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"Real ou falso? Não importou. Ela abraçou os delírios, e dançou uma última vez com suas emoções."

MEADOS DE 1892
LONDRES, INGLATERRA

HYACINTH MACGYVER ENTRE um abrir e fechar de olhos, viu o diabo.

Foi uma mirada rápida, ingênua. Não houve tempo para dissecar mais da aparência deplorável da criatura que estava com o pescoço erguido, olhando para a sua janela. Era somente uma criança de cinco anos, e mesmo que sua mãe a guardasse com afinco dos perigos da sociedade Vitoriana, desconhecia o medo, assim que o encarou de volta.

Recordou-se daquilo de forma quebrada enquanto ficava sobre o corpo de seu recente marido, que a esperou com um sorriso sujo em seu rosto. Aquele que desapareceu de seu rosto assim que viu a faca que sua esposa segurava. Não houve tempo para maldições. Ela enfiou a lâmina afiada com força, sem hesitação. O grito gutural que o homem soltou arranhou seus ouvidos, perturbando o silêncio da noite.

O vermelho maculou o branco das vestes. O corpo do homem sobressaltou, a carne se contraindo, os espasmos se espalhando. Ela apertou os dentes ao sentir a resistência de seu marido quando fizeram contato visual, o ódio ondulando nas órbitas azuis, enxergando-a por meio delas.

Uma presa diante do caçador.

Maxwell trincou a mandíbula, se esforçando até chegar onde a faca estava fincada até o cabo em sua barriga, segurando o fino pulso de sua esposa.

— Maldita — rugiu, a mão tremendo, usando todas as energias para apartar a mulher.

Antes de fraquejar, Hyacinth segurou o cabo com ambas as mãos, apertando mais suas pernas nos quadris do homem, o mantendo no lugar.

A luta do homem foi em vão. Ele não conseguiu impedir da mulher levantar e abaixar diversas vezes a faca no seu abdômen. Sangue foi espirrado em suas mãos e bochechas aquecidas. A ação parecia natural, como se ela tivesse sido feita sob medida para acabar com a vida arrogante de Maxwell Windson.

Não parou quando os gritos cessaram. Nem ao sentir o corpo debaixo de seu ficou flácido, um pouco mais pálido que o normal com a luz pousando sobre ele. Muito menos quando viu o cessar dos movimentos esporádicos do pulmão. Apenas suspendeu os ataques no momento que transpassou o cabo na gordura saliente.

Maxwell era orgulhoso o bastante para não permitir um mísero ruído sair da sua boca.

Deixou-se ser abatido como o porco que ele havia comido mais cedo. 

A respiração da mulher tornou-se superficial, os braços trêmulos, prontos para largar a lâmina.

Não deveria ter sido daquela maneira. Ela foi infantil ao rir na ocasião em que suas primas a avisaram sobre a impureza de seu futuro marido. Ainda dividida se ele somente pensava em dinheiro, permitindo que pessoas rastejassem sobre a penumbra das vielas escuras. O homem típico o qual fazia da vida das pessoas um inferno.

No pouco tempo no qual foi entregue a ele, o mais velho nunca teve a decência de esconder suas partes pobres. Na realidade, a cada passo dado, elas se despencavam dele. Com o nariz arrebitado, anunciava e pedia sem silêncio para todos olharem para o detrito humano que havia se tornado.

Maltratava todos os funcionários. Amaldiçoava a todos ao redor. Pisava naqueles que não lhe serviam.

Hyacinth desejou levantar as mãos para o alto toda vez que ele a ignorava ao passar por ela nos raros momentos que ele convidava para a sua residência. Mentia para seus pais dizendo que queria passar um bom tempo com a sua adorável noiva.

Ele tinha um único objetivo, e estava entregue de bandeja para ela: dominar as mentes de seus pais, e consequentemente, a sua.

No entanto, ela nunca cederia seu controle.

Agarrou-se firme nas palavras de sua prima Bella, a primeira dama da família Frieden a se casar.

"Coloque eles no pedestal mais alto possível. Depois os façam cair da forma mais cruel. Afinal, quanto maior a altura, mais avassaladora se torna a queda."

Na época, cercada por flores e linhas paralelas do sol, foi a pior dica que já ouvira. No entanto, opiniões mudam. A dela foi forçada assim que o homem, logo após a cerimônia sem cor que eles tiveram, acertou um tapa em seu rosto. Ela tropeçou em seus saltos, e seus olhos duplicaram de tamanho. Ficou paralisada, ainda solvendo o que acabou de acontecer. Os motivos de seu marido ficaram espaçados no ar.

Inútil. Má postura. Péssima anfitriã.

Tudo devido aos seus parceiros de negócio. Os negócios que não eram seus. Fazia apenas poucas horas que passou a carregar o fardo pesado de seu sobrenome. Uma Windson. O som das sílabas áspero, quebrado, amaldiçoado no timbre doce de sua voz.

Em meio ao banho para passar a primeira noite com seu marido, o brilho suave do bronze da torneira da banheira chamou sua atenção. Seu olhar se fixou no objeto, enquanto absorvia o tintilar dos talheres de seu marido do outro lado. Submergiu nas galerias da sua mente, começando com uma palavra, tornando-se uma imagem completa.

Um sorriso ladino brotou em sua face ao conseguir o que queria assim que as serventes terminaram com ela.

Os hábitos extravagantes de seu marido foi o que desenhou seu fim. Seu ritual de nunca comer com os que, segundo ele, estavam abaixo de si, o levou até a lâmina robusta ainda suja de gordura do porco o qual ele cortou.

Na opinião da sua adorável esposa, ele fez um lindo desfile com a morte.

Tornou-se a última vez que ele colocava um dedo sobre ela. Poderia ter se tornado uma Windson no papel, mas nunca deixaria suas origens que a fez ser ela mesma. Ser uma MacGyver era sua única identidade. Era a pequena Hyacinth da sua mãe. A imperfeita filha de seu pai. A eterna preferida das irmãs Frieden, cujas mulheres nunca permitiram ninguém adentrar em seu círculo social.

Traçou aquele caminho estreito com determinação, sem vacilar, conquistando o final marcado por sangue, suor e lágrimas.

Sugou uma respiração profunda, e apertou os dedos envolta da faca, a puxando, saindo do corpo do homem com um som molhado. O braço caiu inerte ao lado do corpo, e ela capturou a imagem de Maxwell morto ainda sobre ele.

O brilho lânguido das velas caía sobre o rosto do homem, a permitindo ver os olhos loucos para soltar dos buracos, o lábio inferior retorcido em desprezo. Boca entreaberta, filetes de sangue misturado com baba escapando, atraindo algumas moscas, prontas para provar a podridão que exalava dele.

Em meio a memorização de sua obra de arte, o nariz dela franziu, achando o marido horrível.

Estava pior que antes. O bom era que ele não falava mais.

Porém, apartou os olhos para longe dele, vendo o quarto perfumado por rosas vermelhas, as pétalas murchas enfeitando todo o recinto. Ela tombou a cabeça para o lado, os ombros se movimentando inquietos, a risada simplesmente escapando de seus lábios.

Era hilário ele ter preparado o cenário da sua morte.

Seu momento de graça durou pouco. Fechou a boca, pensativa de como fugiria da propriedade e para onde ir. Não tinha mais casa. Não havia nenhuma lasca de esperança de seus pais a aceitarem de volta. E que desculpa ela usaria se voltasse? Que matou seu lindo marido, e o deixou para os vermes comerem em seu leito?

Era rídiculo. A única saída que tinha em mãos era usar seu dote. Seu marido o devolveu alegando que não precisava de pequenos valores, e que o deixar para ela, não diminuiria sua fortuna. Ela realmente o agradeceu por aquilo. Além das diversas jóias que ele a presenteou para a bajular falsamente. Venderia todas.

Passou a mão pelo cabelo preto oleoso, com algumas mechas soltando de sua pompa perfeita envolta de tranças, e finalmente desceu da cama. Aproximou-se da janela fustigada pela chuva torrencial afora, as gotículas alcançando seu rosto, seus dedos batalhando com o vento feroz pelo controle da janela.

Ajustando-se para vislumbrar melhor o andar de baixo, a mulher colocou a cabeça para fora, com os dentes segurando a firme a faca, olhando para ambos os lados, para o alto e para baixo. Ensaiou o caminho a se fazer.

Sem mais ou menos, colocou a perna direita. Em seguida, todo o corpo, segurando a respiração com a sensação de ter o chão de seus pés.

Evitando prolongar aquele desagrado junto com a chuva encharcando suas vestes. Quando largou a faixa de concreto com a cair de cair na varanda do quarto do primeiro andar, tinha dificuldade de locomoção com a roupa íntima grudando como segunda pele. O cheiro dos óleos perfumados de seu corpo e de seu cabelo preenchiam suas narinas.

Retirou a lâmina de sua boca, e passou a língua os os lábios numa tentativa falha de tirar o excesso de água, e seguiu com o seu plano. Fez uma conta mental no decorrer de seu afastamento da beira da varanda, e correu com todas as suas forças, pulando. Rolou por alguns centímetros, ignorando o latejar de seus pés.

Embolada com a adrenalina, levantou-se, o calor de seus movimentos competindo com o frio da atmosfera. Seu ar saia a vapor, o véu formado pela chuva tornou o caminho mais cego do que antes, fazendo pular raízes inexistentes ou tropeçar em plântulas. A cada solavanco de seu corpo, a respiração escapou depressa de seus lábios, a garganta apertando com a possibilidade de morrer ali.

Iria se desfazer na matéria orgânica como seu marido depois de tudo.

Próxima de aceitar a morte, sentiu-se observada por algo. Cessou lentamente os passos, seus músculos gritando de dor na mínima compressão. Olhou  para os lados, a chuva sobrecarregando seus cílios, a temperatura de seu corpo próxima de colapsar.

Precisava sair dali o quanto antes, mas não conseguia mexer sequer um músculo.

Por um minuto ou mais, tudo à sua volta desacelerou, o oxigênio não chegando nas suas vias. Seus pulmões se expandiram, doloridos. Sentiu o coração na garganta. Acreditou que o cuspiria como algo indesejado, totalmente deslocado.

Tornou-se hiperconsciente de tudo. As gotículas caindo no chão lentas. Do simples farfalhar. E de até mesmo dos microrganismos disputando entre si quem comia mais e mais rápido.

Um calafrio correu na sua espinha, e desejando que aquilo acabasse, fechou os olhos. Apertou-os, convenceu-se de que tudo aquilo era irreal. Intangível. Porém, se sentiu confiante o bastante para permitir que a realidade se formasse, contorceu-se em seu interior, soltando um som de protesto.

Antes de seu resmungo terminar, uma criatura esguia surgiu diante de seus olhos.

"Criança malcriada."

Seus lábios se separaram, a lembrança a atingiu com mais força do que antes.

Ela reconhecia aquele ser. Talvez melhor do que ninguém.

As palavras retorcidas, graves, e cruas, a deixando vulnerável, mexendo com todas as sensações ruins que guardava dentro de seu peito, as puxando como a gravidade. Os sentimentos, as más intenções brigando com sua alma, delirando para rasgá-la e ir na direção da criatura.

— Me deixe... ir — As sílabas mal se formaram como se ele estivesse a impedindo.

"Por que eu deveria?"

Era como se ela pudesse ver as sobrancelhas que nem existiam erguidas de forma convencida. A zombaria escorrendo dos olhos que nem pareciam fazer falta a ele, uma vez que os abismos no lugar deles faziam muito mais estragos que olhos humanos. Foram feitos para julgar. Atormentar. Quebrar.

Hyacinth fechou os dedos em punho com sacrifício, apertando os dentes a ponto de dar um tic.

— O que quer? — Fez o melhor que estava ao seu alcance. Apenas pedia para deixá-la em paz.

Parar de atrapalhar seus pensamentos e intenções. Fraquejou e voltou a apertar a faca em sua mão, seus nós ficando mais pálidos.

"Sua alma, sua garota insolente."

Apesar do estremecimento que a resposta do diabo causou em suas células, ela foi contra a força que estava a deixando imobilizada, e correu na direção da criatura, com lâmina erguida. Ela teria acertado se ele fosse real, mas a criatura apenas se desintegrou no local.

— Não... não pode ser — soprou, derrotada, permitindo que a faca caísse no chão num barulho surdo, a chuva voltando ao normal, sua pele entorpecida. Não tinha mais a impressão de mil agulhas atravessando.

Ela iria recuar, em choque, mas a criatura enveredou os dedos longos em seu pescoço. Não o suficiente para bloquear completamente seu ar. A garota ficou na ponta dos pés, puxando pequenas respirações de ar, o medo se infiltrando em seus ossos.

"Você é corajosa, mas acaba aí", o polegar do diabo raspou contra seu queixo, fazendo uma leve pressão. "Não é perigosamente linda. Não aparenta minha como suas primas."

O tom possesso dele quase a fez pensar que realmente tinha feito algo ruim.

— Então por que está aqui?

As sombras dele se movimentaram, os cantos extravagantes de sua boca se retorcendo, divertido.

"Você quebrou o que foi estimado para você. Meu dever é buscar pessoas como você, sempre brincando com as linhas escritas ou matando outros da sua espécie."

— Mas você não gosta de mim. — As palavras saíram sufocadas, e a pressão envolta de seu pescoço aumentou, e ela grunhiu. — Não precisa me levar. Não hoje.

"Está tentando negociar comigo?"

— Talvez. — Sua expressão tensa relaxou.

"Sabe o porquê não gosto de você?"

Não era a típica pergunta que ela poderia rebater sem se importar com as consequências, porém, imaginou falar: porque eu não sou tão especial quanto minhas primas. Sem o tom ácido.

"Não. Está errada. Porque eles tinham consciência de cada ação. Elas não se arrependiam. Ao contrário de você, que ainda renega o que você se tornou."

Um sulco se formou entre as sobrancelhas da mulher.

— O que eu me tornei?

"Uma assassina. Você ainda carrega o peso da vida de seu marido em suas mãos. Suas primas nunca pararam para pensar. Nunca recuaram. Eram puramente egoístas."

Hyacinth se perguntou de que ponto de vista aquilo era um ponto positivo. Talvez para ele. Falou com gosto, como somente em relembrar delas o fazia pular de excitação.

— Não me arrependo — disse, firme.

"Irei fingir que acredito."

O diabo tirou a mão da mulher, entretanto, ao contrário do que ela pensou — a deixando cair, e acabar com aquilo —, ele a segurou pela cintura, seus pés apenas roçando na grama baixa e úmida. Ela buscou refúgio nos braços finos, e a matéria não se dispensou. Tornou-se algo sólido, girando seus corpos.

— O que está fazendo agora? — Saiu mais alto do que ela pretendia.

"Você não precisa saber."

Ele pegou o braço livre dela, o estendendo, como se estivessem numa posição de valsa, movendo-os de um lado para o outro. A mulher não conseguia entender a razão pela qual ele estava fazendo aquilo, porém, seus músculos estavam exauridos demais assim como suas pálpebras. Todo seu corpo clamava por descanso, e não estava ruim sustentada pela criatura diabólica, com a chuva derramando sobre seu rosto.

Seus olhos pesaram, fitando as copas das árvores em círculos, os lábios se separando.

Aos poucos, seus dedos deslizaram na extensão do braço da criatura, os olhos fechando, o membro pendurado no diabo, mole.

Seu pescoço pendeu para trás, e soltou o último sopro de ar.

O diabo olhou para a expressão tranquila de Hyacinth, e formou um pequeno sorriso.

"Dessa forma, em meus braços, você fica perfeita."

FIM.

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