Capítulo III - O Homem Verde

Uma luz amarela despertou Pedro de seu profundo sono. Havia certa sonolência, comum das manhãs, entretanto o rapaz amanhecia revigorado. De forma estranha, como nunca havia sentido antes, uma energia percorria-lhe todo o corpo, feito raios formigantes que lhe alcançavam pelos pés.

- Amaroq...? - murmurou Pedro, sem conseguir enxergar o lobo. A luz amarela quase que lhe cegava a vista. Dentro de alguns instantes, identificou sua fonte: o rio tornara-se dourado feito ouro reluzente. Os animais, todos, como se estivessem em uma grande festa, saltitavam e cantavam sobre a relva da floresta ante a presença de algo que parecia existir cerca de alguns metros mais à frente, seguindo o rio pelas suas margens.

Curioso e despido de qualquer relutância, o jovem caminhou no sentido para o qual olhavam todas as criaturas. Encantara-se com tamanha a biodiversidade que ali havia se aglomerado.

"Devem se tratar todos de criaturas mágicas" pensou.

No mesmo instante, um pequeno beija-flor cruzou por seu caminho, abrindo-lhe a passagem que logo o deixou de frente com um ser que habitava no coração de toda a mata. Ao lado do ser, Amaroq se encontrava sentado sob as patas traseiras, com a cabeça erguida, Pedro pode admirá-lo como não o havia feito até então no dia anterior, notando que sua exuberante pelagem cinzenta era grandíssima e balançava suavemente ao soprar do vento.

- Aproxime-se, filho meu. - disse o ser, sentado com as pernas peludas e marrons onde não havia pés humanos, mas de animal, cruzadas, diante do esplendoroso rio dourado, que parecia nascer de si próprio. Tratava-se do que alguns provavelmente, em outros mundos, conhecem como faunos, seres reconhecidos facilmente por terem o corpo humanóide mesclados com o de um artiodátilo. De fato, era metade conífero e metade humano. Possuía tronco humano, braços humanos e uma cabeça estranhamente humana e peluda com grandes chifres de cervo e pele esverdeada.

Cambaleante, Pedro aproximou-se, pensando se tratar de um sonho.

- Amaroq, meu filho. - O ser virou-se para o ser lupino. - Está a cumprir bem sua missão.

O lobo caminhou, solene, até Pedro.

- Este é O Homem Verde, Pedro. É o Grande Rei de todos os animais dessa floresta. - explicou. - Ele gostaria de falar com você, pois é seu pai.

- Meu o quê?

- Pai, jovem rapaz. Como já disse Amaroq, você ainda tem muito do que aprender antes de desbravar todos os infindos mistérios aos quais está destinado. Antes disso, algumas coisas devem ser esclarecidas. - disse o ser conífero. - A primeira de todas elas é que fui eu quem transformei-me em homem. Por mais que as línguas de seu povo falem de uma certa Profecia, na qual a Rainha de seu povo apaixonou-se por uma serpente.

- Não entendo.

- Há muitas maneiras de se ver uma mesma coisa, Pedro. Tudo varia com o ponto de vista do qual se enxerga.

Os animais todos ainda encontravam-se aglomerados quando um forte vento surgiu.

- O tempo está ficando curto, filho meu. - disse o Homem Verde. - Você deve seguir no sentido da correnteza do rio, sentido esse que você conhece como sendo o sul. Seja rápido e esteja sempre alerta.

Pode-se ouvir o ressoar de uma trovoada e, antes que de que qualquer coisa pudesse acontecer, o Homem Verde acrescentou:

- Pedro... não se esqueça: haja com prudência.

Uma gota de água caiu sobre a testa de Pedro antes que ele pudesse perguntar algo. Depois outra e mais outra, revelando logo uma grande tempestade que encharcou o rapaz, lhe arrancando do sonho. Amaroq estava em sua frente se sacudindo como fazem os animais na chuva. Alguns raios caiam sobre a copa das árvores.

- Que bom que acordou. - disse o lobo. - Vamos continuar nossa viagem.

Neste mesmo instante uma borboleta atravessou por entre ambos, em vôo.

- É o animal do meu sonho! - murmurou o rapaz.

- O que disse?

- Nada de demais... Apenas... - Pedro pensou por alguns instantes. - Apenas tive alguns sonhos estranhos esta noite.

- Que tipo de sonhos estranhos?

E o jovem contou de seus sonhos, em detalhes, para Amaroq, que a tudo ouvia atentamente.

- Então vamos seguir o sentido da correnteza do rio, pois estávamos indo para a direção contrária. Devo ter me enganado.

- Amaroq, foi apenas um sonho!

- Alteza, com todo respeito, mas quando vai entender que tudo aqui é repleto de magia? Você precisa apenas prestar atenção para poder enxergar. Os elfos, por exemplo, podem até mesmo se comunicar com as árvores em uma língua muito, mas muito antiga. O Homem Verde é o espírito de toda essa floresta. Os mistérios de Ayanii são muitos e você se acha o senhor da razão, assim como grande parte de sua espécie humana, mas vocês também fazem parte de Ayanii, se esquecem disso e fazem o que fazem. Alteza, precisa aprender a ouvi-la se quer se tornar Rei!

A chuva ainda caía fortemente.

- Eu não quero me tornar rei coisa alguma! - gritou Pedro. - Você não entende? Deve ser por que é um lobo. Só existe em minha imaginação e isso tudo não passa de um enorme pesadelo desgostoso. É isso! Desde a conversa com minha mãe: tudo um grande pesadelo do qual vou acordar a qualquer instante!

Amaroq riu.

- Você está agindo feito um tolo, meu rapaz, de maneira estupidamente idiota.

- Como ousa falar assim comigo?

- Você diz que não quer ser rei. - falou o lobo. - Não é mesmo?

- Para ser rei, antes precisaria ser príncipe.

- E não o é?

Pedro calou-se. A tempestade mantinha-se e seu corpo começava a esfriar, fazendo com que sentisse frio.

- Vamos. Siga-me. - disse Amaroq, acompanhando a correnteza do rio, no qual se faziam pequenas ondas, indômitas.

Passaram-se três dias e três noites e os calcanhares de Pedro doíam. Nada mais de sonhos estranhos. Todos os animais lhe pareciam comuns e as árvore, que eram tão velhas, germinadas num tempo no qual o jovem mal podia sequer imaginar, pareciam ser sempre as mesmas. Neste tempo, poucas palavras foram ditas e estabeleceu-se oficialmente uma regra de que as caças diurnas pertenciam à Pedro e, as noturnas, à Amaroq.

Enfim, chegaram num local plano: um campo, e Pedro finalmente pode ver algo de diferente, que era um grande acampamento pelo qual transitavam criaturas mágicas de todos os tipos. Foi lá que, pela segunda vez, avistara a borboleta azul novamente. Naquele tempo, já havia aceitado o fato de que estava vivendo na realidade e, aos poucos, assimilava-a dentro de si. Assim sendo, não muito se espantou com as criaturas mágicas que encontrou. Almejava, acima de tudo, um local em que pudesse repousar em paz, sem ser importunado.
Não que não gostasse da companhia do lobo, mas seus sermões e seu linguajar por vezes lhe dava nos nervos, assim como seu silêncio diante dos questionamentos sobre qualquer coisa.

Em recepção à Pedro e Amaroq, um centauro (que é um ser metade cavalo, metade homem) aproximou-se, acompanhado de uma matilha de lobos.

- Sejam bem-vindos! - Cumprimentou-lhes, em reverência. - Amaroq, meu amigo. Pedro, vossa excelência. Por favor, acompanhe-me majestade.

Uma formosa loba branca logo correu em direção de Amaroq, unindo ambas as testas lupinas. Pedro logo imaginou tratar-se de sua esposa - "ou algo do tipo", pensou, conforme acompanhava a criatura equina: da cintura para baixo era um cavalo tordilho e a partir do dorso, um musculoso homem, de olhos redondos e pretos e cabelo comprido, o qual portava em uma aljava seu arco e flecha, assim como Pedro. Entretanto, também carregava consigo uma espada.

- Esperávamos por sua chegada, Pedro. - disse, conforme caminhavam pelo acampamento, onde todos olhavam para o rapaz com nítida curiosidade. - Todos aqui estão habituados a se expressar com sinceridade, diferente de seu povo, então não se espante com nossa franqueza. Você é a novidade. Muitos nunca nem sequer viram um humano antes.

- Ah, sim... - respondeu, buscando agir com naturalidade coçando a nuca, todavia via-se visivelmente constrangido. - Entendo.

- Rapaz... - Sorriu o centauro, amigável. - Deve estar repleto de perguntas! Fique tranquilo. Com o tempo, irá se adaptando melhor. Chame-me de Koda. Aqui, nesta barraca, você pode se estabelecer. São seus aposentos daqui em diante. Quem arrumou tudo foi Elora, você irá adorar conhecê-la.

- Obrigado, Koda.

Pedro entrou na barraca, deixando Koda do lado exterior. Era um pequeno recinto, nele havia uma rede feita por lã branca e alguns fios de ouro, uma pequena mesa de madeira a qual servia de suporte para um vaso branco que continha um arranjo das mais formosas e coloridas flores, uma jarra com leite fresco, uma vasilha com biscoitos e um copo de cristal.
Agraciado, ouvindo o cantar dos pássaros que provinham das matas, Pedro bebeu do leite e comeu os biscoitos. Nunca antes havia provado de tão delicioso alimento.

- Espero que tenha gostado, Pedro. - Uma doce voz feminina atravessou o ar, atraindo a atenção do rapaz, que se virou para ver uma mulher de orelhas pontudas e olhos de mar, cujo longo cabelo se prendia em tranças e enfeitava-se com pequenas flores de diamante. - Sou Elora, a Senhora do povo élfico.

Pedro ajoelhou-se diante da mulher cuja aura brilhava, luminosa e branca.

- Levante-se, meu caro. Devo-lhe explicações de que aqui se encontram muitos povos, como sabe há os lobos e os centauros, mas também muitos outros que você ainda irá conhecer. Estamos nos preparando. Tu representas nossa união com o mundo humano. Lutaremos ao teu lado, Pedro. Venho lhe informar isso em nome de todo o meu povo. - Elora retirou de uma bainha uma espada de reluzente metal. - Esta é sua espada. Foi forjada com magia élfica pelos anciões de meu Reino.

- Obrigado, majestade. - respondeu o rapaz, aceitando o presente: a espada e sua bainha.

- Ora... - Elora sorriu, transmitindo ares de tranquilidade. - Não me chame assim. Reis e rainhas não chamam uns aos outros de majestade, príncipes também não. Você é filho do espírito das matas, o Rei de todos os animais, e da Rainha de seu povo. Sangue de realeza corre por suas veias. Por isso, deve aceitar a si próprio nestas condições de sua existência.

Pedro notou no dedo da elfa um anel de borboleta azul-turquesa, fazendo-lhe erguer ambas as sobrancelhas, como se parte de um quebra-cabeça fosse possível de contemplar montado em sua mente.

- A borboleta... Espere! Você! É você?

Elora assentiu com a cabeça, movimentando suavemente ambos os braços, como se imitasse o bater das asas do inseto, remetendo Pedro a um harmônico e curto bailar, e logo transformou-se na borboleta azul-turquesa que o jovem moreno havia visto nas ocasiões anteriores. Rodopiou circularmente no ar, antes de tomar sua forma élfica de mulher novamente.

- Agora, deve preparar-se para seu jantar de boas-vindas. Você conhecerá melhor os povos que estão dispostos para lutar conosco, e amanhã, logo após o raiar do dia, haverá uma reunião. Discutiremos sobre questões importantes. - Assumiu uma expressão séria. - Uma grande batalha se aproxima Pedro. Esteja preparado.

Pedro observou Elora sair do recinto, deixando-lhe à só por um instante. Contemplou com atenção sua nova espada: era feita por kaëtyn, o mais nobre metal élfico, provindo das grutas que se encontravam no Oeste das terras de Ayanii, onde antes, há milhares de anos, havia mar. Pedro não sabia, mas uma arma feita por kaëtyn era capaz de ferir a qualquer coisa com facilidade, mesmo que fosse algo banhado pela mais alta magia ou que apresentasse grande resistência.

Embainhando a lâmina da espada e prendendo-a na cintura, Pedro repousou no chão sua velha aljava e deitou-se na rede, cochilando por o que acreditava serem alguns instantes, até ser desperto por Koda, que ergueu o tecido que servia como entrada e saída de sua barraca e lá se encontrava.

- Perdoe-me por tirar-lhe do descanso.

O jovem bocejou, levantando-se em prontidão.

- Tudo bem... está na hora?

- Sim. - afirmou o centauro.

Ambos saíram pelo acampamento. Era possível admirar o estrelado e límpido céu naquela noite. Esperança brilhava fortemente. As constelações refletiam-se nos olhos de Pedro.

- Meu povo, - comentou Koda. - desde sempre é fascinado pelas estrelas. Estudamos as constelações com os sábios antigos guerreiros. Acreditamos que a noite é um escuro véu puxado por Epona, a ancestral de meu povo, que nos guia na morte, nos levando aos céus, para que também possamos nos transformar em estrelas.

- Fascinante.

Pedro suspirou profundamente.

- Koda... Há exatamente três dias tive um sonho. Era um fauno, como se fosse um fauno. Dizia ser meu pai, mas minha mãe me disse, certa vez, que sou filho de uma criatura mágica que tomou forma de homem... Uma serpente. Isso faz algum sentido para você? Amaroq diz que é o espírito da floresta... o chamava de... de... "Homem Enverdecido", eu acho.

- A floresta é cheia de mistérios, alteza.

- Me disseram isso muitas vezes nos últimos dias, Koda.

- Acontece que o Homem Verde é feito por energia, Pedro. Ele toma a forma que quiser. Ora fauno, ora serpente... por vezes, toma forma de humano.

Na extremidade sudeste do acampamento, longas mesas de madeira rústica com bancos enfileiravam-se, e, sobre elas, os mais variados pratos compunham o jantar.
Eram carnes de diferentes tipos, frutas, pães, biscoitos, cereais e folhas.

Os anões bebiam cerveja e riam alto e as fadas zanzavam pelos ares, importunando-os; os elfos eram, com total certeza, os mais discretos de todas as criaturas e as corujas mantinham-se nas sombras, próximas aos lobos.
Pedro descobriu que diversas espécies de animais falantes também estavam no local e que existiam pequenas criaturas de cor limão-flourescente do tamanho de sete maçãs amontoadas que riam baixinho com voz nasal (o que parecia combinar com seus narizes pontiagudos). Eram da classe dos duendes.

Tranjando um vestido também verde, uma elfa de íris da mesma cor sempre mirava o jovem, por de longe. Chamava à Elora de mãe, fato que causou espanto em Pedro, que não sabia que os elfos, quase imortais se comparados ao tempo de vida dos humanos, conservavam a juventude por milhares de anos.

Apesar da saudade de sua família ser grande, Pedro estava começando a gostar daquela gente, daqueles seres. Se divertia e se entretinha naquele novo universo que estava a desbravar. Começara a gostar especialmente de Koda, que lhe transmitia sempre confiança, assim como Amaroq.

O lobo por vezes o observava de longe, junto de sua alcatéia, em dado instante pode ser visto conversando com a elfa Elora. Como havia jurado, o ser lupino zelava pelo menino (o via como se fosse um menino ainda, e não como um homem ou mesmo o jovem que de fato era). O tratava como um de seus filhotes, os quais Pedro naquela descobriu serem treze (descobrira, também, que loba branca a qual havia visto mais cedo realmente era a esposa de Amaroq, e se chamava Genoveva).
O lobo mantia todas as formalidades na fala, as quais julgava serem necessárias para tratar com todos. Não era uma exclusividade à Pedro, como este pensava anteriormente.

- Sinto que lhe devo desculpas. - Pedro aproximou-se de Amaroq.

- Pelo o quê, alteza?

- Por ter sido tão parvo. - disse ao cinzento. - Começo a entender que você estava tentando me ajudar desde o começo, e eu só soube importuna-lo.

- Está tudo bem. - respondeu o lobo. - Foram, de fato, muitas mudanças para tão pouco tempo. Mas saiba que estou do seu lado, desde o começo, até o fim.

- Amaroq... sobre essa batalha vocês dizem se aproximar. Ela tem haver com a tal da profecia, não é mesmo?

- Excelentíssimo Pedro, amanhã cuidaremos deste assunto.

"E ele ainda se mantém misterioso", pensou o moreno.

Após o jantar, a lua crescente imperava no céu, clareando a escuridão, o rapaz seguiu só até sua barraca e não muito tardou para adormecer, ainda podendo ouvir o amável canto lírico das fadas.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top