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— A NOITE DA CAÇA —
Embora acreditasse que percorreu uma boa distância, na realidade Devimyuu tinha apenas andado em círculos, perdido, como se a floresta lhe pregasse uma peça e quisesse mantê-lo ali. Agora ele estava de volta aos arredores de onde o tombo do desfiladeiro o deixara, e próximo da armada real que prosseguia em sua caçada.
O jovem reverso percebeu que a área estava cercada; os guardas se espalhavam por toda a parte. Ele praguejou interiormente e tentou fugir – tinha que dar um jeito de escapar dali ou logo o encontrariam.
Dando meia volta, ele tentou seguir pelo caminho que supôs ser por onde viera, talvez assim pudesse despistar os soldados pelo menos por um pouco. Mas já era tarde demais.
Devimyuu mal trocou um passo dificultoso quando sentiu um ferro quente perfurá-lo na altura do ombro, pelas costas. Com um grunhido de dor, o adolescente foi ao chão. Sentiu a lança afiada que o atingira penetrando em sua cartilagem e o calor com que foi abrasada arder em seu interior, quebrando as moléculas de magia em seu sangue. A sensação era agonizante; não havia dúvida que aquela lança fora preparada especialmente para retê-lo, e nas mãos dos soldados de Mewpester havia muito mais delas.
Deitado de bruços, o futuro Lorde tentava mover-se para arrancar a maldita lança de seu ombro, mas não tinha força nenhuma para isso. Tudo que conseguia no intuito de não desistir era fazer suas garras riscarem a terra úmida do solo da floresta, enquanto ele tensionava os músculos e se contorcia de dor.
— Te peguei, pivete! Eu sabia que tinha visto algo suspeito se mexer por aqui! Acertei em cheio!
Se vangloriou um dos guardas que acabara de surgir da mata.
Ele se aproximou do jovem caído e num puxão sem misericórdia arrancou a lança do ombro de Devimyuu. O adolescente gritou um miado de dor excruciante. A lança ainda quente saiu de seu corpo banhada em seu sangue de semideus. Imediatamente, o soldado brutal agachou-se sobre costas do garoto e torceu os braços dele para trás, o imobilizando com apenas uma das mãos. Ele era um brutamonte de biotipo Gladiador que devia ter o dobro da altura de Devimyuu e o triplo de seu peso só em músculos.
— Essa até que foi bem fácil! Vou deixar esses imbecis te procurando e eu sozinho te levarei para o rei Mewpester. Talvez ele me dê uma boa recompensa por entregar a sua carcaça, moleque! Tudo que eu preciso fazer é te matar e usar o tempo que você leva pra reviver pra te prender, não é? Então vamos lá...
O guarda retirou um punhal afiado que estava preso em seu cinto e mirou a jugular de Devimyuu. O futuro Lorde das Trevas conseguiu virar um pouco a cabeça e viu a luz vermelha da lua se refletir na lâmina erguida, pronta para descer num corte certo sobre sua garganta. Ele estava caído, vulnerável e derrotado; mas mesmo assim não sentiu medo. Fixou seus olhos carregados de ódio naquela lâmina, e sem sequer piscar, friamente esperou que mais uma vez a morte viesse encontrá-lo. E ela, de fato veio, mas não a sua.
Tudo sucedeu muito rápido. Num instante, o soldado metido a caçador empunhava um punhal pronto a cortar o pescoço do semideus adolescente, e no segundo seguinte, a arma soltou-se de sua mão e foi ao chão, enquanto seu último suspiro deu-se como um soluço onde ele engasgava com o próprio sangue que jorrou da boca, e seu peito se encontrava traspassado por um grosso galho pontiagudo que perfurava seu coração em cheio.
O guarda já morto foi ao chão, tombando para o lado como uma velha árvore podre que caía sem fazer falta. Sem entender o que ou como aconteceu, Devimyuu olhou intrigado para o soldado ensanguentado com um buraco que atravessava o tórax. Ele não foi o responsável por aquilo.
De repente, o som de passadas e galhos sendo quebrados indicou que mais guardas surgiam. O grito que Devimyuu deu quando a lança foi arrancada de seu ombro os atraiu. Um bando de quase uma dúzia deles adentrou naquela parte da floresta. Eles tinham lanternas e os biotipo fogo a os liderarem, iluminando o caminho.
— O encontramos! Chamem o capi-...
Um dos guardas ia anunciar, mas não pôde terminar sua frase. Outro galho assassino veio do nada e atravessou sua nuca e pescoço. Ele caiu, morto.
E foi aí que a devastação começou.
Galhos, cipós e rameiras começaram a surgir do meio das árvores e atacar brutalmente os soldados. Pareciam serpentes de dez metros feitas de vegetação dando o bote em suas presas. O som era de madeira estralando e folhagens chacoalhando, abafado pelos gritos dos guardas sendo enlaçados pelas rameiras, sufocados pelos cipós e perfurados pelos galhos pontiagudos. E o som de seu massacre atraiu mais do pelotão para aquela direção; mais vítimas para que a floresta maldita se alimentasse de morte e se irrigasse com sangue.
Nenhum dos guardas tentou capturar Devimyuu. Naquele momento, estavam ocupados demais lutando por suas vidas para se preocuparem em pegá-lo. Ainda no chão, o Lorde adolescente se perguntava o que estava acontecendo.
Com muito esforço, ele conseguiu erguer a cabeça um pouco e olhar para trás.
Em meio àquele pandemônio de caos e desespero, o som da madeira estralando se intensificou. Uma revoada de corvos levantou voo, como se consigo levassem os demais animais da floresta. Mais nada podia ser ouvido além daquela assombrosa sinfonia de inúmeros galhos se partindo e madeira se torcendo. Então o solo tremeu; algo corria abaixo dele, Devimyuu podia sentir. Era como se as raízes se movessem, rastejando por debaixo da terra. E daí ele viu.
Com um estrondo, a floresta que parecia tão morta ganhou vida.
Emitindo o rugido de uma fera bestial, bocarras gigantes abriram-se bem no centro dos troncos centenários daquelas árvores secas munidas apenas de galhos grossos e pontudos, ao passo que as mesmas triplicavam de tamanho de forma instantânea. Suas raízes colossais erguiam-se da terra como mortos revoltosos emergindo vorazes dos túmulos. Devimyuu arregalou os olhos, paralisado, não acreditando no que via. Elas jamais foram apenas árvores – eram monstros. Monstros de vegetação e madeira, mas com desejo de carne e sangue.
Os pedaços do tronco que partiram-se para surgirem as bocas formavam carreiras de dentes pontiagudos feitos de filetes de pau. O fundo das bocarras era verde fosforescente, de onde subiram raízes como grandes tentáculos descontrolados e letais, que começaram a puxar para dentro do monstro-árvore os corpos caídos dos guardas já mortos. Já aqueles que estavam amarrados pelas rameiras e sufocados pelos cipós tiveram um destino mais cruel, pois foram engolidos vivos, enquanto dissolviam ainda respirando na seiva ácida contida no interior daquelas criaturas, sofrendo uma morte lenta e dolorosa.
A princípio, o jovem Lorde das Trevas ficou em choque diante do pesadelo que seus olhos testemunhavam. E aquela área da floresta pelo visto não era a única a despertar. Ao longe, mais gritos de outros massacres sofridos pelos demais guardas espalhados podiam ser ouvidos. Todos os instintos de Devimyuu gritavam para que ele fugisse. Ele não ia ficar para ser o próximo devorado por uma árvore monstruosa genocida. No entanto, os dois membros feridos gravemente e a perda considerável de sangue não permitiram que ele se levantasse, porém, mesmo a beira de perder os sentidos, o garoto resolveu ir se arrastando pelo solo. Era um plano arriscado, na realidade era muito idiota, mas era o que ele tinha para tentar sobreviver. Qualquer coisa para fugir daquele apocalipse florestal. Contudo, o adolescente semideus mal moveu-se alguns centímetros quando sentiu algo enroscar em seu pé. Um dos cipós o agarrou pelo tornozelo e começou a puxá-lo.
Devimyuu sentiu o sabor do verdadeiro desespero. Um pavor que jamais lhe ocorrera nem mesmo nos piores momentos de seu aprisionamento. Ele queria correr, queria chorar. Qualquer coisa que lhe permitisse fugir para que não virasse a próxima refeição daquela árvore-monstro demoníaca.
Se debatendo aos gritos, o herdeiro das Trevas tentou grudar as garras felinas de suas mãos no solo a fim de se segurar, porém, debilitado e fraco como estava, não passou de uma tentativa em vão. Tampouco houve tempo para tentar conjurar um feitiço que o livrasse. O cipó o ergueu no alto, dependurado de ponta-cabeça enquanto as árvores-monstro terminavam seu banquete, e então o arremessou para longe. Tudo que futuro Lorde pôde sentir foi seu corpo cair e atingir o chão, e no instante seguinte, tudo apagou.
O dia amanheceu na floresta amaldiçoada. Tudo voltara a se aquietar, e as árvores-monstro saciadas, tornaram a adormecer. Seus galhos já não eram mais secos, os primeiros ramos de folhagem começavam a brotar em suas pontas, com brotos de folhas negras de caules carmim.
Passos sutis calçando sandálias simples pisavam calmamente sobre o solo, logo atrás de uma criatura que o percorria com certa pressa, deixando marcas circulares que afundavam no húmus antes de desaparecer.
— Tenha calma, estou indo. Não me lembro da última vez que vi um de vocês tão agitado.
Dizia uma felin adulta já madura, mas ainda muito bela e em boa forma. Seus pelos eram cor de mel, os olhos verde escuros e os longos cabelos verde-oliva mesclados com mechas naturais castanho claras, presos em uma trança, em meio aos seus chifres curvos que pareciam feitos de mogno. Ela carregava um cajado de madeira com brotos de sabugueiro na ponta, e suas roupas pareciam feitas de folhas resistentes customizadas num manto.
O ser que ela seguia – uma criatura baixa e robusta, cujo corpo era constituído de troncos forrado por musgo e folhagem, com uma galhada de madeira presa à sua cabeça redonda – enfim chegou ao lugar para onde conduzia a fêmea. Ele apontou com o braço galhudo para um espaço mais a frente, uma pequena área aberta entre as árvores.
— Pois muito bem, o que é que você queria me most... — A fêmea interrompeu sua frase enquanto afastava os arbustos para passar, ao ver o corpo de um felin caído de bruços no meio da pequena clareira. Suas roupas esfarrapadas estavam manchadas de sangue aqui e ali, e o longo cabelo preto jogado cobria totalmente seu rosto. Mesmo assim, ela percebeu que se tratava de um felin muito jovem, pouco mais crescido que um mero filhote.
— Ora, ora... Mas o que temos aqui?
Ela se aproximou e abaixou-se ao lado do corpo imóvel. Com a ponta do cajado afastou uma madeixa do cabelo dele para poder ver melhor seu rosto, e colocou o dedo indicador embaixo de seu focinho.
— Ainda está respirando, sinal que está vivo apesar de muito fraco... A floresta teve um grande banquete ontem, será que estava muito cheia para esse aqui? Acho que ele já é grande demais para servir de alimento aos Terevantes...
Terevantes eram yokais reversos com a forma de tocos de árvores, naturais da Floresta Maldita. Embora ninguém jamais tenha os presenciado fazerem, era sabido que se movimentavam, sempre mudando de lugar, à procura de suas vítimas - aqueles que se perdiam na floresta. Os seguiam, se necessário por dias; esperando até o momento em que o perdido cansado enfim sentava-se neles, sem saber o que lhe aguardava. Era aí que a magia amaldiçoada dos Terevantes se manifestava. Raízes finas e quase imperceptíveis brotavam imediatamente do tronco, e enlaçavam a vítima começando pelos pés. Assim que eram envoltos pelos ramos, a ilusão começava.
As vítimas acreditavam que apenas haviam se sentado para descansar brevemente e depois ido embora, encontrando o caminho de volta e seguido para casa. Conforme os prendiam nessa ilusão, os ramos cresciam tomando o corpo delas e sugando sua força vital, e ao os cobrissem por completo, devoravam suas almas, e tudo que restava era um corpo desfigurado enrolado em raízes secas dos pés a cabeça.
Quando já tinha absorvido vidas o suficiente, o tronco Terevante se enterrava no subsolo, onde depois de 7 luas, brotava como um enorme Tererror, as terríveis árvores-monstro devoradoras de homens.
Aquela fêmea misteriosa que olhava para Devimyuu inconsciente, supôs que os Terevantes não o devoraram por se tratar de um adolescente. Esses monstros tinham preferência por sugar a força vital de crianças, pois exigia menos de sua magia amaldiçoada para enganá-las, e suas almas jovens emanavam uma energia mais intensa.
A felin sabia disso por experiência própria. Já havia encontrado alguns corpos infantis ressequidos e enrolados em ramos negros aqui e ali durante seus anos na floresta, e os enterrara. Ela sabia que muitos pais reversos abandonavam os filhotes que já não queriam na orla da floresta na esperança de que nunca mais retornassem.
No Próximo:
Após fazer dos perseguidores de Devimyuu um grande banquete sangrento, a Floresta Maldita deixou que o menino escapasse com vida. No entanto, o príncipe chegou ao seu limite; inconsciente e gravemente ferido, seu destino parece estar nas mãos da bela fêmea misteriosa que foi levada até ele. Será ela uma aliada, ou apenas outra inimiga?
A resposta virá a seguir, na parte final do capítulo!
Obrigada por ter lido!
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