- 05.2 -
Na porta da cabana, com o feldrin ao seu lado, Mewcedrya suspirou ao ver o rastro de destruição que Devimyuu deixara. No entanto, não o culpou. Acreditava que não lhe cabia repreender as atitudes de um semideus. E além disso, sabia que o mencionado semideus ainda era apenas um garoto, e que de certo algum trauma relacionado a mãe o tirara de si.
— Se eu soubesse que acabaria assim, eu não teria dito nada... — A druidesa disse, lamentando-se. — Consegue rastreá-lo, não é? — Perguntou para o feldrin, e a criatura lhe assentiu. — Vamos atrás dele.
Farto de apenas correr sem destino, Devimyuu escalou uma velha sequoia sombria, subindo o mais alto que suas habilidades felinas lhe permitiam. Do galho onde se sentara, podia avistar toda a grande área da Floresta Maldita. Com exceção de algumas copas de árvores verdes em meio a maioria amarronzada ou negra, a vegetação funesta se estendia por aproximadamente dez quilômetros formando um labirinto mortal.
No entanto, o futuro Lorde das Trevas não se atentou àquela sombria paisagem. Memórias tortuosas dilaceravam sua mente e seu coração. As cenas e as vozes, se repetindo ininterruptamente em sua cabeça.
"Eu vou achá-lo mais cedo ou mais tarde e trazê-lo de volta a todo custo! Isso não vai adiantar nada, Renésmew!" Mewpester vociferava, seu olhar demoníaco fitava a fêmea mortalmente ferida que segurava pelo pescoço, a ponto de estrangulá-la. A felin em sua forma fádica o encara com total impavidez. Ela soltou um sorriso de escárnio apenas para confrontá-lo, mesmo em seus momentos finais.
"Do que está rindo, sua puta?! Fez tudo isso pra proteger seu precioso filho, mas esse seu sacrifício de merda não valerá de nada no final! Eu estaria com medo se fosse você!"
Renésmew segurou com ambas as mãos no punho grotesco que ameaçava sufocá-la. Olhou mais intensamente nos olhos daquele que nunca conseguiu lhe causar o temor que desejava. Sua pose como a verdadeira rainha que era permanecera intocável.
"Você não passa de um reles bastardo indesejado, Mewpester... Um fraco, patético, usurpador de trono; é o próprio desprezo encarnado. É por isso que você não é o pai do meu filho, e nunca vai conseguir o que deseja dele. Não tenho motivos para ter medo de um fracassado covarde. De um verme medíocre e insignificante como você, eu só consigo sentir pena..."
O corpo da bruxa-fada desfalecia, porém a imponência de seu espírito nunca esteve tão intocável. Mewpester urrou em fúria; não podia tirar a verdade daquelas palavras, e tampouco faria a mãe do futuro Lorde das Trevas entregar o seu filhote. Tudo que restava àquele ser inescrupuloso era matá-la, e se revolvendo em ódio, não hesitou em fazê-lo. "Basta! Divirta-se no inferno, vadia maldita!" Esbravejou o macho frustrado.
"Vejo você lá." Foram as palavras finais da destemida fêmea perante seu assassino. Ele atacou, e em suas últimas forças, ela também. Suas asas em frangalhos brilharam, um clarão cegante se deu. Escondido através de um poderoso feitiço de ocultação conjurado pela mãe, o pequenino Devimyuu cobriu os olhos repletos de lágrimas e medo, sendo aquele o único momento em que deixou de assistir a batalha que fora um massacre para sua mãe, porém lutada bravamente por ela. Quando abriu seus pequenos olhos, viu o corpo da mãe imerso numa poça de sangue. As três lâminas de metal, lançadas por Mewpester, a atravessavam em pontos vitais. Ela estava morta, e ele, vivo. Embora também extremamente ferido, levantou-se dali com a satisfação de tirar a vida daquela fêmea com toda a brutalidade que sua ira permitiu. Entretanto, não saiu vitorioso. O objetivo do rei era Devimyuu, e naquele dia, graças ao poder de Renésmew, ele não foi capaz encontrá-lo.
Sua mãe o salvara, e seu sacrifício fez-se valer pelos anos que se seguiram. Por um período de tempo, seu desejo quanto ao filho realizou-se. Devimyuu foi protegido, afastado de todo mal e escuridão que queriam lhe incutir como destino. E, de acordo com o desejo da alma dela, ele de fato, encontrou um pai, embora não fosse o pai que o gerou, era alguém que o amou como se fosse. Até o dia em que, uma década depois, o rei infame enfim conseguiu raptá-lo de volta.
Agora, como um adolescente conturbado, o próximo Lorde das Trevas sofria com aquela lembrança como se acabasse de viver tal inferno.
A segunda mãe que o acolhera havia usado seus poderes mentais para selar as memórias tão traumáticas daquela criança tão pequena. Sim, Devimyuu se lembrava de sua mãe biológica, se lembrava que ela o amou, mas toda a parte da dor e do assassinato brutal havia sido deletada em suas lembranças manipuladas. Durante o tempo todo em que crescera com sua família adotiva, ele acreditou que ela partiu porque estava muito doente, mas que se foi tranquila e em paz por saber que seu filhote preciso havia encontrado uma família que o amaria tanto quanto ela.
Contudo, quando retornou ao Mundo Reverso, a ilusão se quebrou graças aos sacerdotes sombrios ordenados por Mewpester a desfazerem o selo. Ele queria elevar o sofrimento do garoto aos maiores níveis possíveis, de modo que a cruel lembrança do assassinato de sua mãe não foi só revivida, como intensificada. As memórias enevoadas e distantes de um filhote de quatro anos se tornaram nítidas como um filme hediondo que sua versão adolescente era obrigado a ver. Tão vívidas como se acontecessem bem diante de seus olhos naquele exato momento, e assim seria a cada vez que ele se lembrasse, como uma maldição.
Com as mãos sobre as orelhas pontudas, ele pressionava a cabeça imersa entre os joelhos, acuado no enorme e grosso galho que o comportava por inteiro com facilidade. Cercado por uma visível aura negra, seu pranto em crise lhe causava soluços de agonia, e sua alma sombria repleta de dor, sofrimento e ódio, só conseguia desejar uma única coisa: vingança. Ele mataria Mewpester das piores formas possíveis, nem que fosse a última coisa que fizesse.
Mewcedrya e o feldrin não demoraram a encontrá-lo. No sopé da sequoia centenária onde o garoto se isolara, ela olhava para o alto e podia ouvi-lo chorar com a fúria de uma fera ferida, mas que ainda daria seu último ataque. Uma atmosfera pesadamente mais sombria pairava por todo o redor; a Escuridão que acompanhava o semideus de sua era.
Sentindo reverência ao poder do menino arquemônio, Mewcedrya entendeu que devia deixá-lo sozinho. Sinalizou para o feldrin que deveriam voltar, mas o ser se recusou. A druidesa assentiu em compreensão.
— Cuide dele. — Sussurrou a fêmea para o elemental antes de partir, tocando o que seria o equivalente ao ombro da criatura.
A crise de Devimyuu aos poucos diminuía. Com as lágrimas cessando, ele enfim ergueu o rosto. Ao levantar a cabeça, percebeu que o talismã mágico se conjurara por conta própria, reaparecendo em seu pescoço. Tal fenômeno costumava acontecer sempre nos momentos em que o garoto estava prestes a se afundar num poço inacabável de angústia e desespero.
Segurando-o na palma de uma das mãos, o jovem olhou a gema triangular que acendia como se guardasse uma chama esmeralda dentro de si. Devimyuu continuou a fitar o amuleto de forma estagnada, como se sua alma pudesse adentrar naquela joia. Olhar aquele brilho verde estranhamente o acalmava.
— ...Pai... — Sussurrou o menino após um longo suspiro, ao encarar a herança do pai biológico que não conhecera, mas que nunca lhe fizera tanta falta quanto recentemente, agora que acreditava ter sido abandonado por aquele quem fora seu segundo pai.
Se recompondo, o felin adolescente finalmente se atentou a vista ao redor. O surto o deixara desorientado; ele não sabia se havia se passado três minutos ou três horas desde que subira ali. Todavia, um bom espaço de tempo se passara, visto que apático sol cinzento do Mundo Reverso estava prestes a se por.
Com saltos de galho em galho e ajuda de suas garras felinas prendendo-se ao tronco colossal como ganchos, Devimyuu rapidamente desceu da árvore sem muita dificuldade. As saltar no solo, deu de cara com o feldrin, que o aguardava pacientemente aos pés da grande sequoia negra.
— Você? Há quanto tempo está aqui, ô coisa? — O elemental apenas continuou a encarar o garoto semideus com as duas gemas verdes que correspondiam aos seus olhos. Obviamente não houve resposta.
— Esquece... — Murmurou o adolescente, revirando os olhos. — Por acaso sabe o caminho de volta?
O feldrin virou-se e prosseguiu com as passadas rangentes de seus pés circulares. Devimyuu concluiu que deveria segui-lo.
A floresta já se encontrava imersa num breu quase completo quando ambos retornaram a cabana. Mewcedrya deixara a porta aberta. A iluminação trepidante dos lampiões usados pela druidesa no interior da casa podia ser vista a certa distância. O ser de troncos parou frente a entrada, Devimyuu olhou para ele e avançou hesitante, incerto sobre se ela o receberia novamente.
— Ah, que bom que voltou, filhote de deus. Entre, estou fazendo um chá.
Disse Mewcedrya ao vê-lo parado na porta.
A fêmea lhe tratou como se nada houvesse ocorrido. Mesmo um pouco constrangido, o jovem semideus entrou. Seria ainda mais desconfortável permanecer do lado de fora.
— Está servido? É chá de broto de kabóbra, com algumas outras especiarias. É muito relaxante, e eu tenho broas de castanha para acompanhar, que fiz hoje cedo.
Mudo feito uma rocha, o jovem Lorde das Trevas acenou positivamente com a cabeça e sentou-se amuado no banco de madeira, num canto próximo a quina da mesa. Mewcedrya lhe serviu o chá e colocou o prato com as broas na frente dele. Em seguida sentou-se ao lado da mesa com sua própria porção.
O príncipe reverso apenas agradeceu num murmúrio quase sem voz. A fêmea o olhou e lhe assentiu, enquanto soprava o copo de barro com seu chá. Ela aparentava estar serena como o habitual. Devimyuu prosseguiu calado; se ela não se preocupava em tocar no assunto, não seria ele a fazê-lo. Na realidade, ele estava grato por todo aquele silêncio.
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