- 01.2 -
Com o cenho franzido, presas cerradas com força e olhos predadores focando no adiante, Devimyuu aproximou-se cada vez mais da beirada do desfiladeiro, esperando pelo momento certo. Quando estava alguns centímetros de precipitar-se pela beira, ele lançou-se para frente num salto suicida e atirou-se desfiladeiro abaixo.
Foi uma queda livre num declive rumo ao chão. O adolescente semideus sentiu uma pancada forte tirar sua concentração e assim desfazer seu campo de força sombrio quando baqueou seu corpo contra o solo. Pedras, galhos, raízes e areia esfolavam sua pelagem azul-noite à medida que ele rolava para baixo. No entanto, os danos poderiam ser bem piores se não fosse o campo de força o proteger de quebrar uma perna ou braço no primeiro impacto.
Aturdidos com a atitude do garoto fugitivo, os guardas cessaram os ataques momentaneamente e pararam na beira do desfiladeiro, olhando incrédulos para baixo. A velocidade descontrolada com que Devimyuu rolou ladeira abaixo o atirou rumo a floresta negra, o fazendo cair embrenhado em meio a mata e desaparecendo da vista.
- O que estão fazendo parados aí, bando de incompetentes?! Atrás dele!
Rugiu o capitão numa ordem feroz a seus homens.
- Mas capitão! Ali é a Floresta Maldita! É ela que guarda a entrada para Mahojtani, o território do clã magista! Dizem que é repleta de maldições, feras monstruosas e outras criaturas, e que nenhum felin não-magico consegue sair vivo de lá! Se entrarmos ali estaremos mortos!
Informou um soldado temeroso.
O capitão enraivecido o apanhou pelo colarinho.
- O rei Mewpester deixou bem claro que se não voltarmos com aquele moleque haverá execução imediata para cada um dos integrantes desse pelotão! Nós já estamos mortos sem o garoto, seu maldito covarde! - ele gritou, rosnando com as presas a mostra e cuspindo enquanto falava. Em seguida, jogou o soldado no chão, que ficou a poucos metros da beirada do desfiladeiro - Ou você entra nessa maldita floresta ou eu arranco sua cabeça aqui mesmo! E isso vale para todos vocês!
Ele vociferou, se virando para o resto da armada.
Soldados reais estavam cientes de que suas vidas tornavam-se descartáveis a partir do momento em que pertenciam as tropas de sua majestade. E a maioria deles estava de acordo com destino de uma morte iminente, contanto que morressem cumprindo as ordens do rei.
Mais nenhum soldado demonstrou receio quanto a adentrar na temida floresta negra encantada, e se por acaso havia mais alguém na tropa com medo, tal medroso resolveu guardar isso para si.
- Avante, homens! Vamos descer! - Exclamou o capitão.
Seguindo suas ordens, os guerreiros de biotipo Gélido tomaram a frente e criaram rampas geladas para os levarem para baixo. Os de biotipo Metálico moldaram estacas de ferro e as usaram para fincar no desfiladeiro e descer com a ajuda de uma corda, e os alados simplesmente voaram cada um carregando outro soldado. Aos poucos cada guarda dava seu jeito de descer com cautela. A perseguição não podia parar, e logo todos estariam no chão frente a misteriosa floresta.
Devimyuu ficara quase dez minutos desacordado. Ele abriu os olhos, as copas das árvores que quase fechavam a vista para aquele céu sem estrelas eram tudo que conseguia enxergar. Sentia uma dor latente em sua cabeça que reverberava por todo o corpo. Sangue escorria da lateral sua testa, num fio denso que seguia até um dos espinhos de suas bochechas.
Seus braços e cotovelos estavam ralados, e o joelho sangrava, escorrendo sobre as pernas arranhadas.
Desorientado e sem coragem para se levantar, o semideus ferido ficou ali no chão por mais um tempo. Estava com as costas contra o solo, o húmus da floresta o deixava úmido e frio, provocando uma sensação não muito agradável para o felin adolescente deitado de braços abertos. A fraca luz da lua crescente atravessava por entre alguns galhos de maneira falhada, dando um aspecto ainda mais tenebroso àquela floresta sinistra. O vento frio soprava por entre as árvores, balançando suas folhas de maneira sinuosa e fazendo a mata uivar.
O garoto estava acabado. Sentia dores da ponta de seus chifres até a cauda. Estava fraco, faminto, machucado e quase sem magia. Ele não sabia se seu louco plano de fuga tinha dado certo; era possível que mesmo depois disso a guarda real continuasse a caçá-lo. Ele fechou os olhos e respirou fundo - e até respirar lhe doía, provavelmente alguma costela não resistira ao impacto da queda. Por um momento, o jovem Lorde das Trevas pensou em desistir de tudo; não valia a pena nem tentar se levantar.
Mas então se lembrou que ainda não era hora, que ainda não podia se entregar. Havia uma razão por qual continuar lutando, um motivo para seguir em frente. Ele tinha que viver para se vingar. Se vingar de Mewpester, o felin que assassinara cruelmente sua mãe bem diante dos seus olhos, e se vingar do príncipe da Luz Kinmyuu III, por sua grande traição.
Movido por sua determinação resiliente, o adolescente forçou-se a lentamente erguer o corpo. Sentiu uma pontada forte nas costas quando o fez, como se a mesma estivesse fora do lugar. Alguma coisa o feria por dentro, torturando seus órgãos. Tentando suportar a dor o máximo que pôde, puxou a si mesmo e usou uma árvore como apoio para conseguir se colocar de pé.
- Miarrgh! - Ele gemeu entre os dentes, com o rosto contraindo-se pela dor que latejava em cada músculos e osso. Lutou para não chorar, ignorou seu desejo de morrer ali mesmo só para que aquela dor parasse. Então seguiu adiante.
Se apoiando de árvore em árvore, Devimyuu caminhava com dificuldade, sem saber ao certo para onde ia, mancando devido as várias contusões e o joelho que não parava de sangrar. Ele sabia que tinha que sair dali depressa, pois estava numa floresta e o cheiro do sangue poderia atrair alguma fera noturna.
"Se isso acontecer, vou ter que usar meu último pingo de magia pra me salvar... Tenho que sair logo daqui!" Pensou ele.
O reverso tentou apertar o passo, mas estava esgotado demais para isso. Se via obrigado a fazer paradas ao longo do caminho para recuperar fôlego. Além da fraqueza e exaustão, o ar gelado da floresta tornava ainda mais difícil respirar. Após caminhar perdido por uma boa distância, ele resolveu se sentar sobre um velho tronco oco coberto de musgo; o que acabou não sendo uma tarefa nada fácil graças ao joelho rebentado, porém, ficar de pé naquele estado mostrava-se ser muito mais insuportável.
O tronco molhado umedeceu a velha calça desgastada quando Devimyuu se sentou, a sensação era bastante desconfortável, mas para alguém que já estava com a pelagem suada e ao mesmo tempo com frio, não fez muita diferença.
O jovem Lorde se encolheu, cruzando os braços apertado e os esfregando com as mãos, tomando cuidado para não tocar nos esfolamentos. Ele precisava pensar num modo de sair da floresta e para onde ir depois. No entanto, era muito difícil raciocinar com a cabeça zunindo pelo estômago vazio e o corpo repleto de ferimentos graves.
A náusea provocada por correr praticamente uma maratona sem ter comido nada há dois dias havia passado, e no momento, a fome e a dor física competiam acirrado para ver qual das duas o debilitava mais; sem contar a sede que também era uma forte concorrente.
Os sons da noite invadiam sua mente quase em branco. Corujas piavam uma vez ou outra, intercalando com o grasnar dos corvos que sobrevoavam as árvores - que em sua maioria eram apenas galhos secos, dando um aspecto de morte à floresta sombria, com exceção de algumas que ainda mantinham suas copas folhosas como uma fortaleza verde-musgo impenetrável. E toda vez que o vento soprava por entre suas folhas, Devimyuu podia jurar que ouvia sussurros estranhos junto ao farfalhar dos galhos.
Uivos, grunhidos, e outros ruídos indecifráveis se uniam àquela sinfonia macabra. O reverso adolescente olhava em volta tentando identificar de que direção vinham aqueles sons esporádicos, mas tudo que conseguia ver ao seu redor eram sombras e escuridão. Estar completamente só no escuro o fez pensar nas Sombras que eram seu elemento, e na Escuridão presente em seu sangue que o acompanharia pela vida inteira. Afinal, ele nascera um Lorde das Trevas, e tais trevas fariam para sempre parte de seu ser quer ele gostasse quer não.
Tudo era simplesmente assustador. Um sentimento avassalador de solidão acabou o dominando, fazendo-o sentir-se abandonado e depressivo. E Devimyuu estava com medo, muito medo. Uma enxurrada de questões sem resposta inundava sua mente. Ele se perguntava como foi acabar daquele jeito e se realmente merecia tudo que vinha passando no último ano. E pensar que antes ele era tão feliz...! Será que agora seriam apenas dor e trevas que o aguardavam pelo resto de sua vida que mal tinha começado?
No fundo, não era isso que Devimyuu queria, nunca foi. Por um tempo ele até pensou que poderia ser diferente, porém, ele era um arquemônio, e para um ser como ele parecia não haver outro destino; não outro que não fosse a morte. "Demônios como você merecem apenas morrer" - foi o que Kinmyuu lhe dissera, pouco antes daquela espada atravessá-lo.
O jovem Lorde abaixou a cabeça. Sentiu algumas lágrimas que rolaram molharem seu rosto. Ele as enxugou bruscamente com as mãos, num gesto raivoso. Estava cansado de chorar, cansado de encarar toda aquela dor sozinho, e principalmente, cansado de lutar contra o que ele realmente era.
Ele achava que poderia ser diferente, que poderia trilhar o caminho da bondade, do amor e da Luz. Mas tudo não passara de mera esperança vazia. Aparentemente, todo o esforço para ser algo melhor foi em vão. Não importa o que fizesse, seu destino estava atrelado àquele final; ele sempre terminaria sozinho na escuridão, o lugar ao qual pertencia, a qual sempre pertenceu.
Já que era assim, estava decidido a parar de fugir da Escuridão. Aceitaria as Sombras que faziam parte de si. Se ninguém se importava com ele, então ele não se importaria com mais ninguém. Ia usar todo o poder superior que procedia de sua escuridão para se reerguer e alcançar seus objetivos, e o primeiro deles era executar sua vingança.
Fixando-se nesse pensamento, Devimyuu forçou-se a superar tudo que o limitava naquele momento e seguir em frente. Ele não conseguiria se vingar de ninguém se continuasse sentado ali lamentando sua desesperança e esperando a morte chegar. Com um olhar focado, ele se colocou de pé novamente. Danem-se a dor, a fraqueza e a fome - o semideus das Trevas não podia dar-se por vencido.
Seu corpo enfraquecido continuava trêmulo, e Devimyuu fazia um esforço descomunal para não desmaiar. A tontura o fazia andar trôpego de árvore em árvore, abraçando os troncos para evitar cair no chão. Tudo que ele queria era encontrar um abrigo, fosse uma gruta ou tronco oco grande o bastante para que coubesse dentro. Até uma toca abandonada de algum animal serviria. Seria mais fácil deixar a floresta durante o dia, e ele precisava urgentemente parar para se recompor e recuperar pelo menos um pouco de sua magia.
Apertando os olhos com a vista embaralhada, o garoto Lorde avistou um clarão mais adiante. Achou que finalmente tinha encontrado uma saída, e animou-se momentaneamente. Porém, para seu desespero, as vozes que ouviu a seguir e som de passos rígidos desbravando a mata bem próxima a ele o fizeram perceber o quanto estava enganado.
No Próximo:
Ferido, sem forças, e sem poder mágico algum, Devimyuu está prestes a perder outra vida nas garras das forças inimigas. Mesmo assim, o semideus adolescente está disposto a lutar até o fim. No entanto, este temido fim pode estar bem mais próximo do que ele imagina...
Confira o desfecho dessa perseguição brutal logo mais no Capítulo 2!
Obrigada pela leitura!!
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