Conto 3 - Confiança é Tudo (Ricardo Félix)
Autor: Ricardo Félix
Música-tema: Lulu Santos - Não acredito
Classificação: Livre
Sinopse: O solteirão Davi se vê forçado a compartilhar sua intimidade com Janete, a diarista que faz a limpeza do seu apartamento. A relação entre os dois não é nada amistosa, pois ele a considera invasiva e incompetente. Pelo menos até um acontecimento trágico marcar as vidas desses dois.
***
Enquanto Davi tira as meias da máquina de lavar para estendê-las, se pergunta "Pra onde será que vão as meias que somem? E por que nunca somem aos pares? Por que sempre há um pé que teima em ficar para se tornar prova do desaparecimento do outro?" Naquela manhã estava em casa, só trabalharia à tarde, então teria "o prazer" de ficar na companhia de Janete sua diarista semanal. A relação entre eles não era muito amistosa. Janete não limpava bem, mas adorava se intrometer na decoração. Sempre dava uma inclinada no vaso do arranjo pra dar um toque feminino, mas o quadro na parede tinha que ficar torto. A primeira ação de Davi ao chegar era endireitá-lo, acertá-lo pela linha do teto. Quando o quadro estava no lugar era pior, porque aí ele tinha a certeza de que ela não havia limpado. Passava então o dedo que saía preto de poeira. A diarista adorava fazer perguntas óbvias, para as quais ela já sabia a resposta, só pra sondar, xeretar ou criticar veladamente. "Seu Davi, e essas garrafas todas?! (ênfase no todas) É pra jogar fora?" Também havia as perguntinhas indiscretas: "Ih! Os lençóis estão molhados, Seu Davi, posso botar pra secar?" Ou até achados arqueológicos: "Seu Davi, achei esse brinco lá embaixo do sofá." Certo dia, Davi acorda com a cabeça explodindo da ressaca, depois de uma noite tumultuada com briga por ciúme seguida de reconciliação com direito a sexo selvagem no fim. O saldo da noite foi bom, mas a ressaca péssima. Então Janete sai do quarto trazendo na ponta dos dedos uma calcinha de renda que estava jogada sobre o abajur. "Seu Davi... "Antes que ela continuasse, ele interrompe, seco, deixando claro que o próximo passo seria um cruzado no queixo: "Deve ser da minha mãe!" Encarando fixo Janete, esperando alguma reação ou comentário. Ela percebeu que naquele dia deveria evitar as gracinhas "Vou botar no cesto."
As queixas dele, no entanto, não paravam por aí. De vez em quando, Davi acendia umas velas nos seus tratos incomuns com Deus e junto, no alto de um móvel, ficava o incensório. Acender incensos para Davi não tinha nenhuma razão espiritual e sim aromática. Janete, evangélica, despejava o incensório com uma cautela, como se aquelas fossem as cinzas do próprio capeta, se ele pudesse ser cremado é claro. Falta de atenção também era uma especialidade sua. Quando ela recolhia os livros da estante para tirar o pó, eles voltavam como que embaralhados por um bookmaker. Se no serviço, Janete deixava a desejar e no quesito "empatia", aí é que a coisa desandava mesmo, por que então Davi a mantivera por mais de cinco anos? "Por que era de confiança", ele respondia para si mesmo quase todo dia após verificar o resultado da faxina, para se convencer do motivo. Mas confiar não era fácil nem espontâneo para Davi. A necessidade fez com que ele, dois anos trás, se visse forçado a deixar as chaves do apartamento com ela. Naquele ano trabalhava os três turnos. Ficou rico, há quem pense, mas não. Era professor. Com a sobrecarga de trabalho via a sujeira se acumular pelo apartamento. Até então, Janete só limpava quando ele estava em casa e como Davi ficou sem folgas durante a semana, isso só acontecia um sábado por mês. Resultado: Crostas no fogão, pilhas de louça na pia, bolos de poeira, soprados pelo vento, rolavam na sala como bolas de capim seco no deserto do Arizona, deixando Davi louco. Ele sentia saudade da casa limpa no tempo da mãe. O chão era tão limpo que dava vontade de se deitar nele. Com a diarista teve que se conformar em ter que limpar os pés antes de subir na cama. Sabia que o padrão de limpeza da mãe seria inatingível até para ele próprio executar, principalmente, se quisesse ter alguma vida social em vez de se tornar um escravo da faxina. Quando Janete fazia aquela limpeza semanal "meia-boca", pelo menos, a casa ficava habitável. Davi se viu forçado a entregar a chave. Se sua mãe soubesse diria "Deixar a chave com uma estranha?! Você é louco! Depois não reclame se chegar em casa e encontrá-la vazia!" Ele não tinha escolha. Os meses se passaram e ele não dava falta de nada. Certa vez até "esqueceu" algum dinheiro sobre o móvel, para ver se sumia, mas não sumiu. Ele foi relaxando. Depois de dois anos com Janete tendo acesso ao apartamento quando ele não estava, Davi já se sentia um pouco mais seguro.
Naquela manhã, tudo transcorria normalmente. Davi queria aproveitar a folga para acordar mais tarde, porém Janete não deixou. Começou pela cozinha. Provavelmente, com raiva da pilha de louças que ele sempre lhe deixava, ela batia os pratos fazendo barulhos que lembravam um furacão. Devia ser por isso que eles ganhavam nomes femininos. Davi imaginou o noticiário: "Nessa madrugada, O Janete deixou milhares de vítimas...". Eles se cumprimentaram. Ela reclamou do ônibus atrasado e lotado, ele apoiou criticando a precariedade do transporte público. Nesse ponto eles concordavam, o que não era muito, pois todos os habitantes da cidade pensavam da mesma forma. Enquanto fazia café, Davi botou as meias na máquina. Depois, colocou-as para secar, fazendo aquelas reflexões. Em seguida se trancou no escritório/closet para corrigir algumas provas. Foi quando ouviu vozes na cozinha. Não ficou preocupado, pois com frequência Janete parava o trabalho para atender o celular, falando alto e por tempo indeterminado. Quando Janete bateu à porta, Davi também não estranhou, pois a diarista tinha esse outro mau costume de interrompê-lo. Ele foi em direção à porta, perguntado o que era e ela respondeu que era coisa rápida. Assim que ele abriu a porta, o espanto: Um homem que dava uma gravata em Janete, vira a arma que estava apontada para a cabeça dela e aponta na direção de Davi. " Não grita, nem se mexe! Faz tudo que eu mando e você sai vivo!" Davi empalidece, mas tenta manter a situação sob controle. "Leva o que quiser, sem problema, meu irmão!" Não pensou direito, mas usou "meu irmão" que não fazia parte do seu vocabulário, provavelmente, para estabelecer algum laço, criar uma afinidade com o assaltante. Seja como for não adiantou. " Eu quero o dinheiro e as joias!" Davi respondeu de pronto e solicito " Dinheiro eu tenho, mas joias não." O medo era tanto que ele ainda fez um tom de quem estava chateado por não poder satisfazer todas as expectativas do ladrão. Foi até à gaveta, na escrivaninha, e pegou o pouco dinheiro que tinha. No fundo ficou aliviado, porque não gostava de guardar nada em casa mesmo. Pagava, praticamente, tudo no cartão de crédito. Entregou o maço de notas ao ladrão que olhou aqueles trocados com desdém e empurrou Janete sem muita força. Mesmo assim ela caiu no chão e se arrastou até o armário. Em seguida o ladrão exigiu " O cofre, eu quero o cofre". Davi respondeu "Não tem cofre" O bandido se aproximou e apontou com a arma para o quadro na parede. "Não brinca comigo!". Davi pensou "Até ali, perguntas normais: dinheiro, joias, até arriscar que havia um cofre, tudo bem, mas ele sabia onde estava o cofre: atrás do quadro." Em fração de segundos, as conclusões o levam a olhar para Janete. Quem mais sabia do cofre? Ela faz cara de quem não fazia ideia de como o ladrão obtivera tal informação. "Mas se ela teve tantas oportunidades, por que só agora... o cofre! Era isso! Ela não sabia a senha e não teria como obrigá-lo a falar, se não fosse com uma arma na cabeça. Que vadia!" Voltando da reflexão, agora menos solicito e mais raivoso por sentir-se enganado, Davi argumenta "É que não tem nada dentro dele. Quando eu aluguei o apartamento, nem sabia que ele existia." Ao que o assaltante responde "Então abre!" Davi rebate "Mas, eu não lembro a senha" mentiu para ganhar tempo. Mentiu também quando falou que não havia nada no cofre. Dinheiro não havia, mas lá estava sua pistola. Guardava no cofre, pois temia que alguém a encontrasse e se machucasse. Além do que acreditava que só a usaria na hipótese de dar um tiro pro alto e assustar algum gatuno que forçasse a porta de madrugada. Em tom ameaçador, o assaltante levanta Janete do chão, aponta a arma para a cabeça da mulher e diz "Vou refrescar a tua memória, matando essa aqui. O que é que você acha?" A vontade de Davi foi falar "Duvido", mas ainda não tinha a certeza de que ela era a traidora que, naquele momento, parecia ser. Ele não podia pagar pra ver com a vida de Janete, embora aquilo fosse uma tentação. " Não me pressione que eu estou tentando lembrar" Foi em direção ao quadro e percebeu que ele estava desalinhado. Aquilo o deixou mais certo do envolvimento de Janete. Como o quadro estava torto se ela ainda não tinha arrumado o quarto? Continuou e tirou o quadro da parede, deixando o cofre exposto. Começou a girar o segredo, utilizando códigos errados. Ele se preparava mentalmente para a ação. Se não fizesse nada com certeza seria morto. Avaliou "Essa é a chance, quando eu abrir não terei muito tempo." Lembrou-se de que deixou a pistola engatilhada e destravada. Pronta para uma emergência. Era só ser rápido. Pensou que, provavelmente, após acertar o ladrão teria que atirar também em Janete, pois era de se esperar que ela o atacasse para defender o comparsa. Depois de tomar coragem, Davi utiliza o código correto e destrava o cofre. Antes que ele pudesse abri-lo, o assaltante aponta a arma para a cabeça de Davi e ordena que ele se afaste. Estava tudo perdido. Davi obedece. O homem abre o cofre e encontra arma " Quer dizer que estava vazio, herói?" Pega a pistola e a enfia por dentro da calça na parte de trás. Agora Davi tem certeza de que será o seu fim. Os dois nunca o deixariam vivo para reconhecê-los. Davi esperava também que o homem ficasse decepcionado ao ver que não havia mais nada além da arma, no cofre, porém não é o que acontece. Ele dá socos fortes no fundo do cofre de onde se solta uma chapa de metal, mostrando que havia um fundo falso. De lá o assaltante retira uma sacola. O homem agia com se soubesse o que procurava. E sabia. De posse da sacola, o homem ordena que Davi fique de joelhos de frente para a parede. Suas pernas tremem, no entanto ele obedece. Sente o cano da arma encostar na sua nuca. Pensa em rezar, mas não consegue. Até que vem o disparo. O sangue mancha a parede e respinga sobre o quadro apoiado no chão abaixo do cofre.
Davi então abre os olhos, esperando encontrar pessoas sorridentes vestidas de branco, correndo para abraçá-lo num local parecido com a Quinta da Boa Vista, mas só vê mesmo a parede coberta de um sangue escuro e viscoso. Sente um peso sobre seus tornozelos. Vira-se lentamente e olha para trás. Vê o homem caído sobre suas pernas e Janete com a pistola de cano fumegante nas mãos. Davi não entende nada. Será que ele seria o próximo a ser executado por Janete? Nesse caso, ela estaria dando um golpe no próprio parceiro de crime para se apoderar sozinha do conteúdo daquela sacola misteriosa. "Que ganância!" Mais tarde, Davi descobriria que não era nada disso. Ao ver que o patrão seria executado, a diarista só pensou em salvá-lo. Aproveitou uma distração do bandido e puxou das costas dele a arma mal presa. Atirou de olhos quase fechados, mas como a distância era muito pequena ela acabou acertando. Logo após, o disparo a polícia invade o apartamento e se deparara com a cena trágica.
Os policiais explicam ao patrão e à empregada que aquele homem estirado no escritório era o antigo morador do imóvel. A parte que Davi contou, de que o cofre já estava lá quando alugou o apartamento, era verdade. Estava vazio, parecia abandonado, mas ele estava destrancado e a senha estava dentro. Davi trocou a senha e passou a guardar sua arma ali dentro. O que Davi também não sabia, mas que os policiais explicaram, era que o tal homem havia praticado um assalto a uma joalheria e foi preso por isso. As peças roubadas na ocasião nunca apareceram. O apartamento foi revistado pela polícia e nada foi encontrado. Quem pensaria que num cofre aberto haveria um fundo falso? Depois de anos na cadeia, o ladrão saiu em condicional. Sem saber que era rastreado pela polícia, naquele mesmo dia, mais cedo, o assaltante havia entrado no apartamento e tentado abrir o cofre com a senha antiga, mas esta não funcionou, uma vez que foi trocada por Davi. Agora Davi entende o quadro torto. Tal como Janete, o ladrão não se preocupou em arrumar o quadro após devolvê-lo ao seu lugar. Enquanto isso acontecia, Janete ainda não havia chegado, pois seu ônibus a atrasou, como ela mesma havia relatado a Davi na hora do café. Quando ela chega, o ladrão ao ver a chave girar na porta se esconde para saber quem era quem no imóvel e sair na hora certa de "dar o bote". Agora as peças se encaixavam.
Mistério esclarecido, corpo retirado. Os policiais vão embora e volta a ser tudo como antes. Só Davi e Janete. "Você salvou minha vida. Não tenho como te agradecer, Janete." Nos olhos dele a gratidão era sincera. Janete responde "Não tem o que agradecer, Seu Davi, fiz o que o senhor faria por mim." Nesse momento, Davi se sentiu até culpado, pois lembrou que já se imaginava atirando na diarista. Então ela completa. " Sabe, Seu Davi, quando o assaltante mostrou que sabia do cofre, não sei por que, mas eu pensei logo naquela sua ex que usava piercing". "Isso era Janete " pensou ele. Assim que ela vai embora, ele entra no escritório e constata: O sangue da parede foi mal limpo, mas o quadro continuava torto.
FIM
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