- 09.2 -

A porta da cabana estava fechada, e a abertura para a janela que havia no quarto estava coberta por um tipo de grossa rede de cipós trançados, para diminuir a passagem do vento. Um cheiro apetitoso vinha da cozinha e invadia o quarto.

O príncipe das trevas sentia-se incomparavelmente melhor. Ele se levantou, enrolou-se na colcha, e deu alguns passos até a cozinha.

— Mewcedrya...? — Ele chamou, parando próximo a meia parede que dividia os dois espaços.

A druidesa estava de costas, ante o forno de pedra, mexendo o cozido que cheirava bem. Ela se virou com um olhar inconformado ao ouvir a voz do garoto semideus.

— O que é que está fazendo de pé?! — A mão que segurava uma longa colher de madeira agora estava em sua cintura.

Devimyuu conhecia bem aquele olhar e expressão corporal, sem mencionar o tom de voz. Já o ouvira algumas vezes quando estava sob os cuidados de sua mãe adotiva, nos raros momentos em que estava prestes a levar uma bronca.

— Eu já tô melhor... — Ele tentou argumentar.

— Isso sou eu quem decide, filhote de deus. Volte pra cama agora mesmo.

O futuro Lorde das Trevas sentiu vontade de dizer que ela não mandava nele, porém, achou que seria um grande ato de ingratidão de sua parte para com quem estava lhe cuidando tão bem há cinco dias. Mesmo assim, sua personalidade rebelde não deixaria de contestar a druidesa.

— Como pode ser você quem decide se sou eu que estou sentindo?

A druidesa cruzou os braços. Suas sobrancelhas estavam cerradas sobre um olhar severo.
— Eu vou contar até três...

Devimyuu revirou os olhos.
— Pff... Isso não funciona comigo, não sou mais criança.

— Um...

— Sério que vai continuar? — O príncipe sombrio a olhava desacreditado.

— Dois...

— Vai nessa... Eu não tenho medo do três... — Foi o que Devimyuu afirmou, mas diminuía a coragem de peitá-la a cada contagem.

— Dois e meio, garoto... — Seu tom de voz passou de rígido para ameaçador.

— Miaff, tá bom! Você venceu! Que saco...!

O garoto resmungou para não perder a pose, no entanto, voltava para a cama com um pequeno sorriso de canto.

Não sentia mais sono, então apanhou o livro da noite anterior e voltou a lê-lo deitado. Com magia, o fazia flutuar na altura dos olhos, assim mantinha os braços bem aquecidos sob o cobertor aconchegante.

Uns vinte minutos depois, Mewcedrya entrou no quarto. Trazia uma tigela de madeira relativamente funda, segurando em suas extremidades com as mãos envoltas num tecido de linha; provavelmente algo confeccionado por ela própria. O príncipe das Trevas ficou observando-a colocar a tigela sobre o móvel rústico que ficava próximo a cama, se perguntando se aquilo era pra ele. Um cheiro deliciosamente indescritível exalava dali.

Devimyuu não estava tão faminto, o terrível mal estar anterior tirou-lhe o apetite. Mas agora, sentia sua boca encher d'água com aquele aroma maravilhoso.

Sem dizer nada, Mewcedrya retirou-se, parecia apressada com algo. O adolescente aproveitou sua saída para afastar o cobertor e inclinar-se com o peito desnudo, tentando aproximar o focinho da tigela quente para sentir melhor aquele aroma e espiar o que cheirava tão bem.

— Caham... — A druidesa, que já tinha retornado e o pegou no flagra, limpou a garganta para chamar-lhe atenção.

— Que? Eu não tô fora da cama. — Se justificou o adolescente.

— Mas está fora das cobertas. O feitiço de recuperação não fará efeito total se não mantiver seu corpo aquecido. — Ela foi incisiva naquela frase.

— Miaff, Mewcedrya... Eu só estou com os braços de fora!

— Estou vendo bem mais do que seus braços para fora...

A druidesa não fez questão de disfarçar a direção de seus olhos. O garoto Lorde olhou para si, e percebeu que havia arrancado as cobertas muito além do que devia. Como estava totalmente nu debaixo delas, cobriu-se imediatamente com o rosto ruborizado de embaraço.

— P-pára de olhar! — Exclamou o menino, puxando o cobertor até o pescoço.

Mewcedrya se riu.
— Ora essa, crianço. Não tem nada aí que eu já não tenha visto... Não é a primeira vez que cuido de você, se lembra?

O príncipe a olhou indignado e levantou uma sobrancelha.
— Disse que não tinha procurado ferimentos por aqui!

— Eu menti. Você estava ensanguentado e sujo, menino. Eu tinha que ver se o sangue não vinha de mais nenhum lugar, inclusive em suas partes baixas.

As bochechas de Devimyuu ficaram escarlate como as de um biotipo fogo, e o garoto esboçou um facepalm.
— Não acredito que me viu pelado! — Exclamou.

— E daí, filhote de deus? Isso não é causa para alarde. Eu estava tratando você e apenas isso. Pode acreditar quando digo que não tinha segundas intenções.

— Então você jura que não tocou no meu... Caham...! Você sabe...
Devimyuu questionou, com visíveis constrangimento e ao mesmo tempo preocupação estampados em seu rosto ruborizado.

Podia parecer que estava exagerando ou até mesmo sendo grosseiro em pensar que Mewcedrya poderia de alguma forma ter tocado nele com intenções de se aproveitar. No entanto, um traumático e relativamente recente episódio vivenciado com a esposa de Mewpester dava ao garoto motivos mais do que válidos para ter tais preocupações.

Mewcedrya suspirou incrédula.
— Pela Mãe Natureza... É claro que não, menino! Lhe asseguro que não tenho interesse por meros garotinhos que mal têm dois tufos de pelos no peito, portanto não se preocupe. E aproveitando, aqui está. Vista-se para poder comer.

A duidresa entregou-lhe as roupas que já tinham secado - a regata cinza de malha, a calça preta e obviamente o calção vermelho que usava por baixo.

Como não havia mais nada a ser feito, só restava ao príncipe sombrio esquecer o assunto e focar seu pensamento no cheiro apetitoso que invadia suas narinas. Ele vestiu a camiseta, e Mewcedrya virou de costas para que o garoto vestisse o resto. Devimyuu percebeu que suas vestes estavam mornas, como se fossem recém passadas, no entanto, obviamente a druidesa não tinha nenhum ferro de passar ali.

— Como fez pra as deixarem quentes? Ele não resistiu a perguntar.

— Eu deixei próximo ao forno de pedra enquanto preparava seu cozido. — Disse com naturalidade. — Vista o manto que te dei também. Você já está quase curado, mas é melhor não arriscar para que a febre não volte durante a noite.

Mewcedrya colocava as mãos sobre a testa e as bochechas com espinhos do garoto semideus, checando sua temperatura.

Seu olhar era preocupado e cuidador. Devimyuu estava perplexo, se perguntando porquê ela se dava ao trabalho de ser tão cuidadosa com ele. Não parecia ser algo que a druidesa fazia por obrigação.

Porém, antes de questionar-lhe qualquer coisa, apanhou o manto cor mostrada que ela entregou e obedeceu a ordem de vesti-lo.

— Aqui, crianço. Coma tudo, é essencial para concluir sua recuperação.

A fêmea adulta colocou a tigela em suas mãos. Devimyuu olhou para o que havia dentro da mesma. Um caldo verde com pequenos pedaços de carne branca - carne de bunnelhos, pequenos roedores orelhudos que existiam aos montes na floresta. Seus pequenos dentes eram excepcionalmente afiados e a mordida arrancava sangue facilmente.

O cheiro delicioso fazia jus a aparência do cozido servido. Devimyuu estava ansioso para abocanhá-lo. Há um bom tempo não sentia o sabor de carne em sua boca.
No entanto, não seria capaz de dar uma única colherada sem antes perguntar a Mewcedrya a questão que martelava em sua mente.

O príncipe pegou a tigela e agradeceu. Manteve-se em silêncio por dois segundos e então olhou para a druidesa.

— Eu queria te perguntar uma coisa... Por que faz todas essas coisas por mim? E não me refiro só a agora... Por que você me salvou, me acolheu e... parece se importar comigo?

— É claro que me importo com seu bem estar. Você é um filhote de deus perdido, que a floresta me incumbiu de cuidar. Eu jamais me recusaria a cumprir a vontade dela.

— Então é isso... é só porque eu sou o semideus arquemônio dessa Era?

Devimyuu baixou os olhos, seu rosto estava sério, como se ele tentasse esconder uma possível decepção por vir.

A druidesa, porém, sorriu.
— Não somente por isso, existe outro motivo que me faz querer cuidar de você. Quem sabe um dia eu te conte? — Ela respondeu, tornando seu sorriso misterioso. — Agora aproveite seu cozido. Vou lhe trazer um pouco de água.

Devimyuu ficou pensando no que ela disse, e mal percebeu quando a fêmea retornou com um velho copo de barro com água fresca. Ela o entregou e o garoto agradeceu outra vez, mas ainda se mantinha sério e cabisbaixo.

— Ora vamos... Não fique assim, príncipe. Quando o encontrei, eu realmente só estava aceitando o que a floresta me comissionou, mas agora é diferente. Estou realmente gostando muito de você e de tê-lo aqui comigo.

A druidesa segurava em seu queixo levemente para fazê-lo encará-la, e sorria. Devimyuu via que o olhar dela não mentia - a sinceridade em suas palavras era inegável até mesmo para um adolescente desiludido e cercado de revoltas, como ele.

Isso o levou a pensar sobre o que a fêmea havia lhe proposto mais cedo. Ele sentia que já havia tomado uma decisão quanto a que rumo seguir, mas precisava do aval dela para estar certo disso.

— Então... quando falou que eu deveria ficar e me preparar primeiro, antes de seguir com minha vingança, você por acaso se referia a ficar... aqui... com você? — Ele engoliu seco após a pergunta, e olhava para Mewcedrya com o canto dos olhos, fingindo que encarava a tigela com o cozido quente que estava em seu colo.

Com sua serenidade magistral, Mewcedrya o olhava com um pequeno sorriso.
— É claro que é aqui comigo, crianço. Afinal, se não fosse, onde mais você ficaria? Eu não posso deixar meu filhote de deus desabrigado e ao relento da floresta que ele mal conhece, não é?

Com sutil simpatia, ela piscou-lhe um olho, enquanto bagunçava sua franja comprida sempre encobrindo o olho esquerdo.

Devimyuu até riu-se brevemente. Sentiu uma inegável sensação de acolhimento e segurança que esquecera como era durante seu rapto.

— Bom... acho que vou aceitar então... Eu realmente não tenho pra onde ir...

Disse o garoto, soando um pouco mais melancólico do que gostaria, em vista da situação de desamparo e dependência que se encontrava.

A druidesa, contudo, mantinha-se com mesma expressão serena até mesmo cordial. Ela apoiou uma das mãos sobre o ombro do príncipe adolescente.
— Pode não ter pra onde ir, mas agora você tem onde ficar, filhote.

Devimyuu respirou fundo. Sentia como se um enorme alívio lhe pousasse após um grande peso ser retirado de seus ombros. Ele olhou para Mewcedrya e lhe mostrou um sorriso mais verdadeiro e gentil que ela pensou jamais ver num futuro Lorde das Trevas.

— Obrigado, Mewcedrya.

— Não há de quê, menino príncipe.
A druidesa lhe sorriu da mesma forma.

— Meu nome é Devimyuu. Mas pode me chamar só de Devim, se quiser...

— Oh? Você tem um belo nome, menino Devim. Agora coma antes que esfrie. Lembre-se que ainda não sarou totalmente, embora esteja bem melhor.

— É, eu estou bem sim. Muito mais do que eu pensei que estaria...
Respondeu o príncipe, agora não mais solitário.

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