- 16.2 -
Não demorou muito e Devimyuu saiu de seu transe momentâneo, embora algumas suposições ainda fervilhassem em sua mente. Ele logo alcançou a mentora, que se ocupava recolhendo as pinhas que encontrava numa das árvores.
— E então, também teremos algum tipo de jantar druida sagrado?
Perguntou.
— Não temos esse tipo de coisa, mas, como a noite de hoje é o início de um rito de passagem, podemos dizer que será uma refeição tradicional especial.
— E qual é a tradição?
Mewcedrya riu como consigo mesma, meneando a cabeça.
— Uma que provavelmente serei punida pelos espíritos das bruxas ancestrais por estar vivenciando com você…
Devimyuu se surpreendeu com aquela afirmação.
— Eu? Mas por quê? O que foi que eu fiz?
Perguntou o adolescente se sentindo injustiçado, mesmo que não soubesse o motivo exato para tal.
A druidesa dirigiu a ele um olhar curioso, seguindo para a próxima árvore.
— Nada, mas, você é um macho.
O príncipe continuou a encarando sem entender, e Mewcedrya percebeu que teria que explicar desde o início.
— Gosta de histórias, não é, Devimy? Pois eu vou te explicar tudinho através de uma. Imagino que já ouviu falar de Lorde Ciphermew, o Grande Arquemônio Rei?
Ao ouvir aquele nome, Devimyuu arregalou levemente os olhos e engoliu seco. Ele assentiu, desviando o olhar.
Mewcedrya mal sabia que seu pupilo não só tinha ouvido falar do primeiro Arquemônio como vira a própria encarnação terrestre dele há quase dois anos atrás, na noite em que Devimyuu alcançou sua transformação pela primeira vez.
No entanto, a conversa entre o Senhor do Inferno e o menino semideus escolhido não transcorreu como a mais amigável, devido ao fato de Devimyuu ter se recusado a ouvi-lo e ameaçado usar um sigilo sagrado para manter-se longe dele.
Ciphermew nunca mais havia se manifestado desde aquela fatídica noite, e Devimyuu não sabia o que pensar sobre a aparição dele. Portanto, resolveu manter tal encontro em segredo para sua mentora, pelo menos por enquanto.
— Sim... Sei quem é. Ele governa os seis círculos do Inferno e é o primeiro reverso criado com a própria essência divina de Ghanog, o que o torna o primogênito dele.
— Exatamente. Bem, nos primórdios da primeira Era, Ciphermew tomou como sua fêmea Mewnereith, a primeira felin de biotipo Místico. Entretanto, para seguir as ordens do Soberano Ghanog quanto a produzirem herdeiros de grande poder para uma próxima geração de elite, ao mesmo tempo Mewnereith acabou se tornando também fêmea de Samewhain, o primeiro reverso de biotipo mágico, que é reverenciado por nós bruxos até os dias de hoje. Aliás, como você tem sangue real, é certeza que seja um dos descendentes dele.
Devimyuu — que ajudava Mewcedrya a procurar cogumelos comestíveis em meio aos venenosos — se surpreendeu com aquela última afirmação, pois nunca tinha parado para pensar em sua ascendência real na linhagem Reversa. Porém, em meio a tudo que Mewcedrya acabara de dizer, houve um detalhe que instigou mais sua curiosidade adolescente.
— Pera aí! Você disse "ao mesmo tempo"... quer dizer que eles eram tipo um trisal?
— Embora isso seja bem comum entre bruxos reversos, acho que não era exatamente o caso. Cumprindo as ordens do Soberano Ghanog, a única função de Mewnereith era gerar os filhos de ambos, para que também herdassem o poder místico dela. Sendo assim, nasceu Mewwicked, a primogênita de Samewhain e a primeira bruxa. Ela de fato era muito poderosa, porém, Samewhain não a escolheu como sucessora por ser fêmea, e apenas ensinou sua Magia Primordial para Razmewtin, seu segundo filho. Furiosa por ser menosprezada e subestimada, Mewwicked passou a criar os mais complexos feitiços, poções, e maldições, e ocultou esse conhecimento de seu pai e seu irmão. Ela ensinou esses encantamentos apenas para suas filhas, e disse que as mesmas deveriam ensinar apenas para as filhas delas e assim por diante. Esse conhecimento jamais deveria ser transmitido a nenhum macho para honrar a sua vingança. Desde a primeira Era, o poder maior sempre foi passado aos homens, e nós bruxas somos deixadas em segundo plano, servindo como a "escada" para a ascenção deles. Por isso, até os dias atuais, o ensinamento dado a jovens bruxos e bruxas é diferenciado. Aos meninos são ensinados ferozes magias de ataque, defesa e feitiços mortais; enquanto as meninas seguem aprendendo feitiços de aprimoramento de poder, encantamento de cura e transfigurações. Meu pai por exemplo era um bruxo com bastante conhecimento, mas passou seus ensinamentos apenas para o meu irmão. O que eu sei hoje aprendi graças a minha tutora e a mim mesma.
Já tinham terminado de colher ingredientes quando Mewcedrya terminou de contar-lhe aquela história. Devimyuu a acompanhava de volta ao centro do bosque ajudando a carregar a cesta com os itens colhidos, e olhou para a mentora, incrédulo.
— Mas que separação mais sexista e estúpida é essa?! Por que as bruxas só podem aprender feitiços de apoio enquanto só os machos ficam com magias de ataque? Isso é ridículo! Como esperam que vocês lutem ou se defendam?
— Não esperam, Devimyuu. Eu penso que tentar nos restringir desse jeito é uma das muitas formas dos machos nos subjulgarem e nos manterem submissas. Tem sido assim desde sempre, e não apenas com os biotipo Mágico. Mas pelo seu espanto, imagino que deva ser diferente no Mundo Puro, mas aqui, no nosso mundo, o sexo masculino é visto como superior, e é imposto a nós fêmeas que simplesmente aceitemos que existimos apenas para os servir e satisfazer.
Via-se nos olhos de Devimyuu o quanto o príncipe estava indignado.
— Mas… mas isso… não é justo! Essa ideia é tão absurda que chega a me dar nojo. Vocês não podem aceitar isso!
— A vida não é justa, querido, principalmente quando se nasce fêmea. E de fato, não são todas as que aceitam, mas essa resistência costuma custar a vida delas. Então, a maioria se submete, já que não temos muita escolha...
O semblante de Devimyuu ficou sério, e de repente, seu olhar carregou-se de ódio.
— Então… é por esse motivo que acontece o tipo de coisa que aconteceu com a minha mãe… O maldito do Mewpester fazia o que queria com ela, ninguém nunca a ajudou, e o desgraçado a matou quando ela finalmente fugiu! Do mesmo jeito que iriam te matar por não ter deixado fazerem o que queriam com você… Agora eu entendi. Vocês não têm quem as defenda, porque pelo visto, todos os machos reversos não passam de um bando de escrotos filhos da puta! Esse mundo é mesmo uma merda!
O futuro Lorde das Trevas estava em fúria. Mewcedrya sabia que podia ser perigoso se aproximar dele nesse estado, mas achou que dessa vez, seria válido arriscar-se. Ela chegou mais perto e ergueu gentilmente o rosto dele o segurando entre suas mãos.
— Não, nem todos. Você não é assim. E você não está destinado a apenas um trono, Devimyuu. Este mundo todo será a sua posse. E se você quiser, ninguém poderá impedir que você o mude, meu amado semideus. E é por isso que não me arrependo de ir contra minhas ancestrais e realizar com você um rito que só devia ser passado se eu tivesse uma filha ou uma jovem bruxa como aprendiz. Mas eu não me importo com isso, porque sei que fará bom uso.
Mewcedrya sorriu, e as palavras dela conseguiram acalmar Devimyuu.
— Poxa… Me sinto honrado por confiar tanto assim em mim. Obrigado, Cedry.
— É claro que confio. Afinal, que tipo de terceira mãe eu seria se não confiasse no meu filho?
Devimyuu sorriu de volta, e foi como se o ódio que há poucos ardia em seu peito jamais tivesse estado ali.
— Bem, e que tipo de rito estamos fazendo?
Ele perguntou, ao observar Mewcedrya sentar-se no solo de terras e materializar magicamente um pequeno caldeirão negro, com duas gemas de salamandra embaixo dele para aquecer o cozimento. Ela colocou os cogumelos, pinhões, ervas e sementes e que tinham apanhado, e por último, acrescentou um misterioso pó translúcido e começou a mexer a mistura.
— O objetivo principal de ter te trazido aqui é sua iniciação druida, no entanto, também estou aproveitando para realizar um pequeno ritual que as bruxas faziam com suas filhas e aprendizes. Elas vinham para a floresta numa noite de lua crescente como essa e permaneciam aqui até a lua cheia. Tudo o que colhemos antes tem propriedades mágicas que só as bruxas conhecem. Portanto, o que eu estou preparando agora é não só uma refeição como também um grande encantamento.
Expectativa, ansiedade e curiosidade voltavam a preencher o coração do príncipe sombrio. Ele olhava deslumbrado para o conteúdo se misturando magicamente no caldeirão de Mewcedrya, como também para outros ingredientes peculiares que só agora reparou estarem ali.
— Um encantamento para nós mesmos? Isso que eu chamo de bruxaria! O que exatamente esse encanto vai causar?
A druidesa estava concentrada, e mesmo que não fosse visível, era perceptível que uma grande aura de poder estava sob ela, como se a avermelhada meia lua naquele céu negro transmitisse seu poder diretamente a Mewcedrya e a ninguém mais.
Mais cedo, guiara seu pupilo através de seu lado druida, mas agora, trazia à tona sua verdadeira parte bruxa.
Ela ergueu os olhos para Devimyuu. Suas íris esmeralda emanavam um brilho alaranjado. Poderoso, reverenciável; refletindo a experiência e astúcia diabólica que tornava a malícia milenar das bruxas tão nefastamente bela.
— Essa, meu querido filho, é a liberação do seu sétimo ciclo.
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