todos. Certamente não será de graça, e o pedido de Írmia pode ser mais árduo do que a jornada pelo deserto.
Zheth fez o possível para não demonstrar no rosto o quanto a ideia o desagradou. Só de imaginar encontrar aquela criatura coberta por diversos panos lhe causou calafrios. Acabou por dar de ombros, certo de que preferia esperar a cabeça se alinhar. E não soube reagir quando Mjehad parou de andar para encará-lo com descontentamento.
– Por que deu de ombros? – perguntou quase furioso.
– Eu... Eu só pensei que não poderia visitar... – parou antes de soltar 'ela' e deixá-lo ainda mais nervoso. – Não teria nada para dar em troca. Nem mesmo essa roupa me pertence.
– Ainda não entendeu? – repreendeu Mjehad. – A maior honra seria encontrar Írmia, a Grande Sábia e Dona do Destino. Írmia nunca vai pedir o que você não tiver! E se o Deserto não o considerar digno, sequer chegará a ver a sombra de Írmia! Então é melhor ter mais respeito. – exclamou, e Zheth conseguiu balbuciar um pedido de desculpas. – Use a falta de memória para guardar bem isso. Írmia merece toda honra. Posso tolerar muita coisa, não que destrate a divina Írmia. Claro que, se achar que a viagem é muito perigosa, pode tentar a sorte com criatura inferior. Os Laerths vivem em caravanas e oferecem estadia a qualquer um que passar por suas portas abertas. Ao luar, fazem festa e, por vezes, Triiny aparece e revela ou fala com alguém sem pedir nada em troca.
Para evitar transtornos, Zheth não fez qualquer pergunta ou comentário, além de manter a postura e rosto sem alteração, e ficou mais que feliz pelo silêncio que se seguiu. Realmente era muito para uma manhã só.
---------------------------------------
<3
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top