Conto 1 - A Cor da Rosa (Adriana Vaitsman)
Autora: Adriana Vaitsman
Música-tema: Maria Gadú - Oração ao Tempo
Classificação: 13+
Sinopse: Após a morte do marido com quem foi casada por mais de quarenta anos, a sexagenária Rosa descobre, no íntimo das suas reflexões, que ainda há muito por viver, e assume suas verdadeiras vocações, paixões e desejos mais íntimos, para espanto de todos os que a cercam.
***
Tinha acabado de sair do curso de teatro. Definitivamente, teria que arrumar uma desculpa para dar aos filhos. Estudar teatro a estas alturas, para eles não seria passível de justificativa. Mas Rosa iria adiante. Tinha acabado de completar sessenta e três anos. Estava naquela idade em que podia tudo... A ampulheta do seu destino tinha sido virada, e a areia estava caindo, indicando que seu tempo estava acabando. Seria agora ou nunca. E ela decidiu que agora era a hora.
Finalmente assumira o tom prateado nos cabelos e já não se importava se surgisse uma ruguinha aqui e outra ali, assim como não ligava mais para algumas gordurinhas indesejáveis que teimavam em pular das roupas mais justas, quando as usava. Passou uma vida fazendo dieta. Fez a dieta da lua, do sol, dos carboidratos, das proteínas e do raio que o parta. A cada duas semanas, corria para o cabeleireiro, para retocar a raiz dos cabelos. Seu lema era: não fique velha, fique loira. Bobagem! Os anos passaram, e ela... Envelheceu. É o destino de todos aqueles que não morrem jovens: envelhecer.
O chato de ficar velho é que o corpo e a mente não falam a mesma língua. Mas isso só se aplica àqueles que têm o espírito jovem, como é no caso de Rosa. Há "idosos mentais" aos dezoito anos de idade, e jovens aos noventa. Ela tinha aprendido que tudo na vida é uma questão de perspectiva.
Ela ainda podia sentir o cheiro das rosas que desabrochavam na grande roseira, que ocupava a entrada da casa onde passou toda a sua vida. Primeiro, viveu ao lado dos pais, e mais tarde ao lado do marido, Guilherme, com quem tivera três filhos. Rosana, Rosemary e Roberto.
Custava-lhe desfazer-se da casa. Mas se ela queria mudanças, vender o imóvel seria a melhor opção. Ali, sempre que parava no pequeno jardim, via sua vida desfilar na sua frente. Eram tantas recordações que não cabiam no seu baú mental, e a contabilidade entre os momentos bons e ruins não fechava. E Rosa sabia perfeitamente que depois de certa idade, é preciso ficar em paz com o passado e viver o presente, do contrário acabaria sufocada pelas lembranças, tanto e de tal forma que morreria asfixiada, e ela tinha sede de vida...
Além do mais, a casa ficaria em família. Em um acerto para lá de camarada vendeu-a a Roberto, seu primogênito. Iria nascer o terceiro filho, e ele precisaria de espaço. Uma casa de vila em uma rua tranquila e particular na Tijuca valia um bom dinheiro, ela sabia. Mas a parte financeira já não lhe importava tanto. Tinha o suficiente. Uma aposentadoria como professora universitária, a pensão do marido e mais dois pequenos imóveis alugados na zona norte lhe garantiriam uma vida confortável após o falecimento de Guilherme. Na verdade teria três imóveis. Com o dinheiro da venda da casa tinha acabado de comprar um pequeno apartamento na zona sul. Os filhos protestaram, já que ela iria "se isolar" da família, segundo eles, indo morar lá.
Rosa sabia que contavam com ela para tomar conta dos netos, mas ela tinha outros planos... Tinha passado a vida sendo mãe, esposa, e nas horas vagas, professora. Recordou-se do dia em resolveu fazer o mestrado, já aos quarenta e cinco anos. Os filhos na ocasião eram adolescentes. Um sorriso se formou em seus lábios, enquanto ela se lembrava do diálogo, à mesa do jantar.
— Mas, mãe, você já tem uma matrícula no município, vai fazer mestrado pra quê? — Perguntou Rosana, com espanto.
— Como assim, pra quê Rosana? Quero lecionar pedagogia na universidade, e só tendo o mestrado para fazer o concurso, ora essa!
— Concurso? Com essa idade? Mãe, você já tem muito que fazer aqui em casa! Você já trabalha "fora"! Quem vai cuidar da casa? — Rebateu Roberto, aprendiz de machista, com pós-graduação na escola de Guilherme, o pai.
— Chega, gente! Como vocês são ridículos! A mamãe vai fazer mestrado, doutorado e o que mais ela quiser. Aqui não tem nenhum bebê, todos nós podemos ajuda-la. Roberto está com dezoito, eu com dezesseis e você, Rosana, com quase quinze. Pelo amor de Deus! — E continuou. — É por essas e outras que eu não quero casar nem ter filhos!
— Vamos parar, pessoal. Vou fazer o mestrado e está decidido! Só estou comunicando a vocês.
Mas Roberto não se deu por satisfeito.
— Quero ver o que é que o papai vai dizer disso quando ele chegar...
— Quando ele chegar eu converso com ele, ok? Quando ele chegar...
Rosa encerrou o assunto. Conversaria com Guilherme mais tarde. O marido vivia mais fora do que dentro de casa. Quase não se encontravam. No começo do casamento ela lhe compreendia as ausências, atribuindo-as à carreira de médico. Entretanto, com o passar do tempo, Rosa pôde perceber que a profissão não lhe exigia tanto assim quanto ele queria fazê-la acreditar. E alguns anos mais tarde descobriu que ele mantinha outra mulher. Uma amante, concubina, ou seja lá como se chama este tipo de relação. Outra mulher que, assim como ela, dividia sua atenção e um pouco do seu afeto. Talvez outra vítima das circunstâncias que nem ela. Ou não. Não interessava mais. O fato é que as duas tinham se cruzado algumas vezes no hospital quando Guilherme adoecera. Foi um encontro mudo, trocaram apenas olhares, carregados de significados. Rosa não lhe dificultaria a visita. Ela sabia que ambas estavam no mesmo barco, só que cada uma de um lado da margem.
O sorriso que Rosa tinha esboçado desapareceu com as lembranças que vieram de carona com as do dia em que resolvera fazer o mestrado. Respirou fundo. Com todo este turbilhão de pensamentos mal tinha reparado que havia chegado a casa. O curso de teatro era perto. Entrou na garagem e guardou o carro. Este seria o próximo a ser trocado. Não precisava de um modelo tão luxuoso. Iria trocá-lo por um carro popular, com todos os itens de conforto e segurança, mas não havia necessidade de desfilar por aí com um carro tão caro. Venderia, compraria um mais barato e dividiria a diferença entre os três filhos.
Aliás, quando ficou doente, Guilherme tratou de fazer um testamento, para evitar transtornos na partilha de bens após sua morte. Ela lamentava que a doença tivesse lhe roubado a dignidade. O marido era um homem altivo, imponente, sempre fora muito bonito e lhe deu muito trabalho no quesito mulheres. Colecionava casos amorosos, e como Rosa havia recordado minutos antes, tinha além dela, outra mulher, que tratava também como esposa, com quem não tivera filhos. Ele também a amparou no testamento. Foi constrangedor, mas ela estava lá no dia da leitura.
A morte de Guilherme fora uma tragédia anunciada. Primeiro veio o diagnóstico: um câncer linfático. Depois, o tratamento, e por fim, a aceitação do inevitável. Vê-lo preparar-se para morrer tinha sido muito difícil. Logo ele, um médico renomado, um importante cirurgião vascular, que operava artistas e celebridades, que vivia em congressos e badalações e que tinha todos os recursos materiais e humanos para se tratar, não conseguiria se curar de um câncer. Era triste de ver. Durante boa parte da sua vida conjugal, Rosa o amara. Entretanto, decepção após decepção, traição após traição, o sentimento fora substituído por uma "coexistência pacífica". E nos últimos três anos já não viviam mais como homem e mulher.
Ela transferira para os filhos o amor que um dia sentiu pelo marido, e canalizou as energias na busca de suas metas profissionais. Fez o tal mestrado com êxito, e depois, como havia planejado, passara no concurso para a universidade federal onde sonhava lecionar, e de onde há exatos dois anos, com a doença do marido, havia pedido a aposentadoria. A vida amorosa e sexual definitivamente havia ficado em segundo plano.
Esteve ao lado do marido até o fim. Cuidou dele e o acompanhou em todas as etapas da doença. Pôde constatar o quão efêmera é a existência humana, e depois do falecimento de Guilherme, resolveu que daria um novo rumo à sua vida.
A primeira providência tinha sido a mudança de residência. Depois das mudanças materiais e na própria aparência, para a qual já não dava tanta importância, viriam as principais: daria vazão a todos os seus desejos. Fazer teatro era um deles. Ainda havia outros: aprender a dançar, a andar de motocicleta, e viajar... Conhecia o velho continente, os Estados Unidos, enfim, os lugares para onde viajara acompanhando o marido ou em férias com a família, mas havia lugares exóticos que desejava conhecer... E ela iria. Estava decidida a viver tudo o que a vida podia lhe oferecer.
Entrou no apartamento silencioso e, sem querer, chutou uma das caixas que ainda estava no hall de entrada.
— Merda! Esqueci-me dessa aqui! — Reclamou. — Aquela caixa estava ali e ela ainda não tinha tido a coragem de desfazê-la depois da mudança.
Ali estavam fotos, e muitas, muitas recordações... Pegou a caixa e colocou-a no quarto onde havia feito uma sala de TV e leitura. Mais tarde cuidaria dela...
***
O dia mal havia amanhecido e Rosa já estava tomando um café na cozinha do novo apartamento. Ela e suas reflexões. Ultimamente andava repensando cada momento da sua vida. Fazia um mês e meio que estava ali. Adaptar-se ao novo bairro e a nova realidade não estava sendo fácil. Afinal, tinha passado toda a sua vida na Tijuca, mas estar perto da praia como sempre desejara tinha um valor inestimável e ela iria se adaptar. Nunca entendera o porquê de Guilherme ter passado uma vida morando na mesma casa, mesmo tendo ganhado tanto dinheiro. Preferiu investir em imóveis, e ela sabia, ainda havia a outra... Ele mantinha as duas casas. Acabou deixando dois imóveis para cada filho, um apartamento para a amante, e os outros para ela. Enfim, ele se foi, e deixou a todos bem financeiramente. Não tinha raiva nem guardava mágoas dele. Apesar de tudo, tinha sido um bom marido.
Que descanse em paz, e que eu viva de agora em diante de acordo com as minhas vontades! Pensou.
Era isso. Ela iria viver da melhor maneira possível. Não faria o papel da vovozinha tricotando na cadeira de balanço como todos esperavam.
Amava os filhos e netos. Eram quatro e tinha mais um a caminho. Rosana, com trinta e quatro anos tinha gêmeas, que já iam completar sete anos. Roberto, aos trinta e oito, tinha dois meninos, um com oito e outro com quatro anos. E agora Mariana, sua nora, esperava a tão sonhada menina. A única que não tinha filhos era Rosemary. Rosa sempre soube que ela era diferente. Nunca quisera casar e a maternidade não tinha para ela um chamado, como para a maioria das mulheres. Tinha preferido focar na carreira médica e saíra de casa assim que arrumou o primeiro emprego. Aliás, foi a única que seguiu os passos do pai. Era cirurgiã geral. Roberto era engenheiro em uma multinacional, e Rosana, advogada. Recentemente havia passado em um concurso para a defensoria pública do estado. Todos estavam bem de vida e eram independentes.
O dia seria longo. Rosa terminou o café e resolveu ir até a academia, fazer pilates. Aliás, essa era outra novidade incorporada à nova rotina. Quando mais jovem, tinha experimentado as mais variadas atividades físicas, sempre procurando manter a forma, mas não ficava muito tempo em nenhuma. Todas pareciam entediantes, e sem as dietas que fazia, eram pouco eficazes.
Ao sair da aula de pilates, resolveu passar no supermercado. Ainda não havia se acostumado a comprar itens só para ela. A casa onde vivia antes estava sempre cheia, mesmo depois que os filhos se casaram. Era Rosa quem sempre tomava conta dos netinhos quando pequeninos. Sempre que não estava trabalhando, era dela a tarefa de ficar com eles, sobretudo aos finais de semana. Os filhos precisavam relaxar de uma semana de trabalho intensa, e faziam pequenas viagens ou programas com os amigos... Só ela que parecia não precisar relaxar... Afinal, é para isso que existem as avós, ou não é?
Estes e outros pensamentos assaltavam-lhe a mente com uma velocidade impressionante. Quando se deu conta, estava na seção de vinhos. Mesmo sem entender muito do assunto, resolveu procurar um vinho tinto, seco, do qual tentava se lembrar. Sabia que era português e o nome estava na ponta da língua, mas ela não lembrava... Talvez se visse o rótulo...
— Rosa?
A voz para onde ela dirigiu o olhar parecia-lhe levemente familiar, mas ela não reconhecia bem... Quando finalmente fitou o sexagenário a sua frente, custou a reconhecê-lo. Não precisou de muito esforço para trazê-lo à memória.
— Paulo?
— Meu Deus, você não mudou nada!
Abraçaram-se. Olharam-se nos olhos. Ambos tinham envelhecido. Mas a essência estava ali...
— Você está ótimo, Paulo!
— Olhe pra você, Rosa. Continua linda!
— Agradeço o elogio, mas na minha idade uma mulher não fica linda. No máximo dizem que ela está bem...
E sorriram.
— Bobagem. Os cabelos grisalhos lhe caíram muito bem. É sério, Rosa.
— Obrigada. De verdade.
Fazia tempo que um homem não lhe elogiava. Ela já nem sabia há quanto tempo...
De repente, o silêncio tomou conta dos dois. Queriam perguntar como andava a vida um do outro... O que tinham feito nos últimos quarenta e quatro anos... É, fazia este tempo todo que não se viam. Tinham namorado por dois anos, com direito a noivado e um quase casamento... Rosa, apegada aos pais como era, terminou o romance meses antes de se casarem, porque ele tinha entrado para a marinha e seria transferido. Ela não queria viajar pelo país e nem morar em vários estados, como era o destino das mulheres dos militares. Na época, ambos tinham sofrido muito com o rompimento, porque se gostavam. Ele nunca conseguira entender as razões de Rosa...
A vida seguiu seu curso, e poucos meses depois, iniciara o namoro com Guilherme, com quem ficara casada por quarenta e dois anos. O destino não poderia ter sido mais surpreendente, colocando-os frente a frente naquele supermercado depois de tanto tempo. Provavelmente ele deveria estar casado àquelas alturas, e cheio de filhos e netos. Paulo era apenas um ano mais velho que Rosa.
Ele, visivelmente constrangido, foi o primeiro a quebrar o silêncio e dar o primeiro passo. Afinal, não poderia sair dali sem saber tudo o que acontecera a Rosa durante estes longos anos... Aliás, ao vê-la, parecia-lhe que todo aquele tempo não tinha passado, e que tinham se visto ontem... Tentou puxar uma conversa mais cotidiana, antes de perguntar o que realmente desejava saber.
— Gosta de vinho?
— Não sei... Acho que sim... — Respondeu Rosa, confusa.
Ela gostava? Não sabia... Ás vezes bebia vinho com Guilherme, só para acompanhá-lo. Não era conhecedora da bebida e nem sabia se gostava ou não de fato. Paulo achou graça da resposta.
— Como assim, não sabe se gosta?
— Na verdade, sempre bebi acompanhando Guilherme, meu marido, mas nunca parei para pensar se gosto ou não de vinho. Bobagem minha ter parado aqui nesta seção. — Respondeu, visivelmente constrangida.
Então ela tinha um marido? Onde será que ele estaria naquele momento? Pensou Paulo. Quem sabe ele até estivesse ali, no supermercado.
—E onde ele está agora? Seu marido...
— Ele faleceu há oito meses.
— Desculpe-me, Rosa. Sinto muito.
— Tudo bem. Eu estou bem com isso... — Apressou-se em esclarecer. E num momento de rara coragem, resolveu perguntar a ele:
— E você? Sozinho no supermercado? Sua esposa não veio?
— Estou separado há mais de dez anos. Minha ex-mulher casou-se novamente e temos uma filha de 29 anos, que mora na Espanha. Eu não me casei de novo. — Despejou Paulo, querendo dar a ela todas as informações sobre ele.
Então ambos estavam livres? Não podiam acreditar...
A conversa na seção de vinhos tomou rumos inesperados. Ela ficou sabendo que ele tinha feito carreira na marinha e chegara à patente de capitão. Estava na reserva havia cinco anos, e para preencher o tempo, praticava esportes, viajava e lecionava matemática em uma organização não governamental que atendia jovens em situação de risco.
Ele a havia convidado para um café na lanchonete que ficava em frente ao supermercado e ela aceitara, não sem antes aceitar também a ajuda dele para escolher um vinho. Ficou combinado que jantariam qualquer noite dessas para beberem juntos. Trocaram telefone e e-mail. Aí sim, ela iria saber se gostava ou não... De vinho.
Rosa passou o resto do dia com um brilho diferente nos olhos. Rever Paulo, ainda que rapidamente, fora especial. Há muito tempo não ficava tão animada com alguma coisa.
***
A aula de teatro a surpreendeu naquele dia. Teve a oportunidade de colocar para fora alguns sentimentos reprimidos nos exercícios que havia praticado. O professor a encorajava a se soltar cada vez mais. Após cada aula semanal de teatro, Rosa ia relaxando e deixando vir à tona sua essência. Era uma mulher sensível, perspicaz e tinha vontade de viver. Ainda havia muitos sonhos a realizar. Muitas viagens a fazer... E ela tinha pressa...
A sexta-feira havia chegado. Rosa mal tinha visto a semana passar. Tinha tido tantos afazeres que nem parecia que era aposentada. Foi até o quarto e ligou o computador. Precisava checar os e-mails. Entre os inúmeros anúncios virtuais, localizou um e-mail que lhe chamou a atenção. Era de Paulo. Seu coração bateu mais forte. A mensagem datava do mesmo dia em que tinham se reencontrado. Já fazia dois dias...
De: .br
Para: .br
Assunto: REENCONTRO FELIZ
Querida Rosa,
Não sou muito bom com as palavras. Como você sabe, sou um homem das ciências exatas, mas vou tentar. Estou escrevendo porque talvez assim seja mais fácil dizer certas coisas do que falando pessoalmente.
Você não imagina como fiquei feliz em revê-la. Parece que todos esses anos ficaram para trás. Nosso reencontro casual nos trouxe muitas recordações.
Infelizmente o tempo e o local não permitiram esticarmos a conversa. Quero saber se você está tão bem quanto aparenta, e se é feliz.
Então, janta comigo no próximo sábado? Caso queira me ver, é só ligar. Você tem o meu número. Espero que aceite meu convite.
Um abraço,
Paulo
Rosa parecia uma adolescente. Leu e releu o e-mail. Ela sabia que ele tinha despertado nela o mesmo sentimento. Talvez fosse saudosismo, talvez carência, ou uma empolgação pelo reencontro. Não sabia definir. Só sabia que iria aceitar o convite e jantar com ele. Queria vê-lo!
Pegou o telefone e ligou. Pensou em desistir no terceiro toque, mas felizmente não fez isso. Ele atendeu logo em seguida. O jantar ficou marcado para o dia seguinte. Era sábado. Jantariam na casa dele. Ela levaria o vinho. O mesmo que ele tinha ajudado a escolher.
***
No sábado de manhã ela resolveu que iria ao salão dar um corte no cabelo, e também quis comprar um vestido novo. Iriam jantar no apartamento de Paulo, mas ela queria estar de bem com a sua aparência, embora ultimamente tivesse parado de lutar contra os sinais do tempo.
Sentou-se na cadeira do cabeleireiro. O rapaz, após a conversa de praxe sobre o tempo, a novela, e o custo de vida, perguntou:
— O de sempre, Dona Rosa?
— Não, querido. Hoje quero mudar o corte. Faça um Chanel com as pontas mais longas.
O rapaz estranhou. Há quase dez anos Rosa era sua cliente, e nunca tinha mudado o corte de cabelo. Usava-o sempre na altura dos ombros, cortado em camadas e sem franja. A única novidade é que há cerca de dois anos havia mudado o tom de loiro e incorporado o grisalho à sua aparência. Ela lembrava muito a Meryl Streep em "O diabo veste Prada"...
Ele cumpriria o desejo da sua cliente. Faria um corte Chanel em Rosa. E assim, tesourada após tesourada, deixou-a ainda mais parecida com a atriz que admirava.
Rosa adorou o corte e a leveza que o Chanel assimétrico deu à sua aparência. Ela achou graça quando Thiago, o cabeleireiro, disse que ela estava a cara da Meryl Streep. Isto para ela era um elogio. Afinal, também adorava essa atriz.
Saiu do salão feliz com o resultado do corte, e antes de pegar o metrô até Copacabana para voltar para casa, resolveu ver as vitrines das lojas da Praça Saens Peña, onde fora às compras tantas vezes. Comprou o tal vestido novo e já estava quase de saída quando encontrou uma antiga vizinha dos tempos de Tijuca.
— Rosa, há quanto tempo! Como é que você está?
— Tudo bem, Vera Lúcia. E você? Como vai sua mãe? — Perguntou por educação.
— Você não soube? Mamãe caiu, fraturou o fêmur, e blá, blá, blá...
Rosa na mesma hora tinha se arrependido de ter perguntado. A mulher levou os quinze minutos seguintes detalhando o boletim médico da mãe. Era daquelas pessoas que só falavam em acidentes, doenças, assaltos e desgraças em geral. O tédio só podia estar estampado em sua fisionomia, porque a mulher percebeu:
—Desculpe-me Rosa, devo estar lhe aborrecendo com essa conversa, não é mesmo? Coitadinha... Viúva há pouco tempo, ainda no período de luto, e eu despejando os meus problemas em cima de você... — Refletiu Vera, tornando pior o que já estava ruim.
— Não precisa se desculpar. Imagino que a doença de sua mãe e todos os outros problemas que você está tendo não sejam fáceis de administrar. Às vezes, só precisamos conversar um pouco com alguém.
— É verdade, Rosa. Mas não com alguém que ainda está de luto. Desculpe-me novamente.
— Já faz tempo que Guilherme faleceu. Estou bem. — E não, não estou "de luto". Que tipo de pessoa passa o resto da vida de luto hoje em dia? Pensou Rosa.
— Está gostando do novo bairro? Você foi para Copacabana, não é mesmo? — Continuou a mulher, com a sua inquisição.
— Na verdade para o Bairro Peixoto, fica dentro de Copacabana. É ótimo.
— Seu filho está morando na casa em que vocês moravam, não é mesmo? Eu os vejo sair e chegar todos os dias. Sua nora já está para ter o bebê... E aí? Está animada para cuidar do novo netinho?
A conversa invasiva e desagradável da vizinha já estava indo longe demais e tomando proporções estratosféricas. Ela tinha que cortar aquilo o quanto antes.
— Foi um prazer revê-la, Vera Lúcia, mas agora tenho que ir. Estou com um pouco de pressa.
— Tudo bem, Rosa. Apareça lá em casa para um café. — E continua, sem trégua. — Ah, já ia me esquecendo: às quartas-feiras temos um grupo de oração. Também nos reunimos para fazer artesanato uma vez por semana. Você será bem-vinda por lá. Ajuda a passar o tempo.
— Fico muito grata pelo convite, Vera Lúcia, mas agora morando longe fica mais difícil. Quase não tenho vindo à Tijuca... Mas mesmo assim, obrigada. Agora preciso mesmo ir.
— Tudo bem, querida. Apareça...
Deus do céu! A inquisição daquela mulher parecia não conhecer limites. Rosa, feliz com o novo visual e animada com a noite que iria ter pela frente, quase tinha ficado estressada com a conversa baixo-astral de Vera Lúcia. Quase, por que naquele sábado, nada nem ninguém iriam roubar sua paz de espírito.
Então era isso o que tinha sido destinado às mulheres da sua idade? Cuidar dos netinhos, grupos de oração e artesanato? Não que isso fosse negativo ou depreciativo. Aliás, gostava de tudo isso, exceto a parte do grupo de orações, pois não era religiosa. Mas assustava-lhe a perspectiva de ter que viver à sombra da sua recente viuvez, como se nada mais lhe fosse permitido, pelo simples fato de ter perdido o marido e por ter envelhecido. Ela certamente enlouqueceria se tivesse que viver assim. O tempo todo a frase "ajuda a passar o tempo" ficou martelando na cabeça de Rosa. Então era isso? Restava às pessoas mais velhas apenas "passarem o tempo"? Seria uma espécie de pacto com a morte? Segundo o pensamento dessas pessoas, depois de certa idade o que resta é matar o tempo, até que o tempo mate você...
Solteirona. Virgem. Esse era rótulo que Vera Lúcia recebera, e que ostentava como um troféu. Conheciam-se desde o Instituto de Educação. Estudaram juntas. Foram amigas um dia, quando jovens. Passaram uma vida inteira sendo vizinhas. A amiga nunca havia se casado, mas tinha tido um noivo e uma decepção amorosa. Desde então, nunca mais quisera dar chance a um novo relacionamento, e sua mentalidade tinha fixado residência nos anos sessenta.
Continuando seu trajeto para fora da galeria onde estava deparou-se com uma loja de lingeries. Entrou. Naquele momento se deu conta de que nunca havia entrado numa loja dessas. Suas roupas íntimas eram sempre compradas em lojas de departamentos. Seu mundo era bege. Há muitos anos só comprava peças básicas e confortáveis. Hoje, mesmo sabendo que não iria ter coragem de despir-se para outro homem que não fosse o marido, queria ver-se no espelho e se sentir bem. Iria ousar.
— Por favor, querida, eu gostaria de ver aquele conjunto de renda, na cor vinho... — Pediu a uma jovem vendedora que não devia ter mais de vinte anos.
— É para presente? Qual o manequim? — Perguntou a moça.
— Não, querida. É para mim. — A vendedora ergueu a cabeça, arqueou as sobrancelhas e a mediu de cima a baixo. Seu ar de deboche e o sorrisinho mal disfarçado no canto dos lábios não deixaram dúvidas de que a jovem achava ridículo uma mulher da sua idade comprar uma roupa íntima que não fosse bege. — Só um minuto. Tenho que ver se temos o seu número. — Disse, em tom de desprezo.
Em outros tempos ela teria saído da loja correndo, sentindo-se constrangida. Mas hoje, ela estava definitivamente empenhada em quebrar paradigmas. Afinal, tinha direito a um mundo com mais cores e beleza, ora essa.
A vendedora retornou em poucos minutos com o conjunto em mãos. Era uma lingerie delicada, de renda. A calcinha e o sutiã não eram minúsculos e pareciam confortáveis. Serviria nela e ficaria sexy, elegante e nada vulgar.
— Vou levar.
— Ok. Vou tirar a notinha. Por favor, pague diretamente no caixa.
A vendedora sorriu, sem graça, e antes que saísse do seu campo de visão com a peça em mãos para levar até o caixa, Rosa fez sinal para que ela se aproximasse e em tom confidencial lhe disse, baixinho:
— Obrigada, querida, por ter me atendido tão bem, e com tamanha boa vontade... — Ironizou. — Sabe como é, hoje tenho um encontro daqueles... A noite vai ser quente... — Disse, de propósito. Se a intenção era chocar, ela foi bem-sucedida, porque a moça girou sobre os calcanhares e saiu sem olhar para trás.
Rosa sorriu internamente. O preconceito contra as mulheres mais velhas estava estampado todos os dias em situações cotidianas como essas e ninguém se importava. Mas ela decidiu que no que dependesse dela, essa situação seria revertida.
***
Já eram sete da noite e Rosa iria começar a se arrumar. O telefone tocou insistentemente. Ela foi atender. Era Rosana.
— Mãe! Nossa, que demora em atender! Pensei que você não estivesse em casa! Olha, eu estou passando aí daqui a pouco para deixar a Giovana e a Beatriz, porque o Marco quer ir jantar e não estamos a fim de levar as crianças. Tudo bem pra você? — Perguntou, depois de ter despejado a situação já arquitetada no colo de Rosa sem chance de defesa. Ela respirou fundo. Nunca tinha dito não aos filhos, ainda mais quando se tratava dos netos.
— Por que não me avisou antes?
— Decidimos agora. Você já tem algo programado? — Perguntou, incrédula. Afinal, desde que os netos nasceram, contavam com Rosa para ficar com as crianças, e ela estava sempre disponível. Só que hoje seria diferente...
— Infelizmente hoje não poderei ficar com as meninas...Vou sair...
— Vai sair? Como assim, mãe? Vai aonde? Posso saber?
— Querida, vou jantar fora. É isso.
— Onde? Com quem?
Rosa pensou que em encarnações passadas Rosana tinha pertencido à Santa Inquisição, não era possível. Aquilo era muita invasão de privacidade... Se fosse o contrário, certamente ela não iria ser tratada com a mesma tolerância... Armou-se de paciência, respirou fundo e respondeu:
— Querida, eu vou jantar fora com alguém que não vejo há muito tempo. É só o que tenho a dizer.
— Vai jantar com um homem, mãe? Você acha que está em idade para ter um encontro? Não faz nem um ano que o papai morreu, mãe!
Santo Deus! Paciência tinha limite e a de Rosa tinha se esgotado.
— Rosana, vou jantar com um amigo que reencontrei e já não via há quarenta anos. Não tenho motivos para esconder isso de você. Não fiz pacto de morte com Guilherme. Estou viva, muito viva, e desejo aproveitar a vida, ok? Sou adulta, pago os meus impostos e não devo satisfações a ninguém. Nem mesmo a vocês, estamos entendidas?
Alguns segundos de silêncio depois veio a resposta.
— Tudo bem, mãe. Bom jantar. A gente se vê. Beijos.
— Obrigada, querida. A gente se vê.
Sua mãe definitivamente só poderia ter enlouquecido. Ultimamente estava muito estranha... Ela pensara que depois da morte do pai, Rosa ficaria mais próxima dos netos, e dedicaria seu tempo a cuidar das crianças, mas via que estava enganada... Será que sua mãe tinha arrumado um daqueles garotões que namoram as "coroas" para ficarem com o dinheiro delas? E se esse tal amigo fosse um golpista? Mas ela tinha dito que já não o via há quarenta anos... Então não poderia ser um garotão... Estava confusa. Decidiu que iria ligar para os irmãos e dividir sua preocupação com eles... Era isso que faria...
***
Na hora combinada Rosa havia chegado ao endereço de Paulo. Seu coração parecia uma locomotiva. Definitivamente ela estava nervosa. Tinha ido de táxi, porque iriam beber vinho. Bebida e direção não combinavam.
Ele a esperava na portaria. Também estava visivelmente nervoso. Trocaram olhares. Abraçaram-se como bons amigos. Subiram pelo elevador conversando amenidades. Paulo morava a apenas dois quarteirões de Rosa.
O apartamento era grande e meio solitário. Não se via muitos traços acolhedores no local. A decoração era austera e muito escura. Era tudo muito organizado, cada coisa em seu lugar. Sentaram-se. Ele lhe apresentou o imóvel, em uma espécie de tour guiado. Rosa havia evitado o quarto dele, propositalmente. Entrar ali a deixava sem graça, apesar de ele ter feito o possível para mantê-la leve e relaxada. Depois de meia-hora de conversa, foram até a cozinha, colocar o jantar no forno. Ele tinha feito um bacalhau espiritual. Esse era o nome do prato.
— Meu Deus, Paulo! Não sabia que você tinha dotes culinários! — Brincou Rosa.
— É verdade, querida. Tantos anos afastados e já não sabemos quase nada um do outro...
Rosa ficou sem graça. Mas devia admitir, era verdade. Desconhecia não só estes aspectos como vários outros, relacionados a ele. De repente um pensamento lhe assaltou a mente: e se ele fosse um homem violento? Um maníaco? Um serial killer? Ela estaria em perigo... Bobagem. Deixaria estes pensamentos de lado. Paulo percebeu a tensão em sua expressão.
— Ouça, Rosa. Não nos vemos há mais de quarenta anos, mas continuo o mesmo. É claro que estou um pouco menos em forma, com menos cabelos, mas sou o mesmo. — Brincou para descontrair. — Não se preocupe. Somos maduros, adultos e não vai acontecer aqui nada que você também não queira. Isso tranquiliza você?
Rosa assentiu. Falar sobre eles nesse tom a desconcertava, mas tinha sido fundamental, para que ela relaxasse e se permitisse curtir a noite.
O jantar foi maravilhoso. Ele realmente se superou. Quase um "Masterchef". É claro que por trás disso tinha uma diarista que cuidava da casa e tinha dado uma mãozinha com os ingredientes. Paulo tinha apenas finalizado, mas não importava. Estava ótimo.
O vinho também tinha sido uma ótima escolha. Naquela noite, Rosa descobrira que gostava de vinho... E também das outras coisas que vieram depois...
Para a sobremesa, uma torta damasco com queijo brie, tinha fechado com chave de ouro o cardápio. Rosa precisaria retribuir à altura, e já estava pensando no prato que faria para impressioná-lo em uma próxima vez.
O vinho e o clima acolhedor entre os dois acabaram levando a conversa para o passado...
— Diga-me, Rosa. Por que você me deixou? Nós nos entendíamos tão bem... Fiquei desolado. Levei um bom tempo para me recuperar... — Disparou Paulo, pegando-a de surpresa.
Rosa sabia que chegaria o momento em que teria que responder àquela pergunta. Nem ela mesma sabia o porquê. Hoje, depois de tudo, tinha visto que havia cometido alguns erros, e deixar Paulo tinha sido um deles. Entretanto, lamentar o que não tinha volta não produziria nada de bom. Se a vida os tinha colocado cara a cara novamente em uma prateleira de supermercado, ela trataria de aproveitar. Respondeu a ele com toda a sinceridade que podia.
— Paulo, eu era muito jovem e imatura. Era tão agarrada aos meus pais que não conseguia enxergar um palmo além dos muros da casa onde cresci e vivi até o começo deste ano... Por isso, fiquei aterrorizada quando você entrou para a Marinha para fazer carreira militar. Sabia que como sua esposa eu teria que lhe acompanhar para onde quer que você fosse, e a ideia me deixava em pânico. Não era essa a vida que eu queria. Queria ter filhos, queria estar perto da família... No final das contas nada aconteceu como eu planejei...
— Fico triste em saber disso, Rosa, afinal você sacrificou muitas coisas para realizar seu projeto de vida. Seja sincera: você era feliz com seu marido?
Ela respirou novamente, fechou os olhos e balançou a cabeça em negação...
— Eu sabia. — Disse ele. — Ou pelo menos intuía.
— Na verdade, Paulo, nada saiu como planejei. Meus pais morreram quando eu era recém-casada, em um acidente de carro, indo para Minas Gerais visitar minha tia Dorinha.
— Eu sinto muito mesmo. Gostava muito deles. — Interrompeu Paulo, visivelmente chocado.
— Tudo bem, Paulo. Já faz muito tempo... Faz mais de quarenta anos...
Uma lágrima rolou da face de Rosa. Falar sobre como os pais tinham morrido ainda doía. Era uma ferida que nunca cicatrizaria, por mais tempo que passasse. Paulo a abraçou. Beijou-lhe a testa. Ela ainda tinha mais a dizer. Ele percebeu e a deixou falar. Afinal, eram muitos anos... Havia muito a ser dito...
— Quanto ao casamento, fui feliz no começo... Tivemos três filhos maravilhosos. Tenho quatro netos e mais um a caminho. O saldo dessa história foi positivo...
— Mas...
Ele deu a deixa para que ela continuasse a falar.
— Mas Guilherme não parava em casa. Era médico e a profissão lhe ocupava a maior parte do tempo. Eu o dividia com os pacientes, com o consultório e... Com outra mulher. Ele tinha uma amante. Era praticamente outra esposa, mas não sei por que razão não tiveram filhos. Senão, eu poderia afirmar que Guilherme tinha duas famílias, que levava uma vida dupla. Por isso, quando os filhos cresceram um pouco, voltei a trabalhar, fiz um mestrado e consegui lecionar na universidade federal.
— Eu não fazia ideia, Rosa... E seus filhos, sabiam?
— Só souberam depois que ele faleceu. Ele deixou um testamento e a incluiu. Ela participou da leitura do documento...
— Meus Deus! Eu sinto muito Rosa... — Disse Paulo, demonstrando toda a sua perplexidade diante dos fatos apresentados.
— Está tudo bem, Paulo. De verdade. Eu já superei. Fiquei chocada quando descobri, há mais de vinte anos, mas agora isso não tem a menor importância...
— Eu imagino o quanto deve ter sido difícil pra você na época,...
— Foi sim. Muito difícil, mas eu não quis deixá-lo por causa dos filhos. Não queria dar a eles esse desgosto. Preferi ficar casada e fingir que não sabia de nada, como fazem milhares de mulheres na minha situação. Aproveitei a boa situação financeira que tínhamos e procurei evoluir pessoalmente e profissionalmente. Bem, aqui estou...
Paulo ficou impressionado com a atitude de Rosa. Ela era uma mulher incrível. Sempre soube disso. Ela era tão diferente de Sônia, sua ex-mulher...
Rosa também queria saber mais sobre ele, e foi a sua vez de perguntar:
— E você, Paulo? Fale-me de você nestes últimos quarenta anos...
— Não há muito que dizer, minha querida. Casei-me com Sônia somente quatro anos depois que você me deixou... Tivemos apenas uma filha, Cecília. O casamento foi um desastre. Ela era dessas mulheres que são profissionais em se casarem com militares... Sua personalidade é complicada. Uma verdadeira montanha-russa emocional. Há dez anos me libertei de suas chantagens emocionais, depois que nossa filha cresceu e foi estudar na Espanha. Depois da partida da menina, o casamento ficou insustentável. Tomei coragem e pedi o divórcio. Ela casou-se novamente pouco tempo depois, com um homem muito mais velho, também militar da reserva. Hoje, para meu sossego, vive com ele em Natal.
— Foi tão ruim assim?
— Foi. Péssimo. Nunca mais me casei e nem fiquei com ninguém a sério.
Sabiam que aquela conversa seria definitiva. Estavam acertando as contas com o passado, passando a vida a limpo. Estavam tendo uma nova chance...
O jantar e a conversa tinham sido regados a vinho e boa música. Naquele momento, o destino estava dando um empurrãozinho e começaram os acordes de It's now or never, na melodiosa voz de Elvis. Ele a convidou a dançar... Levantou-se e foi até o centro da sala de estar, estendeu-lhe as mãos e puxou Rosa para si.
It's Now Or Never
It's now or never/come hold me tight/Kiss me my Darling/be mine tonight/Tomorrow will be too late/it's now or never/My love won't wait
When I first saw you/with your smile so tender/My heart was captured my soul surrendered/I'd spend a lifetime/waiting for the right time/Now that your near/the time is here at last
It's now or never/come hold me tight/Kiss me my Darling/be mine tonight/Tomorrow will be too late/it's now or never/My love won't wait
Just like a willow/we would cry an ocean/If we lost true Love/and sweet devotion/Your lips excite me/let your arms invite me/For who knows when/we'll meet again this way
It's now or never/come hold me tight/Kiss me my Darling/be mine tonight/Tomorrow will be too late/it's now or never/My love won't wait
É agora ou nunca
É agora ou nunca/Venha e me abrace firmemente/Me beije minha querida/Seja minha esta noite/Amanhã será muito tarde/É agora ou nunca/Meu amor não pode esperar
Quando eu te vi/Com seu sorriso tão terno/Meu coração foi capturado/Minha alma se rendeu/Eu gastei uma vida/esperando pelo momento certo/Agora que esta próxima/O tempo está acabando
É agora ou nunca/Venha e me abrace firmemente/Me beije minha querida/Seja minha esta noite/Amanhã será muito tarde/É agora ou nunca/Meu amor não pode esperar
Certo como um salgueiro/nos iríamos chorar um oceano/se perdêssemos o amor verdadeiro/e a doce devoção
Seus lábios me excitam/Deixe seus braços me convidar/Pois quem sabe quando/Nós nos encontraremos uma outra vez
É agora ou nunca/Venha e me abrace firmemente/Me beije minha querida/Seja minha esta noite/Amanhã será muito tarde/É agora ou nunca/Meu amor não pode esperar
Dançaram na sala do apartamento de Paulo. Ele a beijou. Ela retribuiu. Foi um beijo tímido, carregado de significados. Paulo fez amor com Rosa. O sexo na maturidade era algo raro e precioso. Não havia a pressa dos jovens amantes. O tempo estava a favor deles. A forma física e a performance já não importavam tanto. A sedução não se dava pela beleza, nem pela atração irresistível que arrebata os mais jovens. O sexo na terceira idade era algo especial, dessas coisas raras que só os amantes experientes têm o privilégio de conhecer.
Há três anos Rosa não fazia sexo, desde que Guilherme adoecera. No final, ela e o marido eram apenas bons amigos, mais nada.
Foi especial. Ela e Paulo já tinham se beijado antes, quando eram namorados, mas nunca tinham tido nenhum tipo de intimidade maior. O único homem com quem tinha feito sexo havia sido o marido. Despir-se para Paulo havia sido difícil, mas ele tinha sido hábil e paciente. Dormiram juntos.
Acordar na casa de Paulo e tomar café com ele no dia seguinte tinha sido outra novidade.
***
Naquela noite Rosana tinha ligado para cada um dos irmãos, para contar que a mãe tinha ido jantar fora com um desconhecido. Cada um teve uma reação diferente. Rosemary achou ótimo que a mãe estivesse se divertindo, mas Roberto tinha ficado preocupado.
— Não acredito Rosana! Temos que descobrir quem é o cara. Vai que a mamãe está sendo seduzida por um desses golpistas. Digo isso porque na idade dela é só este tipo de homem que ela vai arrumar. — Disse Roberto.
— Exatamente o que eu penso, irmão. Imagina! Um namorado nessa idade! Se já está difícil uma mulher mais jovem arrumar um homem, que dirá uma sexagenária....
— Já falou com Rosemary?
— Ah,sim, falei. Liguei para ela antes de falar com você.
— E o que ela achou?
— Você não arrisca um palpite? Ela achou ótimo! Mas também, você sabe, Rosemary não é parâmetro... Depois que assumiu ser gay e viver com outra mulher, nada mais me surpreende.
— Verdade. Rosemary é nossa irmã, nós a amamos, mas sabemos que pessoas com a opção sexual dela não têm valores morais. Levam uma vida promíscua... Não que eu seja preconceituoso...
— Sim, Roberto. Também não sou preconceituosa... Mas realmente pensamos muito diferente dela.
Decidiram na conversa que iriam marcar uma reunião em família, para conversar com a mãe. Precisavam saber quem era o tal amigo misterioso. Iriam falar com Rosa.
***
Dias, semanas e meses se passaram. Rosa e Paulo nunca mais tinham se desgrudado um do outro. Seus filhos a pressionaram a apresentá-lo à família, mas Rosa fez questão de manter a identidade dele preservada, pois achava que os filhos estavam sendo invasivos demais. Por isso, durante os últimos quatro meses ela o manteve fora do convívio familiar, mesmo com eles fazendo convites o tempo todo.
Ela queria dar aos filhos uma valiosa lição: todo mundo tem direito à felicidade, não importa a idade. Então, eles que ficassem preocupados mais um pouquinho... Isso seria fundamental para que ela impusesse o respeito necessário.
O fim do ano estava próximo e ela iria tomar parte em uma encenação, com o seu grupo de teatro. Tinha mantido em segredo também esta atividade. No começo até pensou em contar, mas depois, decidiu que não devia satisfações a eles.
Quase os matou do coração, ao entregar o convite para a peça. Faria o papel de uma freira na encenação. Quando foi visitar a netinha que tinha nascido há pouco tempo, aproveitou para convidar Roberto, que ficou perplexo diante de mais essa ousadia da mãe...
— Não entendi bem, mãe. Você está me convidando para uma peça de teatro?
— Sim, Roberto. Só que eu estarei atuando nela...
— Essa é uma coisa que você nos escondeu, mãe? Estava fazendo aulas de teatro?
— Sim, há alguns meses...
— Por que não nos disse?
Rosa armou-se de coragem e paciência e resolveu expor os seus motivos:
— Sabe o que é, Roberto? Eu simplesmente resolvi viver a minha vida, e vocês estavam querendo me controlar todo o tempo.
— Nos preocupamos com você, mãe. Nós te amamos. É só isso.
— E achavam que me colocando em um apartamento, sentada em uma cadeira de balanço, tomando conta dos netinhos, me bastaria, até que a morte me encontrasse? Vocês acham que vão ficar jovens para sempre? Ou que as pessoas depois de certa idade se tornam incapazes de gerenciar suas próprias vidas? O que é que se passa na cabeça de vocês?
— Não é nada disso, mãe! Nós apenas nos preocupamos com você! Está sendo injusta!
— Ouça, querido, amo vocês todos, mas não vou deixar que conduzam a minha vida. Ainda me sinto jovem, sou lúcida, independente, e vamos ficar todos bem se vocês me deixarem tomar as minhas próprias decisões. A única coisa que tem que haver entre nós é respeito. — Retrucou Rosa.
Rosana não teve uma reação muito diferente, mas no final os três estavam sentados com suas respectivas famílias na plateia, no dia da apresentação da peça. Até Antônia, a netinha caçula, o mais novo membro da família estava lá, no colo de Mariana. Rosa não poderia estar mais feliz.
Paulo também tinha ido e os tinha visto chegar e cumprimentar Rosa, que estava indo para o camarim se arrumar, mas não se sentou com eles.
A peça era uma comédia e Rosa teve uma atuação maravilhosa. Os filhos estavam orgulhosos dela. E Paulo, mais ainda. No final, ela foi se trocar e encontrar com a família e com o namorado, na entrada do teatro. Ela os apresentou e não pôde deixar de notar a surpresa estampada no rosto de todos, ao ver que ele era um simpático homem da sua faixa etária, e não aparentava ser um golpista ou algo do gênero. Combinaram um jantar para comemorar a apresentação da mãe. Seria num restaurante próximo. Iriam primeiro, pois Paulo prometeu levá-la ao encontro deles em poucos minutos.
Estavam no restaurante Rosana, Roberto e Rosemary, com seus respectivos cônjuges e filhos, aguardando pela mãe. No fundo, estavam felizes em ver como Rosa tinha conduzido a sua vida após a morte do pai.
Na verdade, Rosana e Roberto tinham ficado envergonhados pela maneira como se comportaram quando Rosa começou a viver do jeito que desejava. Desde que se entendiam por gente tinham passado a vida querendo conduzir Rosa de acordo com a visão que tinham herdado do pai. Mas isso não importava mais...
De repente, a conversa fora interrompida pelo som de uma motocicleta se aproximando. Era uma moto custom, daquelas grandonas e barulhentas. Um casal estava sentado nela e a perplexidade que se instalou na fisionomia deles ao ver que eram Rosa e Paulo que estavam descendo da moto foi impagável. Rosa desceu, tirou o capacete e dirigiu-se à mesa onde estava sua família, acompanhada por Paulo. Isso mesmo. Ele era motociclista e pertencia a um grande clube.
Seus netinhos adoraram a novidade, e mesmo sob o olhar de reprovação dos pais, fizeram Paulo prometer que os levaria para passear qualquer dia desses. Ninguém se atreveu a fazer nenhuma observação, pois tinha ficado acertado que iriam parar de interferir na vida da mãe. Rosemary não se conteve e disse em tom de brincadeira:
— Ora essa, temos uma mãe que é uma vovó radical! Adorei a novidade!
— Só falta ela fazer uma tatuagem e colocar um piercing. — Disse Roberto, mal se contendo.
— Olha, querido, o piercing vai ficar para depois, mas a tatuagem eu já fiz. E exibiu a Rosa pintada em cores no ombro direito.
Rosana quase desmaiou, mas olhando mais de perto a tatuagem constatou: até que a rosa era bonita.
Paulo em pouco tempo já tinha conquistado a todos, que ouviram atentos as suas explicações sobe motos, motoclubes, e todo um universo que era novidade para eles. Espantaram-se ao ouvir que o motoclube era um lugar frequentado por médicos, magistrados, professores, engenheiros e gente idônea, com uma vida comum como qualquer um deles, mas que tinham uma paixão pelas duas rodas... E que as caveirinhas que estampam as camisas e coletes não têm nenhum significado macabro. As caveiras para os motociclistas querem dizer apenas isso: por dentro, somos todos iguais. Um símbolo de igualdade. Nada mais.
O ponto alto do jantar foi quando Paulo pediu a palavra:
— É um prazer conhecê-los. Sei que a mãe de vocês ainda não deve ter contado como nos conhecemos, mas acho que lhes devo uma breve explicação. — E contou como tinham se conhecido, há quanto tempo, o que tinha acontecido e como se reencontraram. Só Rosemary tinha conhecimento da história na íntegra, pois fora a única que tinha dado seu apoio à Rosa no começo.
Paulo continuou e fez uma revelação que pegou a própria Rosa de surpresa.
— Diante disso, quero comunicar a todos que após o natal, irei levá-la para passar o ano novo na Espanha. Irei visitar a minha filha, e Rosa vai comigo. Já reservei as passagens. Você aceita, Rosa? — Fez o convite, como quem pede alguém em casamento.
E tinha como dizer não a este homem irresistível? Claro que ela aceitou! Por um momento, Rosa assustou-se, achando que ele a pediria em casamento, mas isso, definitivamente não estava nos planos dela, e nem dele... Iriam viver dali para diante aproveitando todas as cores que a vida teria a lhes oferecer... E Rosa finalmente descobrira a sua cor... Era vinho...
FIM
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