- 02.2 -
A fêmea continuou a observar o garoto abatido sem muito interesse. Contudo, ao reparar na ponta da cauda do menino, arregalou os olhos, incrédula.
- O quê?! A ponta da cauda como um tridente... e quatro espinhos no rosto... Já vi uma retratação disso em algum lugar... - De imediato, veio a sua mente uma lembrança muito distante de uma imagem que vira esculpida no templo de Ghanog, há muito tempo atrás, quando ela era uma criança.
- Nã-não pode ser! Ele é um...! -Agitada, a felin virou-se para a criatura da floresta parada ao seu lado e olhou nos dois cristais luminosos verdes que correspondiam a seus olhos.
- Entendi porque me trouxe aqui! Consegue carregá-lo até a minha cabana? Pegue-o com cuidado!
A obedecendo, a criatura apanhou o garoto desacordado e o jogou sobre seu dorso encurvado de madeira, o segurando com um braço. A fêmea e o ser seguiram caminho se embrenhando na parte mais densa da floresta, onde a mata fechada logo os fez sumir de vista.
Três dias se passaram. O som de uma goteira ecoando ao longe foi aos poucos entrando na mente de Devimyuu conforme ele despertava. Ainda de olhos fechados, recobrando a consciência, ele não tinha certeza se aquele gotejar ininterrupto era real ou apenas uma criação de sua cabeça.
Aos poucos, ele abriu os olhos. A primeira coisa que viu foi um teto, mas não de uma casa, e sim de uma espécie de caverna, constituída de cristais em sua maioria avermelhados. Uma fissura por entre as paredes deixava um fino raio da luz do dia entrar, refletindo nos cristais e os tornando mais brilhantes.
Voltando a si, o jovem Lorde olhou em volta, se perguntando onde estava. Tudo, desde as rochas, até as paredes, o teto e as estalactites estavam repletas de cristal vermelho, alguns encrustados e outros brotando feito estacas pontiagudas.
Lentamente, Devimyuu se ergueu, levantando metade do corpo com cuidado e permanecendo sentado onde estava. Ele sentiu um forte fluxo mágico acumulado naquele ambiente. O semideus bruxo respirou fundo, havia etérima - o elemento que compunha a força da magia - por toda a parte; ele podia até senti-lo no ar. A caverna era uma fonte natural de magia. Respirar aquele ar encantado lhe fez muito bem, ele sentiu-se revigorado de dentro para fora. Seus poderes mágicos estavam quase recuperados por completo.
Só após admirar a caverna mágica mais um pouco, o garoto arquemônio resolveu olhar para si mesmo. Foi então que percebeu estar deitado numa forração de folhas e capim. Algumas partes dos braços e o joelho que tinha machucado estavam enrolados com rameiras servindo de ataduras. Ele passou a mão na altura do ombro e sentiu algo viscoso - havia um emplasto de ervas sobre a área onde a lança lhe feriu. O composto tinha um cheiro até agradável, levemente adocicado com uma essência um pouco cítrica.
Olhando com mais atenção, Devimyuu percebeu que a cobertura de folhas onde foi deitado estava sobre um círculo de encantamento, com runas escritas com precisão em sua borda. Ele reconhecia aqueles símbolos, eram runas de cura; aquilo era magia. E próximo a sua cabeça, também havia uma gema de salamandra, provavelmente para mantê-lo aquecido.
Intrigado, o adolescente sombrio olhava para as próprias mãos e o resto do corpo ainda sentado. Seus ferimentos graves não passavam de arranhões, e ele já não sentia dor alguma. Até o problema da costela quebrada fora resolvido, afinal, não lhe doía mais respirar. O ritual de magia e os curativos aplicados foram realmente eficazes. A única coisa a incomodá-lo era o fato de continuar faminto; mas, devido as circunstâncias, ele estava mais preocupado em se perguntar quem teria feito aquilo por ele. E ele torcia para que não tivesse sido algum tipo de pervertido com segundas intenções, já que acordou vestindo nada além de sua roupa de baixo.
Devimyuu se lembrava claramente de como a falecida rainha e esposa de Mewpester costumava tentar assediá-lo com frequência, quando aquele rei desprezível o fez serviçal dela. Até que, na fúria de sua primeira transformação na real forma de Arquemônio, o garoto a matou sem piedade, e enfim pôde fugir do palácio
Ainda um pouco desorientado - possivelmente pela fome - Devimyuu levantou-se tentando organizar as ideias. Ele não sabia se procurava o ou a responsável por curá-lo ou se simplesmente saía dali. Optou pela segunda opção, e olhando atentamente notou uma certa iluminação crescente vir da direção sul da caverna. Resolveu apostar que aquilo poderia ser sinal de uma saída próxima e seguiu por aquele lado.
Descalço, ele procurava pisar com cuidado a fim de não machucar a sola da pata em algum fragmento de cristal caído no chão. Conforme caminhava, imagens do que ele acreditava ser a noite passada surgiam como flashes, e o adolescente tinha dúvidas se tudo o que vira realmente aconteceu ou se era apenas a mente lhe pregando peças.
O clarão que ele seguia foi se intensificando, até que, por fim, chegou a fonte dele. Não era uma saída, mas sim uma abertura circular a céu aberto nas formações rochosas da caverna, que culminavam numa piscina natural de água cinzenta, porém aparentemente limpa. Para um mundo inóspito e desprovido de beleza, até que aquele era um lugar bem bonito.
Devimyuu correu até a beira do corpo de água e abaixou-se. Formou uma concha com as mãos e aproximou do focinho. O cheiro parecia normal, e mesmo sendo água cinza, o garoto resolveu arriscar. Ele estava morrendo de sede, e aquela água parecia muito mais limpa do que a que ficava na tigela imunda que Mewpester lhe dava para beber quando ele era seu prisioneiro.
O jovem Lorde se inclinou e tomou goles atrás de goles, direto da beirada da piscina natural. Era um alívio indescritível sentir aquela água fria descer por sua garganta sedenta há dias. Ela deixava um pequeno gosto de ferro ou coisa parecida na ponta da língua quando bebida, mas de resto, estava ótima.
Após beber o quanto queria, Devimyuu jogou a franja que cobria uma dos olhos para trás e molhou o rosto. Talvez isso o ajudasse a limpar a mente e pensar no que faria a seguir.
Ficou um pouco parado ali, olhando para o alto, pela abertura formada entre as rochas.
A vista não era das mais revigorantes; opaco e monocromático, o céu do Mundo Reverso não era nada inspirador. Devimyuu procurou ignorar a repentina saudade que lhe bateu do céu vivo, azul e repleto de nuvens de diversas cores, que costumava ver no Mundo Puro.
Ele balançou a cabeça agitadamente, como se o movimento fosse expulsar aquele sentimento de seu coração cheio de mágoas. Aquelas coisas já não faziam mais parte de si, tinha que esquecê-las. Ele era um arquemônio reverso, o Lorde das Trevas daquela era, e devia ficar no mundo ao qual pertencia, por mais que o deplorasse.
Seu conflito interno foi interrompido quando ouviu o som de algo se movendo na água. Devimyuu olhou na direção de onde o barulho veio, já se retesando em posição de alerta com os pelos arrepiados, caso desse de cara com alguma ameaça.
- Ah, finalmente você acordou. - Disse uma voz feminina, suave e bem contida. Uma felin se aproximou, vindo para a parte iluminada da água.
Era a fêmea de pelagem cor de mel e olhos verdes que resgatara Devimyuu com a ajuda da criatura da floresta, três dias atrás.
O Herdeiro das Trevas despertou são e salvo numa misteriosa caverna, dentro de um círculo mágico de cura. Alguém o resgatou, no entanto, tudo que tem passado o ensinou a desconfiar da boa vontade alheia aparentemente a troco de nada. Diante de sua salvadora, Devi terá que decidir entre fugir, lutar, ou simplesmente escutá-la e descobrir quem ela é.
Continua no próximo capítulo!
Obrigada pela leitura!
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