- 07 -

- O FILHO DO PRÍNCIPE HEREGE -

Devimyuu acordou assustado, ao sentir seu corpo tombar no chão de madeira. Ele olhou ao redor ligeiramente confuso. Um feixe da fraca luz do cinzento sol reverso entrava por uma fresta da janela aberta do quarto. A manta de tricô com a qual Mewcedrya o cobriu estava enrolada em seus pés.

- Ora, até que enfim acordou. - Disse a druidesa, que entrou no quarto ao ouvir o som de Devimyuu caindo no chão.

- O... o quê que houve? - O príncipe reverso perguntou, ainda um tanto desorientado.

- Parece que você caiu da cama. Teve um pesadelo?

- Sei lá, eu num me lembro... - Devimyuu respondeu, esfregando os olhos. - Por que eu tava na sua cama?

- Você adormeceu de repente, já estava dormindo quando eu voltei ontem. Não quis acordá-lo, você precisava descansar.

O futuro Lorde enfim se levantou do chão, apanhando a manta caída.

- Foi mal ter tomado sua cama... - Disse, um pouco constrangido.

- Não se preocupe, filhote de deus, você não tomou. Está com fome? Temos broas e chá novamente.

Sem esperar por uma resposta, a fêmea voltou para a cozinha da cabana. Sabia que Devimyuu a seguiria.

O garoto se espreguiçou. Há muito tempo não tinha um sono pacífico, era até estranho não ter tido os pesadelos torturantes que costumavam assombrá-lo. Ele passou a mão pelos longos cabelos emaranhados e calçou as botas, em seguida indo para a cozinha.

Mewcedrya já tinha colocado um prato com as broas e servido um copo com chá para seu jovem convidado.

Devimyuu tomou lugar à mesa. O chá estava quente e as broas ainda mornas de quando a druidesa as assou no forno de pedra, mas dessa vez, eram broas de kabóbra, o que agradou enormemente o paladar do felin bruxo.

- Você parecia bastante interessado no livro de ontem. Gosta de ler? - Mewcedrya perguntou, juntando-se a ele na mesa.

Ela segurava o ramo de uma planta espiguenta que ele desconhecia, retirando as sementes marrons que tinham o tamanho de ervilhas e as colocando numa tigela de barro.

- É, eu... até que lia bastante. - Respondeu o menino, com as lembranças dos inúmeros livros mágicos que possuía quando vivia num castelo, e podia passar o tempo que quisesse lendo e praticando novas magias que aprendia através destes.

- Eu tenho outros livros além daquele na estante. Você pode ler se quiser.

- E onde foi que você arrumou? - Ele perguntou, mordendo uma das broas com vontade.

- A cada três luas cheias vou até a cidade, na parte baixa do mercado Malgoure, em Mahojtani. Eu troco os cristais mágicos que recolho na caverna por certos mantimentos, peças de tecidos e às vezes alguns livros.
Respondeu a druidesa.

Devimyuu compreendeu a razão de Mewcedrya ter coletado alguns dos melhores cristais que avistava, quando seguiam caminho da caverna até sua cabana, no dia anterior. Eles eram sua moeda de troca para o pouco que a floresta não conseguia lhe prover.

- Isso me lembra que você não terminou de me contar como conseguiu fugir e vir pra essa floresta.

Comentou o garoto, partindo para a segunda broa fresca.

Mewcedrya esboçou um sorriso de canto.

- Eu estava esperando que perguntasse por isso. Pois muito bem, vamos ao final da história.

Pronto e de certa forma ansioso para ouvir, o futuro Lorde se ajeitou na cadeira, cruzando as pernas sobre o assento e recostando-se, com o copo de chá nas mãos. Discretamente, a druidesa reparava na reação do adolescente quanto a ouvir uma história. Presumia que não era exclusivamente por se tratar da história dela - o menino parecia gostar disso, gostar do ato de escutar. Mal sabia ela que, em seu passado, uma das coisas que o príncipe sombrio mais gostava de fazer era sentar com sua avó adotiva para ouvir suas histórias, enquanto comia doces preparados pessoalmente por ela.

- Graças a minha conexão com a natureza, consegui fazer com que as sementes que minha mãe me trouxe escondidas germinassem dentro de um balde, que foi deixado em minha cela para as minhas necessidades. Elas cresceram o suficiente pra que eu as usasse pra escalar até quase a altura do teto, onde havia um buraco para a passagem de ar, a única abertura entre aquelas paredes de concreto sem janelas.

- E como é que os caras que te vigiavam não viram uma planta gigante aparecer do nada e subir pela parede da cela? - Questionou o garoto curioso, após tomar um gole do chá. Percebeu que havia leite misturado, e ficou se perguntando de que animal teria vindo.

- Era de dia, e acredite ou não, o único guarda que estava me vigiando resolveu tirar uma soneca. Provavelmente me subestimou por eu ser mulher, e achou que com minha magia bloqueada, seria impossível que eu fugisse dali.
Explicou a druidesa.

- Pff... Que otário. - Respondeu Devimyuu com desdém.

Mewcedrya riu e continuou.

- Eu consegui me espremer pela passagem, então subi no telhado. Só que os guardas que vigiavam o lado de fora acabaram me vendo. Desci ao chão com a ajuda de uma árvore e me pus a fugir deles. Felizmente, o bloqueio de minha magia estava restringido a cela onde me trancaram, e do lado de fora eu podia usá-la livremente. Quando já tinha tomado certa distância, esperei que viessem a mim e me preparei pra atacar. Eles eram pouco mais de meia dúzia.

O relato dela fez Devimyuu se lembrar de si mesmo alguns dias atrás, quando os soldados de Mewpester o perseguiam.

- Deixa eu adivinhar. Você invocou suas plantas assassinas e acabou com a raça deles.
Presumiu o menino.

- Basicamente sim. Mas só consegui matar alguns de imediato. Outros eu apenas prendi, e aproveitei o tempo que isso me daria pra fugir. Consegui improvisar uma vassoura encantada, e até que conseguissem chamar reforços, eu já estaria longe.

- E então você finalmente veio pra cá? - Mewcedrya percebeu que Devimyuu tinha terminado de beber o chá, mas parecia querer mais, sendo assim, ela se levantou e lhe serviu mais um pouco. - Mierr... de que bicho é o leite que tem nesse chá? - Ele não resistiu a perguntar, enquanto Mewcedrya enchia seu copo.

- De coruska, tem algumas por aqui. Se escondem muito bem e é difícil encontrá-las. Geralmente é o feldrin que as atrai pra perto de mim. - Respondeu a fêmea.

Coruskas eram cervídeos fêmeas, comumente encontrados em florestas tanto no Mundo Puro quanto Reverso. Afinal, mesmo de modo distorcido, Ghanog copiara a grande maioria das criações de seu irmão Ghaceus, incluindo a vida animal.

Devimyuu já tinha experimentado carne de coruska nos tempos prazerosos como um príncipe de boa vida. Sendo assim, continuou bebendo despreocupado. O leite de um animal tão saboroso com certeza não lhe faria mal algum, mesmo se tratando da versão reversa dele.

Após responder sua pergunta sobre a procedência do leite, Mewcedrya prosseguiu com a parte final de sua história.

- Eu não sabia ao certo para onde ir, só sabia que não podia ficar mais no território de Mahojtani, pois me encontrariam em qualquer vilarejo onde eu tentasse me esconder. Resolvi deixar que a natureza guiasse minha fuga - eu fugiria pra onde estivesse mais perto dela. Foi então que avistei a Floresta Maldita, quando estava para deixar os limites de Mahojtani. Mesmo sabendo dos perigos que se escondiam nela e dos relatos dos poucos que sobreviveram ao atravessá-la, eu não hesitei em entrar. Senti que a voz interior dela me chamava, e não tive medo em segui-la.

- E nenhuma árvore-monstro psicopata tentou te devorar? - Indagou Devimyuu.

- Não. A natureza protege os que considera dignos, e posso dizer que esse era o meu caso. Os únicos que tentaram me devorar foram um casal de lowfes, mas o feldrin me protegeu deles. Foi assim que o conheci, aliás.

- E ninguém te achou nem veio atrás de você?

- Sim. Demoraram um pouco, mas conseguiram achar o meu rastro. Uma turba liderada pelo meu próprio pai chegou a entrar na floresta, mas ela mesma cuidou deles, do mesmo jeito que cuidou daqueles soldados que estavam aqui há alguns dias. Foi aí que tive certeza que aqui era o meu lugar. Eu tinha encontrado meu destino, e resolvi nunca mais sair daqui. Os primeiros meses de adaptação foram difíceis, mas foi um pequeno preço justo a pagar pela minha vida e pela minha liberdade. Eu finalmente me sentia em casa.

Foi bom saber que a história de Mewcedrya tivera um final feliz. Mas isso fez Devimyuu questionar-se sobre sua própria história. Onde era o verdadeiro lugar dele? Ele acreditava ter um lar quando vivia no Mundo Puro, mas tudo isso ficara para trás. Ele era um arquemônio, seu lugar era na Escuridão - regendo as Sombras, proliferando o mal...

Mas se era assim, por quê diferentemente de Mewcedrya, por mais que tentasse, ele não conseguia sentir que estava em sua casa?

- Bom, pelo menos, seu pai teve o que merecia por ser um escroto e você acabou bem...

Disse o futuro Lorde, com o olhar divagando.

- Podemos dizer que sim. Bem, é sua vez, menino. Como é que o filhote de deus veio parar aqui?

Devimyuu foi pego de surpresa com a pergunta da druidesa. Era válido ela querer saber o que o levou a se encontrarem, mas o jovem semideus não sabia se estava pronto para contar. Pelo menos, não tudo.

- Não precisa contar se não quiser. Eu só estou curiosa, mas não quero que se sinta obrigado a nada. Espero que não me leve a mal. - Disse Mewcedrya.

Ele respirou fundo, após uns instantes em completo silêncio.

- Não... tudo bem, eu conto. Eu tava fugindo da guarda real. Estão me caçando desde que fugi do palácio, há mais ou menos uma semana. Já tinha me livrado de alguns deles, mas eram muitos, eu tava machucado e quase sem magia. Minha única saída foi tentar me esconder na floresta. Eles vieram atrás de mim do mesmo jeito, mas pelo visto, também sou um desses que a floresta considera dignos, porque você viu no que deu.

A druidesa mostrou uma face de espanto com perplexidade no olhar.

- Espere mas... desde criança eu aprendi que segundo nossos escritos sombrios sagrados, o enviado divino de Ghanog sempre carregaria sangue real em suas veias e nasceria entre majestades...

- Sim. Você e esse monte de baboseira escrita há milênios atrás estão certos. - Respondeu o garoto de cenho franzido e braços cruzados.

- Então está me dizendo que é um príncipe?

- É, sou... - Disse sem muita importância.


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