⇝ CAPÍTULO 19: O espírito da Água

   As nuvens apontavam no céu azulado. Havia um vento aconchegante e Oliver e Mya estavam estirados num extenso gramado olhando para a imensidão azul acima de suas cabeças.

   — E agora? – perguntou Mya.

   — Não me pergunte. – respondeu Oliver ao respirar fundo. — Minha parte foi feita. Tirei-nos daquele lugar. – e ambos riram timidamente.

   Havia resquícios de mato e folhas no corpo de ambos. Terra e crostas de lama colados em suas roupas.

   O colete azul coberto de sujeira estava tão escuro quanto a roupa negra e interna.

   — Sabe onde estamos? – e Mya fechou os olhos, exausta de tudo que vinha acontecendo em sequencia.

   — Continuo sem a menor ideia.

   Eles estavam de fato mais perdidos do que nunca, mais do que antes. Poderiam estar à um passo do Reino do Fogo, poderiam estar à metros da Fortaleza Elfica ou a um quilometro de onde Trolls dormiam e não possuíam a menor noção.

   Quando Oliver se levantou, apalpou suas vestes. Uma breve limpeza, retirando alguns galhos colados a roupa, agora imunda e até mesmo descartável.

   Notou que a rapieira havia rolado mais que eles, e estava atrás. Para sua surpresa, a arma de Dumas estava jogada próxima a uma pequena ponte de pedras, que cortava um pequeno riacho e incrivelmente fazia ligação com um terreno dominado por pequenos casebres velhos e pequenos.

   Oliver marchou mansamente e a pegou, agora observando o que havia do outro lado.

   — Mya. – disse receoso. — Veja isto.

   Sua amiga se ergueu, com o rosto manchado de terra e grama.

   — Será que podem nos ajudar? – comentou. — Estou com fome.

   — Está louca? – bradou curiosamente. — Não podemos ir até lá. Não sabemos quem vive nessas casas.

   — Nós já estamos perdidos, então, me dê licença. – e a garota deu de ombros a Oliver, atravessando a ponte.

   Oliver pensou por alguns segundos. Não tinha muito o que fazer e logo deu a andar atrás de Mya.

   — Espere. – pediu. — Estou indo junto.

   Quando tracejaram aquele terreno relvado, se assemelhava muito a um campo, com algumas plantações atrás da coleção de casebres e deveras humilde.

   Mya dirigiu-se a primeira delas, e todas eram semelhantes. Bateu por duas vezes, mas não houve resposta.

   Oliver passeou pelo local, mas não notou nenhuma presença, assim, retornou a companhia de sua dupla.

   — Ninguém atendeu?

   — Não. – respondeu Mya, enquanto tentava olhar por alguma fresta de madeira da porta. — Já bati duas vezes.

   — Curioso. – e Oliver voltou a olhar para o restante do local. — Dei uma volta, não vi nenhuma movimentação.

   O mesmo recostou-se na parede, e seu cotovelo se encontrou com a janela, que de imediato rachou e foi quebrada. Oliver saltou-se num belo susto.

   Mya agora decidiu quebrar a porta.

   — Não há ninguém aqui. – e ambos se olharam.

   — O que será que houve?

   A dupla vagarosamente olhou para cada canto na pequena casa. Estava praticamente intacta.

   Havia alguns espelhos quebrados, é verdade, mas o restante estava a pleno funcionamento.

   Internamente, decorada com castiçais nas paredes, esculturas em madeira ornadas. Também se notava uma pequena lareira – apagada, e uma mesa de madeira, circulada por cadeiras pequenas que seguiam seu modelo.

   — Eu acho bonita. – opinou Oliver, enquanto passava os dedos pelos espelhos quebradiços.

   Mya esfregou seus dedos numa das cadeiras, e o mesmo foi coberto por poeira, e ela tratou de limpar nas próprias vestes.

   Perspicaz – e esfomeado, Oliver encontrou um cesto com frutas, próximo a um candelabro pequeno noutro cômodo. Seus olhos saltaram, e sequer pensou duas vezes em roubar uma maçã.

   — Tira a mão! – gritou Mya. — Deixa de ser intrometido. Isso tem dono! Alguém mora aqui.

   — Não mora não. – respondeu desesperado. — Não tem ninguém nesse lugar, e eu estou com fome. – e deu com os dentes. Estava uma delícia.

   Mya pensou bastante, mas puxou uma das cadeiras e se sentou, havia pelo menos seis ali. Deu um bom suspiro, e notou que havia um pedaço de papel próximo ao pé da cadeira seguinte.

   Manchado, ela o pegou, passando os dedos e retirando a sujeira que ali havia.

   — Olhe.

   Oliver se virou, ainda mastigando a fruta.

   — E me chamou de intrometido.

   — Estava no chão. – ela levantou, mostrando a ele.

   — Então leia.

   Mya esticou um pouco o pequeno papel, e havia escrituras em letras bem garranchosas. Olhou novamente para Oliver e iniciou a leitura em voz alta.

   — "Para minha esposa, Ruka. Estive nos Campos Verdes na última semana. A colheita este mês foi de grande valia. Passei boas horas por lá, junto a Gudral e Bazâd, enquanto fumávamos Erva-Preta e realizávamos a tarefa.

Espero que quando eu retorne, Brandeburg esteja bem, e que o Salão de Valamar ainda brilhe como antes.

Também gostaria de saber sobre a espada que Grafkar forjou para Borin. Disseram-me que estava tão reluzente quanto o sol em seu ápice.

De Randail, filho de Paradail, filho de Khadail.

Para sua família. Khazak, khazakar!"

   E fez-se silêncio na pequena morada. Ambos se olharam, o sol se extinguia lá fora, e Oliver colocou a maçã acima da mesa.

   — Isso pertence aos Anões. – disse Mya com frieza.

   — Mas onde estão eles?

   — Precisamos sair daqui. – rugiu Mya, se levantando. — Os Salões de Valamar foram tomados pelos Orcs. Os Anões foram expulsos de sua própria casa. Esta é a história. Agora estamos na casa dos Orcs.

   Mya pegou algumas frutas no cesto, e se pôs a sair.

   — Espere. – disse Oliver em voz alta. — Eu verifiquei, não há ninguém aqui.

   — Não percebe? – indagou Mya. — Essas criaturas não vivem sob a luz do sol. Você sabe disso. E ele está sumindo. Quando a noite chegar, isso aqui estará tomado por aquelas criaturas, e eu não quero vê-las novamente.

   A garota já havia devorado uma maçã enquanto saia, e o bilhete de um dos Anões, estava dentro de seu colete.

   Oliver percorreu o caminho novamente, e parou Mya ainda na ponte de pedras.

   — Precisamos ficar. – disse. — Nós não temos nada, e mais... – mas Mya o interrompeu.

   — Você bateu a cabeça durante a queda? Que parte dos "Orcs retornarão quando a noite chegar" você não entendeu?

   — Deixe-me falar. – e Mya contorceu os olhos.

   — Então fale.

   — Você viu a casa. Está inteira. – refutou, agora gesticulando. — Acha mesmo que Orcs vivem por aqui?

   — Faz sentido, mas não me convence. Precisamos partir.

   — Eu circulei pela região. Todas as casas são semelhantes. Não há nada aqui. Por algum motivo, os Orcs não permanecerão após expulsarem os Anões. – Oliver pigarreou, e o frio da noite se aproximava. — E partir? Para que lugar? Sequer sabemos onde estamos. Temos um pouco de comida por aqui, e olhe, por incrível que pareça, não estão estragadas.

   Mya se cobriu por indignação, pois Oliver realmente não estava errado por completo.

   — Mas só por uma noite.

   — Tudo bem. Amanhã ao anoitecer nós sairemos daqui. Não sei para onde, mas sairemos, se é assim que deseja. – e Oliver esticou sua mão, e a amiga apertou-a, como um singelo acordo.

   Retornaram para dentro da morada de outrora, e Oliver se esforçou para prender a janela derrubada por ele mesmo, e contou com a parte superior de duas cadeiras.

   A porta, quebrada por Mya, foi posta de pé novamente, e Oliver a deixou rígida com a mesa e uma cadeira, prendendo-a e deixando-a resistente no local que lhe é direito.

   Havia dois quartos, pequenos e pacatos, como o restante da residência. Duas camas em cada, e todas elas eram muito pequenas. As paredes, rachadas e muitas delas cobertas por pedaços de teias de aranha.

   — Por que não fazemos assim? – Oliver foi a um quarto, e mostrou a Mya, que estava na porta, a sua ideia.

   Juntou as duas camas, aumentando seu tamanho e formando uma só, cabendo ele.

   — Faça no outro. E durma por lá.

   Mya esboçou um leve sorriso, e Oliver prosseguiu, meio timidamente.

   — Bem, não é tão confortável, mas agora nossos pés não ficarão para fora. – e sorriu com o canto da boca. Mya fez exatamente como o amigo lhe ensinou, e foi a primeira a dormir.

   Foi-se o sábado. Embate com goblins, prisão, fuga e conhecimento sobre os Anões. Histórias não faltaram para ambos naquele dia, mas tudo ligava a apenas uma coisa, a busca pelo desconhecido, o objetivo da missão, e isto, perpetuava na cabeça de Oliver incessantemente, e ele já havia entregado os pontos. Não sei o que fazer.

   Foi assim que ele acordou no domingo. Faltava um dia para o Equinócio, mas ele já não se preocupava tanto com isso. Havia fracassado, sabia disto.

   A manhã foi de calmaria. Realmente não havia Orcs, e Mya inspecionou o local com seus próprios olhos. Sem criaturas malignas. Tudo estava do mesmo jeito.

   Descobriu que havia poços enormes e cheios atrás de cada pequena casa, junto a algumas plantações observada por Oliver em momentos anteriores, e isto foi de bom grado, pois a mesma pode retirar parte da insólita sujidade em suas roupas.

   Não ficou muito bonito, mas deu um ar um pouco mais límpido. A mesma mostrou a Oliver, que realizou o mesmo ato posteriormente.

   Mya e Oliver foram ao riacho que cortava a localidade, e ali optaram apenas por molharem os rostos e as mãos. Havia poucos e pequenos peixes, e era visível pela água clara e bela que escorria.

   Eles também perceberam que o riacho não era tão pequeno, pois o mesmo dava uma breve volta pelas matas laterais, e circulava uma morada um pouco maior que todas estas.

   Este, era uma construção de pedra. De formato curioso, e era composto por um extenso gramado, que agora era similar a apenas mato alto.

   — Não quer ver o que tem lá? – perguntou Oliver, com um sorriso debochado no rosto.

   — Querer é uma coisa. – respondeu. — Mas não devemos nos arriscar.

   A tarde não foi de grande proveito, Mya continuou estudando as casas que um dia pertenceram aos Anões e Oliver passou um longo período tentando manejar a rapieira de Dumas, mas era pouquíssimo habilidoso. Por duas vezes, quase quebrou a arma. Se Dumas estivesse entre eles, daria uns bons sopapos no garoto.

    Conforme a tarde passou e a noite se aproximou, Oliver e Mya se encontraram numa elevada região composta por plantações diferenciadas dos Anões – hoje, não abundantes.

    Dali, puderam ver a imensidão noturna que se punha sobre eles, e depois de quase um dia, Oliver parou para pensar que a ideia de sair à noite e a pé não foi muito boa, e agora conversavam a respeito do que fazer e como fazer.

   — Você não pensou direito.

   — Eu só havia comido uma maçã. – respondeu desviando o olhar e ironizando. — Talvez fosse a fome atrapalhando meu raciocínio.

   E de repente, enquanto Oliver tateava sua rapieira, ouviu-se um uivo indizível de tão poderoso, e arrasou os ares. Ambos se entreolharam, e em alguns minutos, ouviram um alvoroço à distância. Era um estardalhaço, e muitas vozes dialogavam entre si, e nada era entendível, pois além de conversas paralelas e gritos, vinham de outro idioma. O idioma dos Orcs.

   — São eles. – disse Mya com medo.

  — Estão distantes. Mas são muitos.

   — Eu disse sobre a noite, eu disse!

   E Mya olho para todos os cantos com temor.

   — Vamos entrar.

   — Mas você disse... – e a Havertz cortou Oliver.

   — Esquece o que eu disse. Lá dentro deve ser mais seguro.

   E a dupla empurrou a porta de pedra da construção rochosa.

   — Não me parece perigoso agora. – Oliver adentrou logo atrás, e a porta se fechou sozinho. Não havia tranca, somente uma hieróglifo que provavelmente tinha conexão com os Anões.

   Extremamente escuro, o local tinha tetos altíssimos, o chão pouco se via, pois não havia luz, e as quebradiças janelas eram rasgadas pelo humilde brilho da lua que se punha lá fora.

    Mya e Oliver caminharam receosos. Havia muitas pilastras, algumas delas com rachaduras de grande porte, mas tudo era muito escuro. 

   Conforme andavam, podia-se ouvir o simpático som do riacho ao lado de fora, e eles permaneceram neste trajeto obscuro, encostarem-se às pilastras e se sentaram aos poucos.

   — O que faremos agora?

   — Será que eles estão do lado de fora?

   Mya estava mais ressabiada que Oliver, e depois disto, permaneceu-se em silêncio, enquanto refletia e observava a luz que se erguia frente janela rosácea e destruída que havia a alguns metros de seus olhos.

   Depois de um bom tempo, Oliver por pouco não pegou no sono. As horas passavam e até mesmo a segunda-feira se aproximava.

   Se puseram de pé agilmente.

   — A nossa missão foi um fracasso, não foi? – Mya ainda detinha um olhar triste, talvez pensando na perda de Dumas e a falha tarefa de ambos.

   — Esqueça. Não é o mais importante agora. Estamos vivos. – disse. — Vamos nos alegrar um pouco, agradecer e, quem sabe, achar o caminho de casa.

   Os dois retornaram a andar, mas desta vez, perceberam que estavam perdidos. O local de dentro aparentava ser muito maior do que visto de fora.

   As teias de aranha agora eram assustadoras, pois grandes eram. Na parte inferior, havia muitas minas dos Anões, e túneis perfeitamente arquitetados por eles.

   Eu poderia palpitar que até mesmo em algum canto daquele Salão, eles forjavam suas destemidas armas e armaduras, mas infelizmente não posso garantir-lhes isto.

   — Não há ouro por aqui? – indagou Oliver, enquanto observava as construções e quatro portões de pedra, que se faziam presente em sua esquerda. Todos similares a sua entrada.

   Já haviam caminhado por muito tempo, descansado e sequer sabiam onde estavam. Talvez no subsolo, nunca se sabe, e nem eles, claro.

   Mya estava tão preocupada, que pouco se interessou pela pergunta anterior do amigo, e agora, seus pés passeavam por um chão lustroso, mas que era visível a poeira que ali havia.

   Um forte odor de queimado estava presente naquele trecho, e a dupla parou instantaneamente.

   — Não pode haver pessoas do Reino do Fogo aqui.

   — Sem chance. – concordou Mya, que tropeçou em algo, e Oliver evitou que a mesma caísse.

   Um cheiro de carne podre se alastrou, combinado ao cheiro ardente que já estava, tudo se tornou mais desagradável, mas havia chance de piorar. E piorou.

   O que causou o tropeço de Mya não foi algo comum, e sim um cadáver de Orc.

   — Mas o que é isto? – e os olhos de Oliver tremeram, e ele sequer soltou Mya da queda anterior.

    A pele acinzentada, marcas negras pelo corpo e aquele semblante demoníaco era de fácil reconhecimento.

   — Orcs. Eu disse. – e Mya levou a mão a boca, mais assustada do que antes. — Orcs! Têm Orcs aqui!

   Um bater de pés pelo Salão foi ouvido, e os dois se viraram para a escuridão. Oliver jurou que viu algo, digo, alguém com vestes longas desaparecendo na negritude da construção.

   — Quem está aí? – segurou firme a rapieira, como se soubesse usar. A resposta a sua pergunta não veio, e sim um bafo quente se esvaiu pelo Salão escuro.

   Foram surpreendidos por um brilho alaranjado no centro da escuridão. Oliver pensou duas vezes, não conferiu o que era. Muito menos Mya.

    Até que um vapor veio em suas direções, e duas asas se ergueram. Asas negras e finas, chamuscadas. Uma longa cauda espinhosa era visível graças a lua, e duas esferas cintilantes apareceram. Eram olhos novamente.

   Seja lá o que for, sacudiu seu corpo, e esfumaçou o ambiente, deixando a situação mais complicada ainda.

   Mya e Oliver correram juntos para trás de uma das pilastras. Não sabia e nem conseguiam enxergar o inimigo. Pânico.

   A perseguição se iniciou, e a gigantesca criatura baforou chamas rasantes. A dupla saltou, correndo para outra pilastra.

   Fugiam como um rato foge de um gato, e Oliver decidiu se separar, correndo para outra pilastra.

   A morte estava mais próxima do que nunca, e o único som que se ouvia, era a da água serpenteando as matas laterais que ficavam na parte externa, e claro, o bater de seus corações tomados por medo.

   Mya jamais poderia controlar a água do riacho à seu favor. Primeiro pois este estava do outro lado, e somente um Elementalista de extremo poder poderia fazer, e segundo pois ela sequer tinha seu bastão, e muito menos habilidade para não precisar dele para fazê-lo.

   Oliver sequer entrava nesta questão, pois não conseguia manejar o elemento.

   — Mya! – sussurrou. — Sem movimentos bruscos.

    Alguns pedaços e resquícios de muitas pilastras estavam próximas a Oliver, graças ao ataque anterior. Calmamente, ele pegou algumas. Tentou arremessar para despistar o inimigo desconhecido. Mya se segurava em silêncio, e o bilhete do Anão permanecia com ela.

    A enorme cauda do desconhecido sacolejou, e suas asas negras que agora estavam cobertas por chamas, passaram como um bumerangue. A construção era arrebentada aos poucos e mais um ataque, e tudo iria ruir perante eles.

   Uma cratera se fez na parede lateral graças a este movimento aterrorizante da criatura em brasa, e Oliver voltou a olhar por Mya, acenando positivamente.

   Mya era ágil, driblou os problemas e passou como um furacão, sequer foi notada, e conseguiu escapar para o lado de fora. Caiu em terra firme, cercada pelo riacho e por algumas plantas desconhecidas.

   Oliver suava frio, e precisava fazer isto. Segurou firme a arma de Dumas, esperou e disparou, a criatura urrou e balançou suas asas, mas o filho de Eskkad havia conseguido fugir. Se juntou a Mya do lado de fora, respirando aliviado. Mas nada estava ganho.

   A água e a luz da lua agora eram mais visíveis, mas o terror não havia passado.

   — Está explicado porque não há Orcs aqui. – falou Mya em tom sério. E ela tinha razão.

    As chamas do inimigo reapareceram, e agora era mais assustador ainda. Seus olhos eram maiores, e poderiam ser confundidos com o inferno. Sua bocarra, invisível pela pouca luminosidade do Salão, agora era visível. Um colosso em todos os aspectos.

   O inimigo rompeu as paredes, e estava do lado de fora. Emitia sons grossos e desconhecidos para qualquer um, e seu rugido era dez vezes mais assombroso do que qualquer coisa que você tenha visto e ouvido.

   Seus olhos tremeluziram, e sua boca se abriu como um forno. O vapor agora era pior, as chamas malignas saíram como labaredas de sua boca.

   Oliver caminhou para entrar na frente de Mya, mas não foi necessário. Algo havia acontecido.

   Quando ambos fecharam os olhos para o pior, abriram em seguida, pois nada havia acontecido. Estavam dentro de um círculo de água, protegendo-os.

   Qualquer um pensaria em Oliver. Ele teria manifestado seu primeiro poder, afinal.

   Algo emergiu da água. Algo que eles definitivamente não esperavam. Já era Equinócio, e eles sequer sabiam.

   Detinha cabelos longos e prateados. Barba até a cintura e um olhar negro. Suas vestes eram cumpridas, gastadas e azuis como a noite. Alguns tecidos negros e lenços brancos compunham-na.

   Carregava consigo um cajado com uma esfera azul brilhante em seu topo, e este brilhou, a criatura urrou como nunca antes, e Mya e Oliver levaram suas mãos ao rosto tamanha luminosidade.

   — Volte para o seu lugar, criatura das chamas da perdição! – vociferou o homem, tamanha coragem e poder.

   Quando a retiraram-na, nada mais havia. O inimigo se foi, e os dois viraram vagarosamente para a água, e o salvador desconhecido caminhava em direção a eles.

   — Você. – disse Oliver, tremendo. — Então é você.

   — Eu sou Azelio. – pronunciou em sua chegada. — O Senhor das Águas, O Primeiro de meu Elemento, o Terceiro de minha linhagem e o Mago Azul.

   Oliver se ajoelhou, exausto. Mya se pôs a reverenciar o Mago, que, imóvel perante as águas, parecia até mesmo brilhar, e a lua reluzente engrandecia a imagem.

   — O que fazem aqui, crianças? – perguntou com sua voz digníssima. — E por que aquele demônio antigo estava atacando vocês?

   — Precisamos da sua ajuda. – e Oliver ergueu sua cabeça.

   — Percebo. Sinto algo obscuro crescendo em níveis alarmantes.

   — Recebemos a ordem de encontrá-lo. – Mya abriu a boca pela primeira vez. — Uma missão do Reino para buscá-lo.

   — O Reino da Água? – o Mago esboçou um leve sorriso, e olhou para as vestes da dupla. — São Eras e Eras sem ver aquele lugar. Com certeza terei assuntos a tratar.

   — O senhor é realmente um Mago? – perguntou Oliver, com os olhos estupefatos.

   O dito cujo não o respondeu, apenas desviou seu olhar emblemático para as águas e para o lugar onde o inimigo estava.

   — Precisamos ir embora daqui, antes que aquela coisa retorne.

   — O senhor não o matou? – e Oliver se levantou. Tão cansado.

— Matá-lo? Ora, impossível! – bradou enquanto saía levemente da água.

   — O que era aquilo?

   — Aquilo, meu jovem, se tratava de um demônio da Primeira Era. – e olhou diretamente para os garotos. — Um Rodnuin, da linhagem dos Balor. Nascido das Chamas da Perdição.

   — E o que ele fazia aqui, então? – questionou Mya.

   — Não sei. Não deveria estar aqui. – um olhar reflexivo. — Alguém o invocou, e eu apenas pude expurgá-lo novamente. Seja lá quem o trouxe de volta, fará novamente.

   Oliver pôde entreolhar para Mya, pois ambos sabiam que haviam visto alguém correndo pela escuridão do Salão horas atrás, mas não puderam descobrir de quem se tratava, ou o que era.

   — Precisamos sair daqui.

   — Não sabemos como fazê-lo. Perdemos um amigo, comida, bebida, mapas e também nossos cavalos. – explicou Oliver.

   — Entendo... Vocês possuem problemas com vôos?

   Mya e Oliver se olharam, questionando, e o Mago soltou um assovio enorme.

   — Apareça!

E da água surgiu uma criatura radiante e inédita para os olhos dos mais jovens. Da cintura para cima, poderia ser confundido com um dragão ou uma serpente. Era roxo, brilhava levemente com detalhes em verde. Da cintura para baixo, se assemelhava a um peixe, e era prateado com resquícios da cor lilás.

   — Não seja tímido! – o Mago acariciou a cabeça da criatura, que nesta parte parecia profundamente com um cavalo. Seus olhos cintilavam de tão belos, parecia ser um grande camarada do Mago. — Cumprimente-os!

   A criatura sacolejou a cabeça, e respingou água em cima de todos. Oliver e Mya passaram suas mãos sobre o desconhecido animal, que se esfregou confortavelmente em Mya, como se tivesse criado simpatia pela mesma.

   — O que é ele? – perguntou Oliver.

   — É ela, garoto. – respondeu. — Trata-se de uma Marisanguis.

   — Consta no nosso livro? – Oliver olhou ressabiadamente para Mya.

   — Não acreditei que fossem reais. – disse. — Trata-se de uma criatura mística, pertencente apenas a um Dos Quatro.

   — Exatamente! Garota esperta. – elogiou o Mago, que se pôs ao lado da criatura. — Ela foi feita para viagens marinhas, mas consegue realizar viagens aéreas, caso tenha o descanso e preparo necessário. Virão conosco, não?

   Os dois subiram na criatura, que era bem maior que o imaginado quando vista com parte do corpo dentro da água. O Mago a montou como um cavalo, e a criatura salteou da água com grunhidos fofos. Mya e Oliver foram próximos um ao outro, segurando-se para não caírem.

   — Segurem-se! – ordenou o Mago.

   Oliver ainda possuía a rapieira, presa em sua roupa, e Mya se preocupava o suficiente para perceber que o bilhete dos Anões havia sido chamuscado na parte inferior, e um resquício foi torrado, mas ela o segurou firme no retorno.

   O lendário azul ainda segurava seu cajado, conduzindo ambos em uma viagem aérea inimaginável e fantástica que durou um bom tempo, mas não houve nada de especial, portanto, sinto-lhes dizer, que de fato resumirei este período, mas lhe garanto que Oliver e Mya adoraram voar naquela criatura mágica e fabulosa, ainda mais com a companhia de um Mago cujo poder era imensurável para eles.

   O vôo era rasante, e eles pararam de três a cinco vezes para dar um tempo ao Marisanguis repor as energias, e nestes períodos o restante aproveitava para tirar um breve cochilo, comer algo das florestas e muitas outras coisas básicas.

   De cima, podiam ver claramente as criaturas se dispersando por entre as florestas, tantas espécies curiosas e seus sons distintos que passavam pelas mesmas. Não se ouviu Orcs, Trolls ou Goblins em todo o trajeto, nem mesmo nas noites frias que chegavam.

   Eles realmente não tiveram problema algum com a viagem, exceto pelo fato de Oliver ter se sentido zonzo por duas vezes, mas isto não atrapalhou o Mago e seu animal em nenhum momento.

   Com a cabeça girando – como o mesmo alegava, ele ainda via as terras escuras e esverdeadas estendendo-se abaixo deles, mas isto passara, e em determinada noite, quando o vento se punha menos gélido que antes, eles finalmente puderam ver a Muralha.

   — Estamos pertos! – gritou o Mago, agora mais feliz do que nunca.

   A criatura acelerou o belo vôo, e passou em alta velocidade pela Muralha, de modo que os guardas do momento sequer souberam o que fazer.

   O impacto foi tanto, que muitos moradores colocaram suas cabeças para fora de suas janelas e os civis nas ruas ergueram seus pescoços para ver o que se tratava.

   Foi uma passada larga frente as janelas do Templo da Água, e os ali presentes viram com estranheza. Puseram-se a tentar seguir.

   Oliver e Mya nunca haviam reparado, mas na parte traseira do Templo, havia um grande campo, enorme e bem capinado, onde uma parte do Exército se reunia.

    Ali, a criatura parou seu vôo, flutuando por alguns segundos. O Mago desceu pacificamente, e Oliver e Mya desceram em seguida.

   Naquele momento, havia muitas pessoas importantes para recebê-los, e lhe digo com louvor quem eram.

    Professores, Ministros, Eskkad e o próprio Rei estavam de pé. Além disto, havia três pessoas jamais vistas no Reino pelos outros.

   Uma mulher negra, alta, de postura elegante e com os mais belos cachos que se possa imaginar. Possuía brincos dourados e enormes. Suas vestes eram de alta classe, entre o verde musgo e detalhes em puro ouro.

    Ao lado dela, dois homens com a mesma cor de pele. Viris e altos, com físico atlético e cabelos raspados. Vestiam roupas metálicas, e havia símbolos curiosos em referência a folhas em seus peitos.

    Absolutamente todas as pessoas prestaram reverência, e o Mago andou lentamente por entre todos com seu cajado. Marisanguis, Oliver e Mya permaneceram atrás deles.

   Aos poucos, as pessoas levantavam seus rostos, e o Mago observava cada um deles.

   — Eu esperava um singelo e humilde "bem-vindo!" – sorriu.

   Meltar caminhou em direção ao Mago, e sob a grande lua, se pôs a reverenciá-lo novamente.

— O Reino da Água lhe deseja as mais sagradas boas vindas. – iniciou. — Me chamo Meltar Silao, filho de Tobias e Entera. Rei em exercício e governante máximo.

   O Mago assentiu, e colocou seu cajado no ombro do Rei, num gesto de humildade.

   — Eu agradeço.

   — Se não lhe incomodar, contamos com sua presença e ajuda. Siga-me, e meus homens tomarão conta de sua montaria.

   O Mago seguiu Meltar à dentro do Palácio. Eskkad dirigiu-se a seu filho e a Mya. Papagueou ambos, perguntando como estavam e coisas semelhantes.

   Um grupo de soldados da Água foi chamado e levaram Marisanguis a um local especial para a criatura conhecida apenas por lendas antigas.

   Professores e Ministros entraram junto ao Rei, e o trio de curiosas vestes fez o mesmo caminho.

   O debate ocorrido na parte interna do Templo foi do mais alto nível de sigilo que se possa imaginar e durou por horas e horas.

   Dois soldados conduziram Mya a sua casa, e ela levou consigo a rapieira que havia ficado com Oliver e também o bilhete dos Anões.

   O moribundo Oliver passou algum tempo no Templo, e estranhou por muito a curiosa observação e olhares que recebia da mulher desconhecida e dos dois homens que a serviam.

   — Quem é ela? – sussurrou para seu pai.

   — Trata-se da Rainha da Terra. – disse. — Não olhe tanto.

   E Oliver quase cuspiu a água que tomara.

   Num breve espaço de tempo, filho e pai se retiraram do Templo, e fizeram trajeto para casa, no meio do caminho, Eskkad barrou a passagem.

   — Preciso lhe dizer algo. – o tom triste em suas falas alertou a curiosidade em Oliver. — Para que você esteja preparado quando chegar em casa.

   — O que houve? – gritou. — Mamãe está doente? Ou algo aconteceu com o Ikki?

   — Sobre a primeira.

   — O que ela tem? – questionou gesticulando as mãos.

— Sua mãe nos deixou. – e seus olhos quase se fecharam em tristeza. — Foi embora para o Fogo.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top