- 06 -
— DESCOBERTAS —
Devimyuu sentia o chá quente descer lentamente por sua garganta. O broto de kabóbra trazia um sabor agradável, principalmente com o mel de vespelha que a druidesa usara para adoçá-lo. Ainda em silêncio, o garoto apreciava cada gole suavemente com a elegância digna de um lorde. A convivência com a mãe adotiva fez com que desenvolvesse tal hábito.
Mewcedrya assistia curiosa a apreciação do adolescente. Não era comum felins da idade dele terem gostos por chá. Discretamente, enquanto bebia o próprio chá, ela prosseguia o observando, ávida para compreender o máximo que pudesse a respeito do garoto arquemônio. Seu comportamento a instigava por completo, todavia, a feiticeira da floresta estava ciente de que tudo acontecia a seu tempo, e deixaria a própria natureza decidir se ela era digna de desvendar o futuro Lorde das Trevas.
O menino estava para apanhar a quarta broa quando percebeu que, sozinho, havia devorado metade do que fora servido no prato. Ele recuou o braço, hesitante. Até quando não gostaria, seus bons modos de príncipe falavam acima de sua vontade.
— Pode pegar, crianço. Eu preparo mais se preciso. Coma o quanto quiser e não se preocupe. — A druidesa usava de um tom terno que conseguia abrandar o coração arredio do jovem semideus. E ela agia de forma espontânea. Não estava propositalmente tentando amansá-lo.
Devimyuu percebia isso, e talvez esse fosse o motivo de toda a raiva e revolta que vinha sentindo com constância diminuírem na companhia dela.
Apenas com um assentir, pegou uma última broa, cujo sabor estava irrepreensível.
— O feldrin o acompanhou? — Mewcedrya irrompeu o silêncio que até então era preenchido apenas pelos sons noturnos da floresta lá fora. A fêmea sagazmente usou de uma pergunta sutil, que não deixaria o adolescente semideus incomodado caso ainda não desejasse nenhum tipo conversa.
O menino a encarou desperto de sua mente distante. A druidesa não sabia, mas sua pergunta servira para o livrar momentaneamente dos pensamentos melancólicos que persistiam em torturá-lo. Devimyuu sinalizou com a cabeça, visto que estava de boca cheia.
— Que bom. — Disse Mewcedrya calmamente, olhando para a porta ainda aberta e para o feldrin que se prostrava frente a mesma como um guardião. — A floresta à noite traz os mais diversos perigos, um filhote de deus não deve ficar zanzando por aí sozinho.
O jovem reverso terminou de engolir o pedaço de broa com um gole de chá.
— Achei que tivesse dito que as árvores-monstro não me devoraram por eu ser um semideus...
Comentou o garoto.
— Ah, você se refere aos Tererroris. Bem, está certo, eles realmente não te devorariam, mas eu não posso dizer o mesmo sobre os lowfes... Eles não diferenciam mortais comuns de semideuses, crianço. Só enxergam comida.
— Eu sei me defender.
Murmurou o adolescente rebelde, que não temia os ferozes lowfes – caninos de dois metros de altura com presas que rasgavam carne e quebravam ossos numa única mordida. Felins eram sua presa predileta, e os lowfes do Mundo Reverso eram incomparavelmente mais vorazes do que os existentes no Mundo Puro.
— Imagino que saiba. Mas mesmo assim não pude deixar de me preocupar um pouco. — A druidesa respondeu enquanto bebericava mais um gole do chá.
O príncipe das sombras ergueu um olhar surpreendido. Recentemente, não sentia que alguém além de sua madrinha se preocupasse com seu bem-estar.
— Não... foi minha intenção preocupar você... — O menino respondeu, com o copo de barro frente a boca abafando a voz, para assim disfarçar que se sentiu acanhado.
— Está tudo bem, eu sabia que o feldrin cuidaria de você. Foi ele quem me levou até você no dia em que o encontramos, e tem o seguido desde então.
Mais uma informação que surpreendera o futuro Lorde das Trevas, que virou-se em direção a porta, olhando para o elemental.
— Então foi ele que... Pera aí, você disse me seguido? — O garoto se apercebeu de algo que ocorrera algumas horas antes. — Quer dizer que era ele a árvore que eu achei ter visto se mexendo mais cedo?!
— Ah sim, é muito provável. Ele pode se camuflar em meio as árvores facilmente. Quando o viu fazer isso?
Mewcedrya mostrava a calmaria de sempre.
— Quando eu precisei ir ao "banheiro"... E vou te falar, não foi nada legal, eu não preciso de plateia pra mijar!
A druidesa riu com a reclamação do adolescente aborrecido.
— Ora, haha! Não seja acanhado, menino deus. Ele só o acompanhou para garantir sua segurança, nada demais. Mas eu entendo seu constrangimento, ele fazia a mesma coisa comigo quando cheguei aqui.
Dizendo isso, ela se levantou e recolheu as louças como fizera no almoço, as colocando na tina.
A fala da fêmea acabou despertando a curiosidade de Devimyuu. Antigamente, o garoto era bem comunicativo. Porém, o rapto o transformou no oposto do que foi um dia. Ele acabou optando por se mostrar o mais arisco o possível depois de tudo o que passou, afinal, no geral o Mundo Reverso não tinha espaço para qualquer forma de socialização simpática.
Entretanto, Mewcedrya claramente não era nenhuma ameaça e indubitavelmente não era como os demais reversos desprezíveis que Devimyuu tivera o desprazer de encontrar. Ela o resgatou, curou seus ferimentos e estava o acolhendo – embora ele não soubesse o exato motivo de suas ações, mas presumisse que era pelo fato dele ser o terceiro arquemônio. De certo era melhor distrair-se conversando um pouco com a druidesa do que ficar remoendo tudo que sofrera até então. Às vezes, muitas delas, ele não suportava certas dores do seu passado, e seria um alívio, pelo menos por um pouco, desviar sua atenção de todas elas.
— Posso te perguntar uma coisa? — Pediu o menino, se aproximando e trazendo o copo vazio que ficara em sua mão.
— Bem, você já está perguntando, mas, sim, claro. Vá em frente, filhote. — Ela respondeu.
— Como foi que você veio parar nessa floresta, afinal?
A druidesa se virou para o adolescente e esboçou um sorriso misterioso.
— Aaah... Essa é uma pergunta válida que com certeza renderá uma conversa interessante.
Dizendo isso, ela foi até a porta da cabana, pediu licença ao feldrin e a fechou, atravessando um vergão pelo lado de dentro para trancá-la. Posteriormente foi para o quarto, fazendo um gesto com a cabeça para que Devimyuu a acompanhasse. Ele seguiu a adulta, que ofereceu a cama para que ele se sentasse, ao passo que ela tomou lugar na espaçosa cadeira de balanço, onde uma meia cesta trançada de cipós aguardava para ser terminada.
— Se lembra de quando eu comentei sobre o meu dote? — A fêmea perguntou, e se ajeitando na beirada da cama dela, Devimyuu assentiu em resposta. — Bem, não demorou para um bruxo experiente de nossa cidade oferecer uma enorme quantia que agradou muito ao meu pai. Ele também era um druida poderoso, mas seu biotipo secundário era Rochoso, não Natureza. Os golens implacáveis criados e comandados por ele ajudavam a guardar a entrada da cidade, e ele adquiriu fortuna e prestígio graças a isso. Nosso casamento foi selado, e na noite seguinte, fui conhecer o noivo que na época tinha quase a mesma idade do meu próprio pai.
Devimyuu mostrou uma expressão indignada.
— Credo... Quantos anos você tinha?
— Hmm... Quantos anos você têm? — Com uma expressão pensativa, a druidesa se arriscou a perguntar, esperando ouvir algo do tipo "não é da sua conta" como resposta. Porém, para sua surpresa, o garoto arquemônio lhe respondeu normalmente.
— Catorz... Quer dizer, quinze. Fiz quinze... — Disse ele, reafirmando a suspeita de Mewcedrya quanto ao menino ser bem jovem, visto que apesar da idade, seu rosto e aparência física ainda demonstravam certos resquícios remotamente infantis.
— Ah sim. Você é praticamente uma criança. — O futuro Lorde franziu o cenho, não gostando de ser chamado de criança, porém Mewcedrya não deu atenção ao seu protesto e continuou a narrar sua história, enquanto tecia a cesta. — Eu suponho que era um tanto mais velha do que você... Dezoito ou dezenove anos talvez... Sei que depois da completa fase adulta*, décadas a mais idade não fazem diferença num relacionamento. Mas, naquela época, para mim faziam, e admito que minha reação ao descobrir com quem me casaria foi a mesma que a sua.
— E foi aí que você fugiu pro meio da floresta? — Devimyuu pressupôs, como se tentasse adivinhar. Era interessante para Mewcedrya observar sua interação curiosa.
— Eu fugi, mas não foi necessariamente por isso. Na noite em que o conheci, meus pais me deixaram sozinha com ele em nossa casa. Ele já tinha pago um sinal pelo meu dote, e achava que podia fazer comigo o que quisesse. E o que ele quis foi adiantar a noite de núpcias. Disse que me mostraria o que eu deveria fazer como sua esposa.
Naquele momento, Devimyuu engoliu seco e depois ficou boquiaberto, encarando a fêmea com um olhar misto de choque e revolta. Ele já tinha idade para entender ao que ela se referia, e se lembrou de que constantemente enquanto o torturava, Mewpester se gabava de ter violentado sua mãe inúmeras vezes, afirmando que foi assim que o concebera. Mas Devimyuu sabia que aquilo não era verdade, que aquele monstro não era seu verdadeiro pai.
E sempre que era sujeitado a ouvir tais coisas, o garoto torcia para que fossem apenas provocações daquele falso rei sórdido. Porém, Renésmew fora uma de suas concubinas, e quando enfim entendeu o que isso significava, no fundo Devimyuu sabia que, à parte da falsa paternidade, aquelas palavras traziam a verdade, por mais abominável que fosse.
Notas: Na mitologia deste universo, Felins podem viver até dois séculos e sua espécie não envelhece. Num comparativo humano, após a fase adulta o máximo de idade que aparentarão ter é entre 30 - 35 anos pelo resto de suas vidas.
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