Capítulo IV

Capítulo IV

“O que não me mata fortalece meu plástico”

         - Você só pode ter ficado louca, Mei Feng! O que está falando não faz sentido algum!

         A lutadora de kung-fu fazia força para não se sentir constrangida em meio à roda de bonecos que se formara ao seu redor. Já se achava profundamente arrependida em compartilhar o que descobrira com os colegas; eles eram mentes fechadas demais para dar qualquer crédito à história. Pior ainda: a pouca tolerância que poderiam ter era podada pelo autoritarismo de Amika.

         - A Boudica é uma iludida, as visões que diz ter são alucinações, não correspondem a qualquer coisa real – argumentou Dick Graham. – Você já deveria ter entendido isso, Mei. Agora está soando tão ridícula quanto ela!

         - Na loja de brinquedos em que eu estava antes de vir pra cá, havia um boneco do Capitão Nuclear que jurava enxergar o Demiurgo toda noite através de sua embalagem – contou Jack Red Kid. – Não preciso nem falar que ele achava ser o Capitão Nuclear de verdade, e alegava ter sido encolhido por alienígenas e preso numa dimensão paralela. Um dia foi comprado por um garotinho esquálido, e agora deve estar espalhando seus delírios numa estante qualquer por aí...

         - Eu já acho que a história da guerreira mágica merece algum crédito.

         A expressão de espanto nos rostos das figures foi tamanha que Mei Feng acreditou que aquelas com faces intercambiáveis logo as teriam se desencaixando de suas cabeças. A afirmação fora feita por uma silhueta escura e alta aproximando-se pelas costas de alguns deles; por sinal, a silhueta de maior comprimento em toda a estante. Victor quisera iniciar sua coleção com peças todas em torno de quinze centímetros de altura, para manter um padrão – mas aquela em particular possuía pouco mais de vinte. O tamanho avantajado contribuía para sua aura aterradora, já presente no personagem em que era baseada. O traje negro como a noite fazia-a parecer uma sombra constante nos cantos mais vazios da cômoda, sempre à espreita, ameaçando os bonecos distraídos. Sua capa, presa por um buraco no mesmo pino que conectava a cabeça ao tronco, constituía adorno aterrador ao seu aspecto; e, embora fosse feita de plástico e desse modo não passasse de uma peça imóvel, era constante a impressão de que esvoaçava conforme seu dono andava a passos duros.

         O boneco somou-se à roda e sua mera presença fez os demais brinquedos se afastarem para que ele se destacasse entre eles. O capacete à cabeça, mistura de elmo de samurai, máscara de gás e acessório do exército alemão na Primeira Guerra – dada a ponta fina e comprida em seu topo, parecendo uma antena (embora ninguém, jamais, tivesse coragem de dizer isso a ele) – completava a aparência soturna da figure de Dark Vogh, antológico vilão da saga espacial Trek Wars.

         - Boudica pode estar mesmo sonhando com o Demiurgo, não devemos descartar a possibilidade – a voz do algoz intergaláctico soava abafada e robótica assim como a do personagem nos filmes. – Se nada sobre essa entidade a quem chamam “Deus dos Brinquedos” fosse verdadeiro, não haveria tantas histórias sobre ela. Talvez estejamos tendo a oportunidade de dar crédito a algo que pode ser de valia a todos nós e que nenhum outro boneco deu crédito antes por só pensar em ridicularizar os “iludidos”.

         Amika também estava na roda, e quando Vogh terminou sua fala ela tinha os braços cruzados com tamanha força que eles sem muito maior esforço se desencaixariam dos pinos – e Mei Feng torcia para que isso acontecesse, embora suspeitasse que nenhum daqueles “pau-mandados” tivesse coragem de rir da piloto. Ao mesmo tempo, a chinesa julgava conseguir deduzir claramente o que se passava nos pensamentos da rival naquele instante: Dark Vogh fora uma das primeiras peças da coleção de Victor e o primeiro líder da estante, bem antes de Amika chegar. A arrogante boneca devia entender o posicionamento dele apenas como ataque visando um dia recuperar sua posição, e não como expressão racional da mente bem ponderada que Vogh possuía. Mei lamentou saber que, com a rival discordando dele, os outros bonecos ali seriam levados a discordar também, incapazes de perceber o que ela percebia.

         Bando de manipulados!

         - Surpreende-me uma representação em ótimo PVC daquele que é considerado o maior vilão da história do cinema derreter-se em compaixão por uma lunática como a novata – Amika rebateu ácida. – Você já foi mais firme, Lorde Vogh.

         O clima ficou pesado, as demais figures se petrificando com tamanho medo que suas articulações estavam a um ponto de trincar. Trocaram olhares receosos entre si, lançaram outros de esguelha para Dark... e relaxaram seus corpos em alívio quando o boneco limitou-se a responder, após demorada fungada sob sua máscara:

         - Acho perturbadora sua falta de fé...

         Em seguida pôs-se lado a lado com os colegas de roda, desejando inserir-se nela como qualquer outro – embora os dois zumbis de Zombie Frenzy! que ali estavam, um à sua direita e outro à esquerda, não demonstrassem muito conforto com a proximidade de Vogh, passando a gemer amedrontados com os braços balançando.

         - Nós deveríamos votar! – propôs Mei Feng, mais tranquila em expressar-se devido ao valioso apoio de Dark. – Saber quantos de nós apoiam a ideia de seguir a pista de Boudica e quantos desaprovam, e aí decidirmos nossos próximos passos de acordo com o resultado.

         - Para que perder tempo com isso, se está na cara que o “não” ganha? – Amika resmungou. – Se querem votar por algo, que seja o exílio da iludida. Ignorá-la totalmente enquanto ela não desistir dessa história ridícula de ser a verdadeira Boudica e falar com o Demiurgo.

         Como se já não estivéssemos fazendo isso... – pensou Mei Feng, lançando rápido olhar para o canto da estante onde Boudica continuava isolada de joelhos numa pose que agora lembrava a prece feita pelos humanos em suas igrejas e oratórios, aparentemente alheia a tudo que acontecia ali perto – mesmo estando o destino dela a ser decidido.

         - Se tem tanta certeza do “não”, então não deveria temer uma votação, Amika – a lutadora de kung-fu replicou assim que voltou de novo a face à piloto. – Uma líder sensata não deixa de ouvir seus governados, mesmo que para confirmar o que já acha ser verdade.

         O burburinho a se instalar entre os brinquedos, seguido de cabeças se movendo em expressão afirmativa, mostrou que Mei acertara em cheio. Amika, ainda de braços cruzados, parecia agora mais se retrair em autoproteção do que demonstrar arrogância.

         Isso!

         - Está bem, está bem, que haja votação! – a boneca cedeu, soando contrariada e traída. – Aqueles que forem contra dar ouvidos à iludida, ergam o braço!

         O resultado foi aquele que Mei Feng previa: Sub-Man, Jack Red Kid, Dick Graham, os dois zumbis, os ninjas de Shuriken Lagoon e o soldado de Navy Joe se manifestaram, além da própria Amika. O que surpreendeu a chinesa, e deu-lhe esperanças, foi constatar que vários outros bonecos permaneceram com os braços abaixados.

         Tomara que não sejam abstenções, e tenhamos uma bela surpresa agora...

         - Agora, quem for a favor de confiar nas alucinações da iludida, erga o braço!

         Mei Feng levantou a mão direita... tal qual Dark Vogh, a caçadora Nina Wolfgang (também da linha Zombie Frenzy!), os dois gashapons de Total Crazy School, Marco e Luponi de Super Marco Bros., o Capitão Babaka também de Trek Wars (personagem que dava crédito à teoria de que havia um brasileiro na produção da saga espacial zoando os nomes), Fatorial (vilão da linha Sub-Man, da Wonder Select) e o pequeno robozinho Cleto do desenho animado de mesmo nome, que girou um dos bracinhos para cima com dificuldade, movendo as pinças em forma de garra que lhe substituíam os dedos.

         Não foi preciso terminar de contar os votos para que todos dessem conta do que acontecia, Sub-Man expressando-o em palavras antes que Amika soltasse alguma grosseria:

         - Temos um empate. Dez a dez.

         Nem Mei, nem Dark, nem quaisquer outros defensores da causa de Boudica, que só haviam se revelado naquele momento, esperavam resultado tão favorável, embora inconclusivo. Era preciso decidir de vez a questão, um voto de Minerva...

         A chinesa quase de imediato voltou a cabeça para o canto em que Boudica estava, e Amika percebeu:

         - Ah, não, não, não! – a piloto ergueu os dois braços em protesto. – Ela não pode votar, está fora de si! A opinião dela não vale nada, é uma alucinada!

         - Quem garante não ser ela a única sã, e nós os iludidos? – Dark Vogh provocou, já caminhando na direção da guerreira. – Com licença. Vamos pedir o voto dela. Ela faz parte desta estante agora, como todos nós.

         O vilão de Trek Wars iniciou assim a marcha (que não tinha nada de imperial) até Boudica, Mei Feng sendo a segunda a tomar parte nela, acompanhada pelos demais apoiadores. Amika continuou berrando, xingando, utilizando todos os movimentos que suas articulações MoveTech permitiam para insultar... mas não podia parar metade de seus súditos. Nem mesmo seus aliados se moveram um centímetro para impedi-los, ficando apenas a observar... e logo a comitiva chegou até onde Boudica orava.

         A guerreira permanecia de joelhos, sua pele aparentando um tom ainda mais claro do que antes, a pintura de guerra azul na face transparecendo determinação e foco. O grupo de Vogh deteve-se diante dela, observando-a curioso... até que Mei Feng abriu caminho entre os parceiros, não se importando em pedir licença a Dark por agora saber que ele era seu amigo, e estendeu uma mão sobre os ombros da celta.

         - Boudica?

         A boneca moveu a cabeça para ela como se saída de um transe, expressão um tanto assustada – mas logo se suavizando em alívio ao notar a face conhecida. Nada disse, porém; cabendo à lutadora falar:

         - É a respeito de suas visões... Você gostaria de nossa ajuda para encontrar o Demiurgo, o ancião que tem falado em sua mente? Quer que a acompanhemos em sua tentativa de voltar para casa?

         Os olhos da guerreira pareceram brilhar mais do que olhos de plástico poderiam; e, em meio a um instante que gerou tanta expectativa quanto uma hora toda de espera, respondeu, movendo nervosamente a cabeça:

         - É o que mais quero!

         Quando eles trouxeram Boudica para o centro da roda de bonecos, estes abriram caminho relutantes para que ela se aproximasse – apenas Amika se negando a mover um pé que fosse, permanecendo em sua mesma posição com cara de colecionador que quebra uma figure por acidente; Mei Feng tendo experiência o bastante para poder se certificar de que era realmente uma expressão de dar medo.

         A guerreira celta foi acomodada em meio ao grupo de ansiosos bonecos – alguns ainda bem contrariados além da piloto de mecha – e tudo feito para que se sentisse o máximo possível à vontade. Deram-lhe espaço para se sentar com as pernas esticadas, os pinos nos joelhos flexionados ao máximo; e Mei teve certeza de que, se tivessem almofadas em miniatura ali, daquelas usadas no interior de porta-joias para forrar brincos ou colares, com certeza as ofereceriam a Boudica.

         Quando se certificaram de que ela estava relaxada o suficiente, e que nenhum dos outros brinquedos viria com alguma gracinha para intimidá-la, Dark Vogh indagou, do alto de seus vinte centímetros de altura e pulmões substituídos por um purificador de ar com defeito:

         - Boudica, quando você sonha com o Demiurgo... como ele diz que pode encontrá-lo? Em que lugar?

         A boneca baixou a cabeça, cobrindo a face com ambas as mãos numa clara tentativa de se concentrar. O silêncio tomou a estante, insentificado pela quietude já dominando a casa – visto que Victor estava no trabalho. Até Amika conseguiu fechar a boca, ao que Mei Feng deu graças – embora a megera tivesse soltado um ou dois resmungos enquanto esperavam Boudica responder.

         - Ele não me falou usando palavras, mas por imagens e sons... – oscilou por fim, tornando a levantar os olhos de um modo esperançoso. – Foi como se eu flutuasse em minha visão, voasse por inúmeros lugares deste mundo gigantesco, em sequência. Primeiro, uma densa floresta, com penhascos retos de rocha e flores estranhas, de copas amarelas. Depois, uma viagem por um largo rio seco, a água só correndo por veios finos junto a cada uma de suas margens... até que, acompanhando o curso de um deles, logo adentra-se um túnel escuro, fedendo a cadáveres tal como uma planície após uma batalha recém-travada; lodo e água turva pingando de toda parte. O túnel abre-se para um átrio subterrâneo, semelhante a uma tumba dos vis romanos... onde mais seres enfeitiçados como nós são despedaçados por uma oportunidade de estar nas mãos do grande ancião. Em minhas visões, eu passo por esse último desafio... e deslizo suave pelo ar ao encontro do gigante a que chamam Demiurgo, que me espera para devolver-me ao meu mundo.

         Alguns instantes de assimilação foram necessários antes que alguém se manifestasse. Infelizmente, foi Amika:

         - Esse é o maior monte de besteiras que eu já ouvi em minha vida!

         - Mais do que quando dá o primeiro movimento de manhã e começa a tagarelar sozinha? – Mei Feng provocou.

         - Acalmem esse plástico, vocês duas – a voz robótica de Dark Vogh mostrou ter mais efeito do que o esperado. – Ao que parece, as visões de Boudica são uma compilação de sinais que devem ser interpretados. Essa floresta, o rio seco, o túnel... devem corresponder a lugares verdadeiros que precisamos percorrer para chegar ao Demiurgo, ou quem quer que o represente.

         - Então vocês perderam mesmo o juízo! – Amika bateu um dos pés nervosa. – Não sei se estão se tornando iludidos também, mas este mundo tem mais de doze vezes o tamanho que deveria ter se quiséssemos interagir nele feito humanos normais, e isso inclui viajar. É só medir pela escala de vocês: a informação está na caixa de cada um, não está? Sem contar os outros problemas: a estante ficará vazia da noite para o dia e o Victor acabará pensando termos sido roubados; isso se não formos descobertos antes por ele ou outro humano andando por aí, o que violariria a regra mais sagrada dos brinquedos. Ficaríamos conhecidos como traidores, destruidores de nossa civilização...

         - Ou salvadores – Nina Wolfgang rebateu, com seu peculiar sotaque germânico. – O que podemos descobrir sobre o Demiurgo seguindo essas pistas é capaz de mudar nossa realidade para sempre. De qualquer modo, é um mistério a ser resolvido. E eu adoro mistérios!

         - A Nina pode ter razão... – emendou Dick Graham, que há tempos vinha tentando ter algo com a colega de franquia, sem sucesso. – Pode valer a pena verificar. E o que não nos mata, deixa nosso plástico mais resistente!

         - Já que mais gente está aderindo, pode ser boa ideia... – Sub-Man foi o próximo a mudar sua prévia opinião. – Eu é que não vou querer ficar sozinho nesta cômoda se a turma toda for se aventurar lá fora!

         - Pode crer, parceiro – Jack Red Kid anuiu com um leve ajeitar do chapéu removível.

         Amika agora era uma boneca edição limitada da Raiva Personificada, vindo com um aviso sobre não colocá-la com outras figures devido ao risco de ela fazê-las em pedaços. Mei Feng, acima de tudo, se divertia – e sentia-se realizada com o andamento todo da questão.

         - Pois eu não irei! – a piloto exclamou histérica. – Se querem ir se perder para sempre numa sarjeta ou caçamba de lixo lá fora, não contem comigo! Ficarei aqui e me tornarei ainda mais querida por ser a única restante na coleção. Ah, vocês precisam de sanidade!

         - Não, sanidade nós já temos – Vogh corrigiu-a com frieza. – No momento, precisamos é interpretar os sinais do Demiurgo nos sonhos de Boudica...

         - E de suprimentos – completou o robozinho Cleto. – Não iremos a lugar algum sem suprimentos!

CONTINUA...

Notas do capítulo:

         - Introduzi uma série de bonecos novos neste capítulo, devido à necessidade de mencionar todos os moradores da estante na cena da votação. Cada um deles será melhor trabalhado mais tarde, com seu próprio ponto de vista em algum capítulo, mas já adianto em quais personagens foram baseados:

         Dark Vogh de “Trek Wars”: Como devem ter percebido, é uma referência e homenagem a Darth Vader, vilão da saga “Star Wars”. Inclusive, citei uma frase dele neste capítulo, como os fãs devem ter notado.

         Shuriken Lagoon: Imaginei como uma linha genérica de bonecos ninjas, parecida com a “Ninjago” da Lego, embora os da minha história sejam maiores e não constituam bonecos de montar.

         Navy Joe: Um tanto óbvio, é uma adaptação da famosa linha “G.I. Joe”, da Hasbro, conhecida no Brasil como “Comandos em Ação”.

         Nina Wolfgang: Uma personagem genérica da linha Zombie Frenzy!, sem ser baseada em ninguém específico de “The Walking Dead” – talvez um pouco parecida com a Andrea, se ela fosse alemã e tivesse um jeitão de nazista.

         Gashapons: Tipo de boneco japonês, geralmente baseado em personagens de anime, retirado em troca de uma moeda em máquinas existentes em lojas ou restaurantes, de tamanho menor que as action figures normais e geralmente com uma quantidade de movimentos mais limitada, além de serem desmontáveis.

         Total Crazy School: Neste meu universo, é um anime ecchi (erótico, mas não pornográfico) genérico, com ambiente de colegial e muito besteirol, assim como muitas produções japonesas.

         Super Marco Bros.: Outra fácil de deduzir, é uma referência à franquia de games “Super Mario Bros” da Nintendo, com seus protagonistas Mario e Luigi.

         Capitão Babaka: É uma referência a outro personagem de “Star Wars”, o Capitão Panaka, presente no Episódio I da saga – e que por sinal dá razões no mundo real para a teoria que citei sobre um brasileiro estar zoando os nomes na produção (tal qual “Conde Dooku”, “Mestre Syfo-Dias”, e outros que foram alterados no lançamento no Brasil por motivos óbvios). Embora tenha a semelhança de nome com Panaka, que é um personagem secundário nos filmes, meu “Babaka” é mais parecido com Han Solo, sendo também caçador de recompensas.

         Fatorial: Antigo vilão das minhas histórias do Sub-Man (nenhuma em que ele aparece foi publicada) que tem o poder de se multiplicar criando clones seus, o codinome sendo uma referência à operação fatorial em matemática.

         Cleto: Não é baseado em nenhum personagem específico, mas pensei no robozinho “Wall-E”, da Pixar, enquanto escrevia.

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