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— A DRUIDESA DA FLORESTA 

O príncipe das Trevas olhava de forma arisca para a reversa que nadava em sua direção. Ele se afastou da beirada e ficou a encarando tenso, como se esperasse ser atacado. Porém, a fêmea se aproximava calmamente, e conforme saiu da água, a cisma de Devimyuu ganhou um acréscimo de embaraço.

Ela estava seminua, com apenas os cabelos encaracolados lhe cobrindo os seios e uma tanga de folhas protegendo a parte debaixo. Qualquer outro macho talvez se aproveitasse daquela visão, porém, o jovem reverso tinha muito com o que se preocupar para dar atenção a sua libido adolescente recentemente desenvolvida. Ele desviou o olhar abruptamente, tentando entender o que se passava e quem seria aquela fêmea adulta liberal, sem ter que olhar pra ela.

— Parece estar melhor, sinal que meus rituais funcionaram. — Ela disse ao deixar a piscina, se virando de costas e torcendo suas madeixas encharcadas. Ao que parece, ela estava ali tomando um banho, e não aparentava estar nem um pouco incomodada em terminá-lo na frente de um adolescente desconhecido apenas de calção.

— Q-quem é você? — Devimyuu perguntou titubeando, tanto por desconfiança como por constrangimento.

— Me chamo Mewcedrya.
Respondeu a fêmea que sentara numa rocha a fim de pentear os cabelos com os dedos, ainda sem dar nenhuma importância a presença do garoto ali. — E você, menino, o que você é?

O jovem Lorde intrigou-se com tal pergunta. Automaticamente, ele acabou se virando na direção dela ao ser pego por aquele questionamento, e teve que desviar o olhar novamente.
— Como assim "o que eu sou"? Que tipo de pergunta é essa?! — O garoto questionou de volta, com certa rispidez.

— A floresta se saciou ontem, mas você não fez parte do banquete. Fiquei intrigada por quê te pouparam, mas então vi o tridente em sua cauda e os espinhos no seu rosto. Você não é um mero mortal como o resto, por isso não podia lhes servir de alimento.

As palavras daquela reversa não faziam o menor sentido aos ouvidos do jovem bruxo. Até que ele se atentou a primeira frase dita por ela: a floresta havia se saciado. Imediatamente, as imagens da última noite em que esteve consciente lhe vieram com mais intensidade. A carnificina da natureza, os gritos dos soldados dizimados sendo devorados por monstros em forma de árvore, e um banho de sangue irrigando a mata umbria – nada daquilo fora sua mente lhe pregando peças. O pesadelo aconteceu, o massacre foi real, e de alguma forma, o novo Lorde das Trevas tinha sobrevivido a ele.

— Você é um daqueles, não é? — A fêmea lhe perguntou, se aproximando de Devimyuu, que tão perdido em seus pensamentos nem a notou chegar. Ele recuou de supetão quando se deparou com ela tão perto. Seu comportamento o deixava incomodado.

— Um daqueles o quê? Eu não sei do quê você tá falando. Só quero saber que lugar é esse e como foi que cheguei aqui. — Respondeu ele secamente, com a cabeça virada para o lado oposto.

Mewcedrya se afastou, e percebendo o constrangimento do jovem felin, achou prudente enfim vestir-se. Ela foi até uma estalagmite de cristal vermelho onde pendurara seu manto customizado da própria natureza e o apanhou para se cobrir.

— Você não tem que fingir nada para mim. Sei que é um herdeiro dos deuses. — Ela afirmou com seriedade, ao passo amarrava um cinto de ramos trançados na cintura e calçava as sandálias.

Devimyuu levantou uma sobrancelha, surpreendido. Não havia muito tempo que ele mesmo descobrira sua verdadeira natureza como o semideus daquela era. Ele se perguntava como aquela fêmea desconhecida poderia saber de tal fato a seu respeito.

Antes que o adolescente de pelos azuis respondesse algo, seu estômago vazio há dias falou por si. Sem a dor para disputar atenção, o corpo do garoto podia se concentrar apenas na imensurável fome que o consumia. Estava tão faminto que suas mãos chegavam a tremular.

Mewcedrya ouviu a barriga do garoto roncar e se virou para ele.
— Suspeito que esteja faminto. Posso responder suas perguntas enquanto comemos em minha cabana. Eu deixei algo no fogo. Venha. — Disse ela, apanhando uma pequena bolsa feita de pele animal que pendurou a tiracolo, e lhe dando as costas, seguiu na direção de uma passagem que o jovem reverso nem percebeu que havia ali.

— O quê? Ei, espere! — O garoto não queria segui-la, mas foi. Precisava saber quem era aquela mulher que provavelmente o tinha salvado, e quais foram suas intenções em fazê-lo. Além do mais, ela lhe oferecera comer algo, e mesmo com toda desconfiança, o futuro Lorde não podia se dar ao luxo de recusar tal oferta.

A passagem logo se tornou um túnel relativamente estreito, iluminado pelos picos de cristais mágicos encrustados nas paredes. Devimyuu correu para alcançá-la, ela trançava os cabelos enquanto caminhava, e parecia conhecer muito bem aquele caminho, já que seguia andando sem nem dar-se ao trabalho de olhar para frente.

O adolescente semideus a acompanhava mais atrás, mantendo-se arredio. Com o cenho constantemente franzido, ele exalava seriedade em demasia para alguém tão jovem. Tinha muitas perguntas para fazer à fêmea, mas não sabia por onde começar. Ele a seguia calado, com os braços cruzados, os contraindo junto ao peito.

— Está com frio, filhote de deus? — Perguntou Mewcedrya virando-se para trás, ao notar a postura com a qual o menino caminhava.

— Não, só não tô acostumado a ficar desfilando sem roupas… — "Ao contrário de você, pelo visto." Ele pensou. — Por acaso sabe o que houve com as minhas?

— Eu as tirei, e lancei numa fogueira. Respondeu a fêmea com banalidade, voltando a olhar para frente.

Devimyuu claramente aborreceu-se.
— Ótimo! — Exclamou com sarcasmo. — Eu vou ser obrigado a ficar pelado, agora?!

Ele questionou com irritação.
— Nossos corpos são forrados com pelagem, logo, você não está de fato pelado. E para todos os efeitos, você ainda tem sua roupa debaixo, não tem? Essa foi a única parte de seu corpo onde não procurei por ferimentos.

A felin adulta respondeu-lhe com naturalidade, à medida que conforme andava, passava delicadamente as mãos sobre os cristais nas paredes, como se absorvesse um pouco da energia de cada um dos que tocava.

Um rubor surgiu nas bochechas com espinhos do garoto Lorde. Ele compreendeu os motivos de Mewcedrya, mas, mesmo assim, saber que foi despido por uma desconhecida enquanto estava inconsciente lhe trazia uma sensação extremamente desconfortante. Entretanto, essa era apenas mais uma na sucessão de humilhações e constrangimentos que vinha passando no último ano que viveu sob o julgo de Mewpester.

— Acho que entendeu o que eu quis dizer. Caso não tenha notado, eu não tenho outra coisa pra vestir!

Reclamou o jovem semideus.

— Seus antigos trajes nada mais eram que trapos empapados de terra, suor, e o seu sangue de brilho negro. Me pergunto o que te levou àquele estado… — Ela instigou, pensativa.
— Bem, eu providenciarei algo decente que possa vestir quando chegarmos à minha cabana.

— Falta muito? — Perguntou o adolescente, ignorando o restante do dito pela reversa.

— Falta o necessário. — Ela respondeu, parando para analisar um dos cristais avermelhados num nicho natural da parede. Ela o arrancou com destreza e colocou na bolsa. Era a quarta vez que fazia algo do tipo.

Devimyuu, que tinha revirado os olhos com a resposta dela, não conseguiu conter a curiosidade ao observar seu comportamento. E talvez iniciar com uma pergunta simples fosse a chave para questionar quais eram as intenções daquela fêmea para com ele. O príncipe das Sombras vinha sofrendo sozinho por tanto tempo nas mãos de outros que era difícil acreditar que alguém teria verdadeira intenção de ajudá-lo. Ainda mais tratando-se dos habitantes do Mundo Reverso, sua própria raça.

— Qual é a utilidade desses cristais? — Ele perguntou, não procurando mostrar muito interesse.

— São anédricos da lua, crianço. Há uma pequena quantidade de magia em cada um. Toda essa caverna está repleta deles, que se desenvolvem através da etérima da luz lunar, que entra pela abertura entre as rochas acima da piscina da gruta. São versáteis para uso em rituais e outros feitiços. Ninguém que já sondou a floresta além de mim, e agora você, conhece esse lugar.

A explicação da reversa sanou duas das dúvidas do jovem Lorde. Em primeiro lugar, ele ainda permanecia nas entranhas da Floresta Maldita, e em segundo, a misteriosa adulta apresentava um bom conhecimento de magia e seus derivados – ela definitivamente também devia ser uma feiticeira.

— Você sabe o que é etérima, menino?

Mewcedrya perguntou, se virando para ele, logo mais atrás. Ela tinha um olhar contido, sereno e com certa gentileza. Fazia muito tempo que Devimyuu não encontrava um reverso com um olhar assim. A única exceção era sua madrinha, qual ele teve que deixar no repugnante castelo de Mewpester devido sua fuga, mas que jurou um dia resgatar.

— É claro que sei. É a força que compõe a magia. Os minerais dessa caverna já deviam ter uma grande quantidade de etérima no solo, o reflexo da luz da lua na água trouxe um acréscimo de etérima que foi se acumulando aqui durante milênios, até que todo esse poder entrou em combustão no ar e no solo, criando os cristais que foram se estendendo ao longo da caverna com o passar dos séculos.

O garoto semideus, que até então limitava-se a falar com a fêmea, de repente se viu discursando uma pequena aula teórica sobre magia natural. Não que ele quisesse fazer isso, mas sua boca falou antes que a mente o reprimisse. Ele só percebeu o que acabara de fazer quando deparou-se com Mewcedrya a encará-lo de forma estagnada.

— Filhote de deus! Eu não tinha sabedoria dessas coisas! Tudo o que sei é que são anédricos mágicos que cresceram aqui por causa da luz da lua. Foram seus ancestrais divinos que te dotaram de nascença com este conhecimento? — Ela perguntou, com seus olhos verdes a fitá-lo admirada.

Não, não foi a ascendência divina de Devimyuu que naturalmente o dotou de sua inteligência. O garoto estava plenamente ciente disso. Seus conhecimentos vinham de méritos próprios. Ele se lembrou dos tempos que estudava em Majodrya, uma academia destinada a jovens filhotes superdotados em magia. O jovem Lorde era um de seus alunos mais promissores. Um verdadeiro talento, um prodígio. Seus professores e colegas estavam diante do que poderia ser o novo mais poderoso magista daquela era. Seu futuro era brilhante, suas opções eram inúmeras.

Mas agora tudo isso ficara para trás, perdido em tempos esquecidos onde ele acreditava ter uma família que o amava, acreditava ter um lar, e também acreditava que haveria um jeito de escapar de seu destino como um ser demoníaco regente das Sombras e do próprio mal.

Devimyuu estava disposto a guiar-se apenas pelo ódio, contudo seu passado ainda o afetava. Tomado por uma torturante nostalgia, ele desviou um olhar cabisbaixo. Olhar esse que tentava carregar de raiva para suprimir sua tristeza.

— Você diz isso por que viu a aura negra que meu sangue emite? — O menino indagou após uns instantes em silêncio, cauteloso em afirmar ou negar àquela desconhecida o fato de ser um semideus. Ele era um fugitivo procurado pelo rei com características muito específicas. Todo cuidado fazia-se necessário.

— Não só por isso. Os espinhos no seu rosto e a sua cauda me fizeram lembrar de uma imagem entalhada que vi certa vez no templo do soberano Ghanog, há muito tempo, quando eu era menina. As figuras se pareciam com você. Se me lembro bem, uma descrição os chamava de Estrelas da Manhã – felins nascidos com o sangue de nosso deus, enviados por ele dentre os mortais simplórios a cada um milênio e meio. Você é o que nasceu nesta era, não é, filhote? O próximo semideus que regerá o poder absoluto das Sombras sagradas.

Devimyuu ergueu os olhos e encarou estático o rosto da fêmea. Ela aparentava ser uma bruxa eremita que de forma audaciosa de isolou naquela floresta por alguma razão. Até suas vestimentas eram compostas de folhagens, penas, e alguns outros compostos que Devimyuu não conseguia identificar. Sua absência do mundo externo à floresta era visível, no entanto, o conhecimento do que era realmente necessário não parecia lhe faltar. Tudo parecia muito claro para ela – o semideus bruxo supôs que talvez seu contato direto com aquela natureza amaldiçoada, porém mágica, a tornava mais perceptiva do que transparecia.

— Não entendo as razões de querer esconder, mas seu silêncio remete que estou certa. Por isso o feldrin me levou até você. A floresta o poupou por ser uma divindade, e se ela fez isso, cabia a mim seguir sua vontade. Por isso o resgatei e cuidei de você. O trouxe a essa caverna porque o fluxo de magia aqui é mais forte, e os rituais de cura fariam efeito mais rapidamente.
Explicou a reversa, em resposta ao silêncio de Devimyuu.

Mais dúvidas a sondar a mente do jovem semideus foram esclarecidas sem que ele precisasse questionar. Os monstro-árvore não o devoraram graças ao sangue divino que corria em suas veias, e Mewcedrya o salvara pelo mesmo motivo. Contudo, uma pequena questão ainda pairava sobre ele.

— O que é um feldrin? — Perguntou o garoto, que jamais ouvira falar de tal ser. Conhecia bem as criaturas mágicas apenas do Mundo Puro, onde estudara sobre elas.

— É um elemental da natureza, seus corpos são feitos de troncos, galhos e folhas. São os filhos da floresta viva, mas apenas dessa, porque são seres mágicos. Não são todos que conseguem reconhecê-los. — A fêmea então pausou sua fala assim como seu caminhar. — Veja, nós chegamos.

Devimyuu queria perguntar mais sobre os tais seres chamados feldrins, porém se viu obrigado a interromper-se quando parou junto a felin adulta, que olhava adiante para uma abertura de onde uma fraca iluminação procedia.

Ela se dirigiu em direção a abertura, no fim do túnel. Nesse ponto, não brotavam mais cristais nas paredes ou em estalagmites no solo. A luz lá fora era iluminação do dia, que se mostrava fraca por se encontrarem numa parte mais densa da floresta, onde os opacos raios do sol cinzento do Mundo Reverso mal conseguiam penetrar através das copas robustas das árvores centenárias que cercavam o lugar.

Devimyuu a seguiu. Ao sair também, ele apertou seus olhos dourados que tinham se adaptado ao ambiente mais escuro no interior da caverna. Suas íris felinas precisavam se acostumar a luz do lado de fora, por mais que esta fosse fraca.

Após rapidamente se ajustar ao ambiente, Devimyuu notou diante dele os fundos de uma humilde cabana, construída com troncos de árvores, algumas rochas e o telhado também de madeira forrado com folhagens secas.
A saída do túnel que levava a gruta acabava frente ao que seria o quintal da humilde residência de Mewcedrya. Do lado esquerdo, Devimyuu podia ver um pequeno pomar de frutos, próximo a uma horta de kabóbras e cogumelos de diversos tipos. Do direito, um plantio mais deixado crescer ao natural remetia a plantas de uso mágico, e bem no fundo do quintal, uma enorme pedra redonda servia de tábua de secagem para algumas peles de animais de pequeno porte estiradas sobre a mesma.

— Já estou me preparando para o inverno. — Comentou Mewcedrya, ao reparar que Devimyuu olhava para as peles.

— Você é uma bruxa, não é? — Perguntou o adolescente também mágico, dessa vez reparando novamente para mini plantação de ingredientes usados em feitiços e poções, e tentando mentalmente ver quantos deles reconhecia e identificava.

— Bem, de certa forma sim. Nasci uma mestiça de um biotipo mágico com uma biotipo natureza, o que faz de mim uma druidesa.

Devimyuu se mostrou surpreso. Era de seu conhecimento que apenas felins de biotipagem dupla de Mágicos e Naturistas ou Mágicos e Rochosos eram reconhecidos como verdadeiros druidas. Os druidas poderiam ser uma classe de feiticeiros muito poderosa se exercessem plenamente todas as suas habilidades.

A fêmea reparou do olhar de espanto do garoto.
— Imagino que ainda deva ter perguntas para mim, não é, menino deus? Talvez agora mais ainda. Eu também tenho algumas que gostaria de perguntar a você, mas, vamos entrar e nos alimentar primeiro. Uma refeição de certo é o que mais necessitamos nesse momento. Venha, entre.

No Próximo:
Devimyuu descobre que a misteriosa e bela fêmea que o resgatou é uma bruxa druidesa. Ela lhe oferece uma refeição em sua casa e parece disposta a ajudá-lo. No entanto, por saber sua real identidade como um semideus Arquemônio, o príncipe sombrio ainda reluta em confiar nela.
Será possível uma aliança?

Descubram no próximo capítulo!
Obrigada pela leitura!

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