Capítulo IV - Quando o céu tingia-se de laranja

Quando o céu tingia-se de laranja, ainda era cedo.

No reino, Melys chorava pelo irmão, sentindo por sua falta. Todos os dias sumiam pessoas. "Por sorte", pensava a pequena, "isso geralmente acontece com os escravos ou com os miseráveis". Mas não, quem sumira fora o rapaz que pertencia a uma das mais ricas famílias de camponeses. Quem a consolava era Amel, a loira mais velha, quem já havia estado também aos prantos, às escondidas, afinal, Amel não gostava de chorar na frente das pessoas, coisa com a qual Melys não se importava.
Pela vigésima vez naquele dia, a rapariga de olhos marejados perguntava:

- Mãe, onde anda Pedro? – E pela vigésima vez naquele dia a mãe a ignorava, como se não fosse capaz de ouvi-la, fazia um silencioso "shhh" e aninhava a menininha ao peito, ao passo que Melys adormeceu.

- Você sabe... Sabe o que aconteceu? – perguntou Amel à mãe.

- Imagino, minha filha. Imagino mais do que você pode imaginar. – Seu olhar era firme, como o de uma onça. – Percebe, minha querida, que há mais soldados do que nunca? Rondando por todos os lugares?

Amel suspirou profundamente, murmurando um quase que inaudível "sim".

- Filha minha, posso não saber de muitas coisas, mas se há algo que sei deste mundo dos homens, é que quando há muitas armas sendo carregadas em tempos de paz, uma guerra está para começar.

Simultaneamente, dessas conhecidências as quais costumam passar por despercebidas, Pedro encontrava-se na reunião com as criaturas mágicas, em meio ao acampamento na floresta.

- Guerras são coisas feias. – dizia o chefe dos anões, pequenas criaturas que surgiram das minas do Oeste e possuem o rosto ligeiramente rosado. – Mas devemos nos preparar. Digo ao conselho que aqui se forma que nossos machados estão afiados, e lutaremos juntos, meus irmãos, nós anões nos comprometemos com a linha de frente da batalha. Como ia dizendo, guerras são coisas feias, mas a beleza está na nossa capacidade de lutar e defender nosso povo e nossas matas, nem que se for com nossas próprias vidas!

- Estamos com vocês. – concordavam as fadas guerreiras. – Pelo fim do Império das Feiticeiras das Sombras!

- Nós também. – disseram as águias-gigantes, ao lado dos condores, as harpias e os falcões. Ali, talvez com a exceção de Pedro, o qual descobrira o fato apenas agora, todos sabiam que, na verdade, quem realmente governavam eram as Feiticeiras das Sombras, e o rei, embebido por seu ego e orgulho cego, tratava-se de, mais ou menos, uma máscara (ao menos, como se fosse uma).

Pedro, rapaz que agora crescia e começava a entender o mundo e como as coisas funcionavam de fato, apenas assistia, balançando com a cabeça. Amaroq se encontrava sentado ao seu lado, leal.

- Meu garoto, – perguntou Koda. – sabe como manejar uma espada?

- Sim. – respondeu Pedro, limpando a garganta e levantando-se para que sua voz ressoa-se mais clara e limpa; em sua mente, lembrou-se do presente de Elora, olhando brevemente para a elfa. – Meu irmão ensinou-me as artes dos campos de batalha.

- Elora... – Koda chamou a atenção da mulher.

- Caro conselho, – dizia, com voz bem pontuada. – estão ao nosso lado também as dríades e os demais espíritos das árvores, assim como todo o meu povo: os elfos. Estamos preparados para formar, junto dos bons arqueiros de outras espécies, as linhas que defenderam a todos nós pelo ar, com nossas certeiras flechas. Digo com total certeza: meus melhores arqueiros são capazes de disparar uma média de treze flechas por minuto.

Elora virou-se para Pedro, fazendo com que suas brancas bochechas tomassem uma coloração vermelha.

- Meu doce e valente rapazinho. – A elfa não sorria, sua expressão era de quem guardava consigo o segredo de muitas eras. Para Pedro, sua colocação era tão certeira quanto às flechas que falava sobre. – A guerra que se aproxima (é provável que já tenha deduzido) faz parte da Profecia. Pedro: é o inevitável. Kalau, atual Rainha das Sombras, apaixonou-se por um de nós, os seres encantados. Está viva, sim. Por um motivo muito simples: a morte de uma rainha enfraquece todo o Reino, Reino este que é seu por direito governar, quando for a hora certa. – sussurrou na mente do rapaz a última parte, para a surpresa do mesmo, que nunca havia antes conversado por pensamentos. – "Deve conquistá-lo."

"Eu sou apenas um menino." – Pensou o moreno, encarando-a, olho com olho.

"Um menino que será rei em breve, não esqueça jamais! Um rei deve honrar sua coroa! Levante-se e lute por seu povo!"

- O desejo de todos é que eu me torne rei. – tentava imitar a forma com a qual as criaturas mágicas discutiam entre si naquela reunião. – Caro conselho, eu creio que saibam da crueldade com a qual a terrível Dinastia Sombria trata a todos há muitos e muitos anos. Isso incluí a nós, os homens. Se for da vontade de todos, se nos permitem as árvores, os animais e todos aqui hoje presentes, compreendo que vosso desejo se faz pela liberdade! Vamos, meus irmãos, defender a nossa frondosa e sagrada terra, lutamos para que a paz reine! Que o medo não se faça presente em nossos corações nunca mais! – Falou Pedro, embora dissesse mais para si do que para os outros. Desde criança, sempre se saiu bem nos discursos.

Amaroq ergueu sua grande cabeça e pôs-se a uivar. Nos dias que se sucederam, todos começaram a se preparar, cada vez mais, para a guerra. Koda tornou-se o conselheiro de Pedro. O exército fora preparado para que bem trabalhassem juntos, todos em união, aprendendo e reconhecendo as habilidades de cada um.

- Ei, menino! – chamou um anão. – Ei! Venha cá.

Pedro caminhou sobre o chão de terra, sentando-se ao lado do anão, às margens da floresta, com os braços segurando os pequenos joelhos. Também não era um rapaz muito alto, mesmo que com dezessete anos.

- Que é? – perguntou o jovem.

- Você cachimba?

- Não...

- Gostaria de cachimbar? – O anão estendeu-lhe um cachimbo, no qual dentro havia algumas ervas provenientes da terra de Ayanii. Obviamente (ou nem tão óbvio assim, para os humanos), cachimbar era algo comum por entre todos os seres do elemento terra, isto é, os anões, os faunos, os gnomos e os duendes.
O rapaz pegou das mãos do anão o cachimbo feito por alguma pedra das minas e acendeu-o com um palito de fósforo, também dado a ele pelo pequeno ser. O todo lhe era agradável e os pássaros alto cantavam, assim como o vento que balançava a copa das árvores e dançava por entre seus troncos, também balançando os fios de cabelos dos dois que punham-se sentados sobre as folhas caídas.

- Como se sente alteza? – perguntou.

- A cada dia que passa a saudade por minha família é o que mais dói, caríssimo anão. Mas a guerra não mais me assusta, tão pouco o trono. Bem me instruem aqueles que ao meu lado caminham.

- Um grande passo, alteza... – E riu o anão, nasalmente, como o faziam os demais seres do elemento terra.

Pedro agradeceu ao anão, guardando consigo o cachimbo ganhado pelo mesmo e retirou-se, almejando se encontrar com Koda. Porém, quem apareceu em seu caminho foi o cinzento Amaroq.

- Os homens e os anões costumam dar-se muitíssimo bem. – comentou o lobo. – Fico feliz, excelentíssimo Pedro, por sua evolução e pelo contato o qual está tendo com os diferentes povos que lutam junto de ti.

- Obrigado, Amaroq. – Agradeceu. As cortesias que lhe eram dirigidas por conseqüência de seu sangue já não mais o importunavam. – Sabe, há uma dúvida que me arrebata o peito. – O lobo acenou com o focinho, para que continuasse. – É ou não é egoísmo de minha parte, meu fiel guardião, eu querer resgatar minha família, trazer-lhes em segurança, antes da guerra?

- Alteza... – Amaroq respondeu. – Todas as decisões que tomares, sendo rei ou não, são sempre válidas desde que provenham do coração.

O rapaz sorriu:

- Planejarei o resgate hoje mesmo! – E sabia que o lupino animal encantado o acompanharia.

Ao contar para Koda de seu plano, o mesmo lhe providenciou um cavalo e cinco de seus melhores homens. A agilidade era o mais essencial para aquela missão. Logo, à cavalo, Pedro, os centauros e o lobo eram capazes de chegar ao Reino em um dia e uma noite.
Koda, como o bom estrategista que era, permaneceu no acampamento, dirigindo os treinamentos dos guerreiros e auxiliando Elora na organização das logísticas e do dia a dia dos próprios acampados, organizando a providência dos alimentos, da água, medicinas e todo o resto que você deve imaginar ser necessário para que um acampamento com centenas de humanóides e animais falantes funcione.

- Mahukh. – apresentou-se a Pedro um dos centauros. – Sou o tio de Koda.

- É um prazer conhecê-lo, Mahukh... Um prazer estar na companhia de vocês todos. Obrigado.

- Alteza. – disse o mais baixo dos centauros, o qual os outros chamavam por Thypure, nome que significa, "aquele que é capaz de aprender", na hath ê ma*. – Conhece o Vale das Borboletas?

- Não.

- É onde habitam alguns homens, são parecidos com você. – Falou outro centauro, de fios de cabelo ruivos.

- E as Filhas de Ayanii fugidas. – explicou Thypure. – Assim como Amaroq é seu guardião, há muitos outros animais encantados (a quem vocês estão habituados a chamarem de 'criaturas mágicas') que também optaram por o serem. São eles quem as levam para o Vale das Borboletas. Lá, elas crescem em segurança e desenvolvem sua magia.

- Está pensando para que deixemos minha família neste vale. – concluiu Pedro. Afinal, todos sabiam que as guerras não são o lugar ideal para nenhuma criança, qualquer fosse o povo a qual ela pertencesse.

- Podemos, também, chegando lá, trazer conosco algumas das Filhas de Ayanii bem dotadas que magia e que queiram somar em nossas fileiras. Não me importo de carregar, nesta especial ocasião, alguém em minhas costas.

Todos pareceram concordar com a idéia. Encontrando o rio, o qual o rapaz já bem conhecia (sendo o mesmo que havia acompanhado na ida para o acampamento, porém com outras águas, uma vez que as águas dos rios nunca são as mesmas e vivem a correr), todos beberam do líquido cristalido e refrescante. Descansaram por algumas horas, afinal, não estava nos planos dormir pela noite (na qual pertencia à Amaroq a tarefa da caça).

A viagem transcorria de forma rápida. Os equinos galopavam com agilidade, passando para o trote em determinados momentos, mas por pouco tempo sempre, e logo retornavam ao galope. O lobo, Amaroq, os acompanhava correndo como se mal fizesse esforços.

Quando todos se encontravam na região do lago (aquele mesmo lago onde Dana, a mãe de criação de Pedro, lhe revelou as informações as quais, hoje, eram mais bem compreendidas pelo rapaz), já era madrugada. Amaroq rogou à lua com seu uivado e a lua por um momento pareceu tremelicar em meio ao escuro céu, foi quando seu brilho intensificou-se e desceu por entre as centenárias árvores, envolvendo ao lobo e aos outros e os disfarçando de humanos. Pedro, claro, foi o único que ficou de fora, pois não precisava do disfarce, como é de se esperar (na verdade, observava-os com admiração, intercalando sua atenção com os seres encantados e a lua).
Amaroq, agora disfarçado novamente de velho senhor, explicou aos demais que bastava mentalizar sua forma anterior que rapidamente à ela regressariam. Também falou que suas habilidades continuavam as mesmas, pois o encanto funcionava como um véu, e sabemos todos que véus apenas servem para ocultar, mas continuamos os mesmos por debaixo deles.

Em pouquíssimo tempo, Pedro forneceu informações sobre como eram os caminhos do Reino, infiltraram-se, com um pouco de distância uns dos outros, seguindo uma estratégia discutida ao decorrer da viagem, anteriormente.

Ao avistar a choupana, Pedro não pode evitar que seu coração batesse mais rápido e forte. O cheiro da flor de laranjeira inundava a rua e um beija-flor passou voando para dentro da antiga moradia do rapaz, para dentro da janela semi-aberta, na qual, espiando pelo lado de fora, era possível avistar a pequena e doce Melys, tranquilamente adormecida. Pedro quase deixou com que seus olhos ficassem repletos por água, porém, sabendo do curto tempo e deixando com que a energia da emoção o percorresse, sabiamente derramou apenas uma única e singela lágrima e adentrou, solenemente e repleto de cuidado, o recinto.

Glossário:

*Hath ê ma: língua falada tradicionalmente pelos centauros e, curiosamente, também por alguns outros animais encantados, da classe das criaturas mágicas.

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