━━━━━ 𝔉𝔞𝔠𝔢𝔱𝔞𝔰 ━━━━━
AVISO DE GATILHO
Agressão física, verbal e sexual. Todas possuem representação gráfica.
"Ele estava sempre ao seu lado, admirando seu abismo e esperando-a escorregar e cair."
┏━━━━ • ♰ • ━━━━┓
MEADOS DE 1825
LONDRES, INGLATERRA
┗━━━━ • ♰ • ━━━┛
Antes
ABIGAIL ENGOLIU A SECO quando escutou do topo da escada a porta pesada de madeira arrastando contra o piso marrom-escuro, inflando por toda a casa, a tornando quase viva. Era um rangido desagrádavel, anunciando visitas. Em sua grande maioria parceiros de trabalho ou de negócios maçantes de seu pai ou damas aristocratas vazias e infelizes que preenchiam de cores quando viam o rosto de sua mãe à procura de diversão, prazer e fofocas.
A pequena avançou um passo lento, porém, cambaleante, oscilando entre subir ou descer. Virou a cabeça, erguendo-a, avaliando se recuava ou se avançava. A ideia de voltar parecia tentadora. Seu corpo por pouco não seguiu a satisfação da decisão. Entretanto, o estrondo da porta ressoou, quebrando a linha de raciocínio da garota, logo um suspiro brotou de seus lábios.
Abigail permaneceu impassível, imersa em si mesma. Contudo, um chamado abafado chegou aos seus ouvidos. Era seu pai. Seu tom rígido e de ordem era inconfundível. Indiferente e sem pressa, a garota voltou a sua atenção ao horizonte, descendo degrau por degrau, dobrando a escada, levando seu corpo até a sala do casarão.
Repousado seus pés no chão, atraiu a atenção de todos com seus cabelos negros soltos constrando o branco de seu vestido de babados. Fingiu não estar incomodada com os olhares, e muito menos dignou-se a levantar o olhar para saber quem era o visitante da vez. Consertou a postura, e fez uma breve referência, fazendo do modo o qual sua mãe tinha ensinado-lhe.
Sendo uma boa garota.
Falando baixo e pouco.
Sempre sendo esperta, mas não mais que os rapazes.
Era perigoso, sua mãe sussurrava-lhe, em seguida, deixando um beijo molhado em sua bochecha.
Sua mãe era Alice Williams, a mulher que estava sentada no sofá, segurando uma xícara de chá fumegante, mantendo a energia da sala em equilíbrio. Era descrita pela alta sociedade como bela e demasiado astuta. Criada pelo modo convencional de toda garota da época. Ficava trancada em casa, aprendendo como costurar, a ler, matemática básica para ser uma boa senhora de casa, criar crianças, moda. E diversas outras funcionalidades de uma mulher na sociedade inglesa.
Fez seu debut na alta sociedade com dezoito anos — considerada uma idade tardia —, e pouco tempo depois foi cortejada por Othelo Williams, seu atual marido. Casou-se com ele por pressão de seus pais. Anos mais tarde, da união do casal, nasceu Abigail, uma linda garota.
A preocupação da mulher sobre o futuro da garota fez com que criasse-a de um modo distinto da sociedade. Aquele era o resultado. Uma garota pragmática e consistente.
No momento que a menina ergueu a visão, seus olhos se conectaram primeiro com os castanhos de sua mãe, a qual não tardou para cumprimentá-la com um sorriso gentil. Depois para o pai, o qual tinha herdado os olhos negros profundos, mantendo a postura inacessível, e travou no estranho sentado no seu lado do sofá, esbanjando eloquência de modo inquietante.
Ela permitiu cavar a aparência do visitante. Seus cabelos negros escorridos, no limite da orelha, usando os trajes formais. A corrente prateada do seu relógio saindo pelo bolso, e um sorriso largo, direcionado a ela. Viu quando as mãos enluvadas se encaminharam próxima a sua genitália, como se fosse impossível controlar seus impulsos primordiais.
Tanto os olhos e os lábios de Abigail crisparam em desaprovação, e seus olhos se estreitaram, formando uma fenda, desconfiança e repulsa evidentes em seu olhar quando deslizou, lenta, o olhar para o pai.
— Quem é ele? — Foi direta, conquistando um movimento nas comissuras da mãe. A junção das sobrancelhas grossas do pai, e um riso fraco do estranho. O riso foi o que mais incomodou-lhe. Ela não gostava dele. Não deveria falar. Na realidade, era melhor ele roxo e petrificado, jogado aos seus pés.
— Abigail — advertiu sutilmente sua mãe, apesar da sombra de um sorriso.
— Ele é lord Ralph Greedy, filho do antigo lord de Greedy. Infelizmente, seu pai morreu, e ele ascendeu ao cargo. Dessa forma, o lord Greedy está viajando pela região para conhecer melhor os aristocratas da região — Othello a respondeu, logo mirando na direção de Ralph por alguns segundos —, e seu noivo, querida.
O clima pesou de imediato. Sua mãe descansou a xícara no pires de forma audível.
Enquanto os pulmões de Abigail pararam de funcionar assim que ouviu as palavras de seu pai. Suas pupilas dilataram, e a garganta secou. Seu corpo quase cedeu à gravidade, afastando-se um passo, horrorizada. Tendo leves tremores, ela encarou o homem de olhos escuros, o qual não parecia ter nenhuma humanidade dentro de si, pendente um sorriso perturbador.
— Não. Eu não aceito isso... — As palavras saíram estranguladas. — Eu não irei me casar com esses homem. — Deu a decisão final, virando de costas, subindo as escadas em largos passos, as lágrimas queimando no canto dos olhos. Ignorou todas as chamadas de seu pai e de sua mãe, a censurando pelo comportamento inadequado.
Contudo, ela não estava interessada em seguir com nenhuma etiqueta, uma vez que havia sido vendida sem terem pedido sua permissão. Com um homem vulgar e com orbes dissimuladas, selando seu destino como se fosse qualquer objeto. As palavras repousaram em sua mente mesmo depois dela ter trancada a porta, e deitada na cama macia, se enrolando em todos os lençóis disponíveis, bagunçando tudo.
Mas não importava. Nada mais importava.
Fechou os olhos com força, desejando dormir, para aquilo não ter passado de um simples pesadelo.
═════ ✥.❖.✥ ═════
Mais tarde, saiu de seu sono sentindo-se uma boneca de pano — sem vontade, mole e vazia. Dispensou todos os lençóis sobre ela, com resignação, o frio da noite penetrando em sua pele aquecida. Levantou-se da cama, dirigiu-se para a janela, os filamentos da luz prateada derramando-se sobre seu rosto ao se aproximar. Puxou de lado um pouco das cortinas, observando o céu acinzentado, sentindo atraída pelo ar sinistro que descansou sobre a cidade.
Talvez fosse uma boa ideia ela se jogar nos perigos da noite, perdendo-se para sempre neles.
Entretanto, antes que sua alma fosse capturada por paixões erradas, afastou-se, abrindo a porta.
Durante a sua caminhada pelo corredor, o qual parecia estar se comprimindo à medida que seus dedos se achataram pelo chão, caminho iluminado somente pelas luzes bruxuleantes das velas, e em meio aos fulgores pontos, uma fina luz escapando do quarto de seus pais, chamou a sua atenção. Seu vestido farfalhou com a mudança repentina de direção, e sem pudor algum, ela encostou o ouvido na porta do casal. Não demorou para escutar a discussão que estava começando a ficar acalorada.
— Por que fez isso com nossa filha? — A suavidade da voz de sua mãe havia morrido.
— Ora, Alice, melhor do que eu, você sabe o porquê — respondeu o homem, indiferente.
Do lado de fora, Abigail, podia ouvir o tintilar vítreo de algo mexendo, e os passos acelerados de sua mãe andando de um lado para o outro. Vagamente, um suspiro que só poderia ter saído de seu pai.
— Riquezas — despojou a palavra com nojo —, e o que ele te ofereceu para você vender sua filha sem pensar dois segundos? E eu quero a verdade, Othello.
— Ele me ofereceu um pedaço de terra no sul, uma casa de campo, quinhentas libras e investimentos no meu próximo negócio — disse, simplista.
— Deveria ter recusado. Nossa filha nunca esteve à venda. Nós deixamos isso bem claro. — A mulher levantou um pouco a voz, e isso fez um estremecimento correr pelo corpo da garota. Jamais havia visto sua mãe falar em um tom tão cortante, ainda mais com seu pai. Ela sempre resolvia os problemas sorrindo.
Em seguida, ouviu uma cadeira raspando contra o chão, e o vidro se estilhaçando.
— Abaixe o tom, Alice. Eu sou o único que deve escolher o destino de Abigail — gritou o homem.
— Ela é só uma criança, Othello! Lord Greedy é treze anos mais velho que ela!
— Nossa filha está mais do que pronta para ajudar essa família.
— Ela não tem obrigação de nos ajudar em nada. Ela é uma criança, e deve permanecer como tal. Eu não aceito esse casamento absurdo — retrucou a mulher com a voz fria —, e eu não tive boas impressões em relação ao Lord Greedy. Com ele, Abigail não casa.
Selou a decisão mais uma vez, porém, logo o som de um tapa transpassou a porta de forma abafada. Em choque, com as lágrimas nascendo nos olhos, a garota sufocou um soluço colocando ambas as mãos por cima. Iria se retirar de forma sucinta de perto da porta, no entanto, sentiu algo achatando seus ombros.
"Termine o que começou", uma voz quebrada sussurrou em seus ouvidos.
A garota não reagiu, pois uma força desconhecida a empurrou contra a porta do quarto, abrindo-a de forma avulsa. Tropeçou em seus pés, e quando recuperou seu equilíbrio perfeito, visualizou a cena completa. Seu pai estava a poucos centímetros de distância de sua mãe, com a face vermelha e a respiração funda, enquanto Alice carregava a marca da mãe de Othello no rosto, o fitando com os olhos estreitos.
Toda a tensão da mãe teve seu fim quando olhou na direção da filha.
— Abigail... — sussurrou Alice, suavizando a expressão.
Antes que tivesse a oportunidade de consolar a filha, a garota correu. A pulsão de seu coração zumbia em seus ouvidos, a temperatura de seu corpo esquentando. A cada tap, tap do degrau, ela fora de si, o ar escapava mais rápido. Uma fina camada de suor se acumulou em sua testa e nas dobras do seu corpo. Não sabia para onde ir, mas queria evitar a todo custo seu pai depois do ocorrido com sua mãe.
Àquela altura as lágrimas haviam cristalizado em sua pele, e ela continuava a descer os degraus sem rumo. Dobrando para o segundo lance, a sombra do lord Greedy se formou à sua frente. Um arrepio atravessou sua espinha, mas ela escolheu prosseguir, apesar do sorriso medonho do homem e os dedos alongados apontando em sua direção.
Passou raspando nas vestes do homem, tentando desafiá-la com o olhar. No entanto, isso custou seu sustento. Por azar, seu pé entortou entre um degrau e outro, e antes que pudesse se segurar no corrimão da escada, seu corpo rolou um lance inteiro antes de alcançar o chão.
O corpo de Abigail repousou em um baque alto, e ainda consciente, olhou para os lados, sua visão de bifurcando. De longe, enquanto uma dor aguda se espalhou, ouvia os gritos de sua mãe. Por confusão, ela não conseguiu distinguir de qual parte estava vindo a voz e a dor. Sua respiração saía acelerada, mas o ar não entrava em seus pulmões.
Uma pequena poça de sangue começou a se acumular no lado esquerdo da sua cabeça.
Tossiu, acreditando que aquilo melhoraria, mas não mudou nada.
Iria morrer?
O pensamento a confortou de certa forma, pois daquele modo ela não precisaria casar-se com o lord Greedy. A menos que ele desejasse seu cadáver se putrificando. Ela só estaria naquele estado deplorável. Uma casca vazia, sem alma.
Suas pálpebras cerraram-se, porém, antes que adormecesse, um toque gelado e quase imperceptível, a encostando seu peito de forma desajeitada, sem delicadeza, tornando a dor mais difícil de suportar. Soltou um silvo de dor, rangendo os dentes, com os olhos ainda fechados. O som de algo molhado se infiltrou em seus ouvidos, e sedenta de curiosidade, voltou os abrir.
Aos poucos, uma sombra se projetou, e ela pode enxergar o vazio das orbes, as rachaduras da pele daquela criatura estranha. O que encontrou foi terrível, mas não causou nada a ela. Apenas desejou que acabasse logo. Se a criatura fosse um anjo, que a levasse depressa.
"Pobre, podre, Abigail", escutou vagamente a lamúria. Em seguida, veio uma carícia em seus fios. "Eu estou longe de ser o que você deseja. Eu sei o que você quer, mas não irei permitir por hora. Você vai viver e quando for o momento certo, eu irei de dar a liberdade de escolha."
Após isso, o preto engoliu-lhe, e ela apenas se recordava do vago conforto.
┏━━━━ • ♰ • ━━━━┓
MEADOS DE 1833
LONDRES, INGLATERRA
┗━━━━ • ♰ • ━━━┛
8 anos depois
A fatídica noite pregou-se na mente de Abigail. Não. Apenas uma parte dela. A parte em que ela quase morreu, e iria finalmente ser livre da obrigação do maldito casamento. No entanto, por algum milagre ou maldição, ela sobreviveu, restando uma cicatriz em sua cabeça com o formato semelhante a uma cruz.
Sua mãe sentiu-se culpada pelo o que aconteceu, e tentou negociar com o Othello, mas nada foi o bastante para fazê-lo desistir da ideia louca em casar sua filha com um homem que mal conhecia, e tudo por riquezas. A ganância o devorou e era tarde demais.
Dessa forma, seis anos depois, velha o suficiente para fazer seus deveres de esposa, casou-se com o lorde Greedy. Não se recordava com clareza de como foi a cerimônia ou a noite de núpcias — a qual ludibriou o homem, dizendo que era nova demais, e o homem, mesmo nervoso, não a tocou —, somente do portão da propriedade. Era de ferro, e possuía detalhes de ramos na sua parte superior, e nas laterais do muro havia anjos saudando aqueles que atravessavam-o.
Era por onde ela sairia quando conseguisse escapar do seu marido.
A relação deles era um completo desastre. Ralph não conseguia manter uma conversa decente com Abigail, e a mulher respondia-lhe com frases curtas, duras, rígidas. Nunca o agraciando, sorrindo em sua direção ou cuidando dele. Recusou-se a fazer seu papel de esposa.
Se o que ele queria era um objeto para gerar seu filho, e exibir como um prêmio, era exatamente isso o que ela iria fazer. Não havia nenhum sentimento mútuo naquele casamento. Iria interpretar aquele papel estúpido fora dos muros da propriedade. Dentro dela jamais o olharia ou o veria de verdade.
E ele fez o mesmo. Vivia esquecendo-se de sua linda boneca de porcelana.
Pelo menos, até quando o desejo de quebrar essa boneca ficou selado.
Quando a mulher completou o tão esperado dezoito anos, seu presente de aniversário foi ter seu corpo profanado.
O homem bateu na sua porta com batidas fortes e incessantes, tremendo toda a estrutura de madeira. Abigail, subestimando, permaneceu repousada em sua cama, admirando as cortinas balançavam contra a brisa fria, tornando seu exílio mais duro e solitário.
Porém, com um tranco, Ralph invadiu seu quarto.
Trilhou com passos pesados até a mulher, e a arrancou da cama pelos cabelos.
Ela não gritou, somente trincou a mandíbula, olhando-o com indiferença.
Seu olhar colocou mais lenha na fúria do homem, que levantou a mão e deu-lhe um tapa forte.
O som rasgou o silêncio, e o rosto de Abigail virou com força, a pele pálida ficando vermelha à medida do tempo. A ondulação da ofegação do homem era a única coisa que perturbava o espaço depois da dissolução da agressão.
Voltou a encarar o marido da mesma forma, o desafiando, e ele voltou a devolver o tapa. Cru. Mais forte que o anterior, cortando o interior da bochecha de Abigail. A mulher engoliu parte do sangue, e outra parte, permitiu que escorresse pela lateral da sua boca.
Houve uma pequena movimentação nos lábios de Abigail, a sombra de um sorriso insano. O marido grunhiu ao observar a reação, e com a mão livre segurou a mandíbula dela, forçando-a olhar diretamente em seus olhos. As orbes azuis de seu marido estavam orbitando a sua volta cheias de fúria e ressentimento. As narinas dilatadas, expirando com dificuldade.
Próximo de si, compartilhando o hálito, pode sentir o aroma do álcool vindo dele.
— Não me olhe assim — disse entre dentes, aumentando o aperto nos fios da mulher —, você é minha. Eu comprei por um preço altíssimo. Me deve obediência.
Desinteressada no discurso sem sentido de seu marido, mal pode se preparar quando ele soltou seu rosto, e sua mão rumou para o todo da combinação a qual ela estava vestida, revelando seus seios e parte da barriga. O som das fibras se partindo foi suficiente para Abigail arregalar os olhos.
Antes que reagisse, o homem avançou como um animal na direção de sua boca, a beijando contra sua vontade.
Ela se debateu, tentando o empurrar, mas ele continuou a se forçar para dentro de sua boca, tentando juntar seus peitos. Assim que conseguiu entrar, a mulher mordeu a língua de Ralph, fazendo-o soltar um som gutural terrível. O gosto de ferro cobrindo sua boca mais uma vez, e seus lábios tingidos de vermelho.
Abigail cuspiu o sangue no rosto do marido quando ele se afastou dela, cambaleante, ganhando tempo com aquilo. Com o coração martelando nas costas, ela correu na direção da porta. Entretanto, perto de conseguir seu objetivo, o homem se esgueirou atrás dela, os dedos de Ralph se enveredaram em seu tornozelo, a puxando para baixo.
Encontro ao chão, Abigail bateu a testa. Tonta, continuou lutando.
Farto de levar chutes em seu rosto, Ralph segurou as duas pernas da mulher, e trouxe para perto de si, virando de barriga para ter acesso melhor a intimidade da esposa. Ainda grunhindo, lutando para acertar o rosto do homem, Greedy deu outro tapa no rosto dela, a deixando mais calma.
— Isso... fique quieta, querida esposa — livrou-se dos restos da vestimenta de Abigail, e desfivelou seu cinto, usando-o para amarrar as mãos da mulher, e em seguida, com pressa, invadiu o corpo.
A cada investida, fazia a sangrar. Punindo-a por todas as humilhações que o fez passar.
Por sua indiferença. Por suas respostas vazias. Por não saber seu devido lugar.
Por tudo que ele engoliu nos últimos oito anos.
Ela era somente uma das várias propriedades que ele tinha em mãos. Só era um número.
Terminando, saiu, a deixando quebrada no chão frio.
Com o rosto cheio de hematomas. Lábios feridos. As coxas com marcas de mãos, escorrendo delas sangue e fluídos de seu marido. Os olhos vazios, o frio sendo insignificante comparado a toda a dor.
Assim que Ralph tomou distância suficiente, ela gritou. Gritou com todas as forças, tentando diminuir a sensação de perda. De sujeira que havia se apossado de sua alma trincada.
Ela não estava se importando se alguém poderia ouvir-lhe, pois ninguém veria salvá-la.
Ninguém poderia fazê-la esquecer da dor. Do crime que seu corpo foi exposto.
Não parou quando sua garganta começou a arranhar, saindo um som mais grave, rouco e quebrado. Ou quando não tinha mais voz para demonstrar o quanto estava dilacerada.
Somente gritou, não chorou. Não tinha mais essa capacidade.
Tudo mudou na noite que desceu escada abaixo. E novamente naquela.
Depois de algumas horas, o silêncio voltou a engolir o espaço. Abigail permaneceu no chão, nua, com sangue seco, os longos cabelos negros espalhados ao redor de si, enquanto ela fitava de modo vazio os dedos de sua mãe erguida a sua frente. Seus lábios estavam rachados, a garganta dolorida, assim como o resto de seu corpo. Seus olhos vermelhos mesmo sem ter derramado uma lágrima.
Perdida na ação sem sentido, uma sombra negra surgiu perto da janela à sua frente. A criatura estava parada, sentada no espaço vago da ogiva, com os pedaços de sujeira sobrevoando ao seu redor. Os olhos ocos a encarando, julgando todo o material de sua alma. Se ela ainda tivesse uma.
Ela olhou de volta, sem interesse. Estava acostumada a vê-lo.
Ocorria quando ela se sentia sozinha ou passando por momentos difíceis.
Assim que ela se cansou, separou os lábios.
— O que você quer? — sibilou, a voz saindo grossa.
"Saber o que você quer", retrucou, avançando um passo, moldando um sorriso tão perturbador quanto do seu marido desgraçado. Havia um diferencial. O da criatura era largo chegando perto dos olhos. Dentes pontiagudos e brancos, se destacando no preto de seu ser.
— Morte — disse sem hesitar, mecânica, a sombra dando mais um passo.
"A sua ou a dele?", seu sorriso diminui.
A criatura deu mais um passo, e Abigail acompanhou com os olhos.
— Não importa. — Estava nua e vazia.
"Tem certeza disso?"
— Sim.
A criatura lançou um último sorriso fraco a ela antes de desaparecer. Ela não sabia o que veria a seguir, mas ela esperou pacientemente, como uma boa devota. Segurou-se naquela fina esperança de que tudo teria seu fim naquela madrugada fria e cinza. A vida em seus olhos perderia enfim a luz, e ela estaria livre. Por fim, livre.
A palavra soou tão doce em sua mente. Abraçou-se, e deitou-se de lado, levada naquele sentimentos.
Se não ocorresse, ela não conseguiria suportar mais o que aconteceu na última noite.
Esperou mais alguns minutos, e de forma inesperada, a sombra voltou a aparecer ao seu lado, se agachando, os dedos alongados pingando sangue, a fitando. Ela devolveu o gesto, tombando a cabeça para o lado, o cheiro de sangue se multiplicando no quarto.
— De quem é o sangue? — perguntou de forma amigável.
"De Ralph Greedy. Eu o matei."
Os olhos dela quase saltaram dos buracos, e seu corpo tencionou.
— Por quê? — Conseguiu pronunciar as palavras.
"Porque eu o escolhi."
Ela torceu os lábios com a resposta.
— Por que não me escolheu? É por causa que estou impura? — soou pequena e aflita.
A criatura não respondeu, somente levou uma das mãos ensanguentadas no rosto da mulher, riscando com as unhas afiadas linhas finas de sangue, formando uma cruz.
"Você continua perfeita, Abigail. Não é por esse motivo. Eu tenho outros planos para você."
— Quais?
"Depende de sua vontade. De duas uma: morrer ou viver como a mulher mais poderosa de Londres?", lançou a pergunta, afastando sua mão do rosto da mulher.
— A morte. — Voltou a repetir.
"Agora é a minha vez de perguntar: por quê?"
— Desejo isso desde os meus dez anos. Eu não suporto mais — proclamou, a voz embarcada.
A criatura, ouvindo claramente as palavras, repousou sua grande mão, cheirando a enxofre sobre o rosto da mulher, cobrindo mais da metade de sua face, e em seguida, mandou-a fechar os olhos. Em segundos, os pulmões de Abigail pararam, e seu coração deu o último batimento.
Retirando a mão, via a expressão tranquila da mulher. Houve uma agitação nas sombras do diabo ao ver a criança atrevida que passou dez anos observando. Acreditou que ela teria uma trajetória maior, e mataria o homem cruel o qual seus pais lhe entregaram, como as outras fizeram. No entanto, ela havia se tornado um fantasma errante sobre a terra.
Não restou-lhe muita coisa, além dos poucos pedaços da alma.
Sem delicadeza, o diabo pegou um dos lençóis sobre a cama, cobriu o corpo de Abigail, e o sustentou em seus braços. O pescoço dela pensou para trás, seus fios se espalharam ao redor do braço.
Desceu a visão para ela, e levantou os braços para sua boca alcançar o ouvido da mulher.
"Abigail, você está finalmente livre."
FIM
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top