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— GATILHO —
(Parte Um)

Sentada num velho tronco frente a cabana, a druidesa olhava adiante com uma expressão impaciente. Ela traçava uma rede feita de cipós e raízes, sobre o colo, e uma de suas pernas balançava-se de forma inquieta. A fêmea não se dignava muito a prestar atenção no que trabalhava, pois a cada farfalhar de folhas, ou sopro do vento sepulcral da floresta, desviava seu olhar da rede e fixava-o na mata umbria diante de si, tentando enxergar com avidez o que surgiria dela.

O som de um galho partido ali próximo tornou a distraí-la, dessa vez, revelando-se ser o real motivo de sua inquietação.

Devimyuu surgiu dentre os arbustos amarronzados a combinar com as mórbidas árvores quase sem folhas, devido o avanço do outono. O príncipe reverso, já mais experiente e mais maduro, caminhava a passos sorrateiros como de um felino a dar o bote.

Parte dos cabelos, ainda mais longos e cheios, estava preso num alto rabo-de-cavalo jogado para trás sobre o resto solto, e como sempre, a franja comprida cobria-lhe um dos olhos.

Aos dezesseis anos e meio, não havia mais resquícios infantis na aparência do futuro Lorde das Trevas. O dia-a-dia de caçadas e treinamentos na voraz floresta lhe proporcionou músculos que agregavam um belo conjunto a sua altura que agora passava pouco de 1,80m, mesmo tendo mais o que crescer. O tempo sem dúvida lhe favorecera, pois embora ainda fosse um garoto, Devimyuu apresentava um porte físico memorável; digno de um semideus, cuja divindade própria lhe abençoara com um corpo invejável onde não se notava um único defeito.

Ele vestia uma capa verde-musgo que caía quase até seus pés, um pouco suja de terra e folhas secas. Pendurada num dos ombros, carregava uma bolsa de couro aparentemente cheia, enquanto no outro, repousava uma lança de madeira enegrecida com a ponta afiada, esculpida de um cristal vermelho. Mesmo a certa, distância Mewcedrya pôde notar resquícios de sangue acumulado nela.

O adolescente se achegou a druidesa, largando a bolsa e a lança, jogando-se no solo natural ao lado do troco onde ela se encontrava sentada. Soltou um longo suspiro de olhos fechados para demonstrar seu cansaço, embora não estivesse tão exageradamente exausto quanto tentou aparentar.

— Posso saber onde é que você estava? A druidesa questionou num tom descontente.

— Por aí… — Respondeu Devimyuu, apoiando as mãos atrás da cabeça, ainda de olhos fechados.

O garoto recebeu um leve puxão numa das orelhas em troca de sua resposta vaga.

— Miai! — Queixou-se ele, abrindo os olhos e a encarando descontente, o que para Mewcedrya foi indiferente. 

— Você saiu antes de amanhecer e voltou quase ao pôr do sol… “Por aí” não é resposta. — Disse ela, voltando a concentrar-se a trançar a rede.

— Eu fui caçar. Precisava do ingrediente final pra última poção que criei… e de alguma coisa pra jantar hoje, né… — Respondeu o garoto murmurando.

— Custava ter me avisado disso antes de simplesmente desaparecer o dia inteiro?

Indagou a fêmea, tentando disfarçar o quanto estava irritadiça.

— Até parece! Quanto te acordo, você fica mais demoníaca do que eu!

— Me respeite, menino! — Mewcedrya resmungou, mas no fundo segurou-se para não rir, ao contrário do príncipe das Trevas, que soltou um riso debochado.

— Tá, foi mal não ter dito nada… Por acaso ficou preocupadinha comigo, é? — Devimyuu fazia questão de usar do tom irreverente, com o qual adorava provocar a fêmea que se tornara sua mentora.

— É claro que não. — Mentiu ela. — É que pelo tempo que demorou, eu já estava achando que você tinha virado caça…

O garoto a encarou com um olhar convencido.
— Qual é, Cedrya… Você sabe que agora são as criaturas dessa floresta que têm medo de mim. Não existe mais nada aqui que seja o bastante pra me ameaçar.

A autoconfiança de Devimyuu fazia jus aos seus atos. Estava com Mewcedrya há quase seis estações, e a cada dia deste tempo sob sua tutela, a druidesa lhe transmitiu toda sabedoria que carregava.
O príncipe semideus agora sabia ouvir a voz da floresta, pressentir seus perigos, prever suas armadilhas e rastrear as pérfidas criaturas que ali habitavam. 

Os primeiros treinamentos não foram fáceis; por muitas vezes, pensou até que perderia outra de suas vidas nas noites em que passou enfrentando Tererrores, duelando com monstros grotescos e fugindo de ninhos de aractauris - pavorosos aracnídeos com chifres que possuíam o tamanho e a força de um felin adulto.
Contudo, o futuro Lorde das Trevas sobreviveu, e a cada experiência, aprendeu a aplicar os conhecimentos que Mewcedrya lhe passara. Após dominar até mesmo um lowfe, aparentemente não havia uma criatura sequer da Floresta Maldita que não se sujeitasse ao poder sombrio do garoto arquemônio. Devimyuu tornara-se o maior predador dentre elas. Ele era um caçador impávido guiado por um instinto assassino, uma sombra furtiva a dominar a noite; feroz, letal, e imparável.

— É uma floresta amaldiçoada num território carregado de magia… Sempre haverá algo mais, Devimyuu. Além do mais, não é como se você conhecesse toda ela. — Afirmou a druidesa, com certa seriedade.

— Tá, tanto faz… — ele respondeu com a  típica irrelevância adolescente — Mas então, mudando de assunto… Acha que pode cozinhar isso aqui? — O garoto puxou o corpo de uma ave grande e gorda do interior da bolsa de couro.
— Por favor diz que sim. Não aguento mais comer mato… 

Mewcedrya era vegetariana, mas se dispunha a cozinha os animais que Devimyuu caçava. Se deixasse o príncipe fazê-lo por si só, ele provavelmente atearia fogo à cabana na tentativa.

Uma recente chuva castigante de sete dias fez com que as possíveis presas se escondessem, e para não se arriscar com sapos venenosos, – que eram os únicos animais a se exporem sob o temporal – restou ao príncipe partilhar das leguminosas, frutos e raízes que faziam parte da dieta da druidesa.

A fêmea olhou um tanto impressionada para a ave morta.
— Você pegou um gaiatriz? Nada mal, garoto deus… É muito difícil capturá-lo porque as cores de suas penas mudam de acordo com as folhas das árvores para camuflá-los.

— Nem me fale! Fiquei três horas sentado num galho pra pegar esse bicho, espero que o gosto dele valha a pena…

Reclamou o jovem semideus, lembrando-se do desconforto que foi esconder-se durante horas na copa de uma árvore e permanecer imóvel ali para capturar sua presa.

— Ainda não sei se vou cozinhá-lo… Limpar aves é muito trabalhoso, o que vou ganhar em troca disso?

Questionou a fêmea, dessa vez sendo ela a provocá-lo.

— Que tal a satisfação de cozinhar para um príncipe? — Devimyuu devolveu-lhe a provocação.

— É bom que tenha outra oferta ou vossa alteza vai comê-lo cru…

Devimyuu ergueu os braços para o alto, simulando um sinal de rendição. — Tá, tá bom! Eu peguei os ovos dele pra você. Que tal isso? E… — ele se virou e apanhou algo mais dentro da bolsa. — Também te trouxe mais olho-de-norttus, vi que o seu estava acabando.

O futuro Lorde entregou as sementes negras de miolo vermelho. Tinham o tamanho de uma noz e se assemelhavam ao olho de uma fera. Elas brotavam no topo da árvore norttus, uma conífera de seiva venenosa, com troncos e galhos espinhentos.

Mewcedrya não conseguiu evitar um sorriso satisfeito. As sementes tão difíceis de conseguir eram extremamente úteis em suas poções, tônicos e até temperos.

— Ora essa, parece que ganhou seu jantar, menino príncipe. — Ela brincou, porém sua voz soava realmente orgulhosa. — Só tenho mais uma coisa a te pedir… A chuva deixou uma falha no telhado, então fiz essa rede para reforçá-lo. Pode colocar lá em cima para nós? Use esta seiva que enfeiticei para fixar.

Ela entregou ao garoto um recipiente de argila com um viscoso líquido marrom dentro.

— Miah, Cedrya! — choramingou — Eu andei e cacei o dia todo, tô faminto e exausto!

— Tudo bem se não quiser fazer. Mas devo avisar que a goteira estará próxima à sua cama… — Respondeu Mewcedrya, calmamente colocando-se de pé.

— Me dá isso aqui. — Bufou Devimyuu, pegando das mãos dela a rede trançada, e a druidesa apenas riu-se.

Um tempo depois, o herdeiro das Trevas dava a si mesmo um merecido descanso após um dia trabalhoso. De um príncipe mimado que crescera rodeado de agrados e luxos antes de seu rapto, ele se tornara um verdadeiro guerreiro da floresta, deixando-se guiar pelos instintos de seu felino selvagem interior, tal qual a druidesa que o ensinou a trilhar esse caminho.

Contudo, apesar das dificuldades, o jovem semideus acostumara-se com o intercalar de simplicidade e sobrevivência que sua vida se tornou. Embora ainda houvesse muito o que aprender no domínio de seus poderes de arquemônio, era inegável o quanto estava mais forte. Sua resistência física aumentara exponencialmente, assim como seu nível de poder mágico. Com as magias que executava atualmente, as três dúzias de soldados que o perseguiram há pouco mais de um ano teriam sido dizimadas antes que os Tererrores sequer tivessem a chance de abatê-los.

Imerso até a linha do peitoral nas águas escuras da piscina natural da caverna de cristais vermelhos, Devimyuu refletia que não tinha muito do que reclamar. Os ensinamentos de Mewcedrya vinham se mostrando essencialmente eficazes para seu treinamento, antes que pudesse deixar a Floresta Maldita e seguir em sua vingança contra Mewpester. 

Além disso, a druidesa era uma boa companhia. Inconscientemente, talvez essa fosse a melhor parte da vida que o futuro Lorde das Trevas levava agora. Ele não tinha apenas um teto sob sua cabeça e um lugar seguro onde podia obter uma refeição quente. Mesmo com seu jeito implicante e falso desapego, era nítido o quanto Mewcedrya se importava com ele; fosse em coisas mais alarmantes como preocupar-se com ele desaparecido no coração cruel da mata por um dia todo, ou em menores, como cobri-lo com uma manta extra durante a madrugada, quanto a noite soprava gélida por entre as frestas da madeira da cabana. 

Por mais que quisesse negar, estava claro que Mewcedrya havia se tornado para ele mais do que uma mentora. No último ano, vinha sendo como uma mãe para o príncipe perdido.

Todavia, Devimyuu lutava contra seus sentimentos para não enxergá-la assim. Já havia tido uma segunda mãe, e a dor da separar-se dela ainda rasgava-lhe o peito em momentos de solidão. Ele acreditava que ela o havia abandonado, o esquecido… O futuro Lorde não suportaria passar por tal dor novamente. Por isso, tentava evitar apegar-se a Mewcedrya como uma figura materna, pois, se um dia ela o deixasse, ele poderia superá-la facilmente.

Pelo menos, era assim que pensava, sem ter ideia do quão enganado estava. 

Com os músculos de seu corpo jovem já relaxados pela água, Devimyuu enfim deixou a piscina natural e vestiu-se com uma das mudas de roupa limpa que Mewcedrya sempre deixava para ele. Mudas essas conseguidas graças as poucas, porém notórias habilidades com alquimia da druidesa, ao transformar folhas e ramos em tecido.

Devimyuu seguiu pelo caminho subterrâneo que agora lhe era tão familiar. Foi por este mesmo trecho que atravessava, onde há pouco mais de um ano, a misteriosa druidesa que o resgatara o conduziu. O jovem Lorde das Trevas momentaneamente se lembrava de como sentia-se confuso, sozinho e perdido, demonstrando um comportamento arredio para com ela, temendo que não fosse confiável. Afinal, apenas havia se deparado com crueldade e maus-tratos desde que fora arrastado ao Mundo Reverso, – com exceção de sua madrinha – e portanto, aprendeu a esperar apenas o pior.

Todavia, não era assim com Mewcedrya. Foi necessário um tempo considerável até acreditar por completo que ela não era como os demais, que não queria subjugá-lo ou aproveitar-se dele como todos à sua volta. Mas agora, Devimyuu sabia que aquela fêmea não era assim. Enfim encontrou alguém diferente, enfim havia outro adulto que se importava com ele e em quem podia confiar. 

E pelo menos por um pouco, pôde parar de sentir-se desamparado e só.

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