nós precisamos ficar juntos

Às vezes sou apático comigo mesmo. E numa tentativa de consolação, eu penso: que se foda a moral e ética e a existência e coisas mais. Vou fazer o que quiser, o que der na telha, vou ser feliz de alguma forma. No entanto, no segundo seguinte, percebo que seria ridículo. Depois volto: por que minha felicidade seria ridícula? Porque é, meu outro lado completa. E eu passo boa parte da noite nisso, refutando todos os meus pensamentos numa intensa guerra interna e dolorosa. 

Eu cumprimentei a tia de Ten em tailandês, já que ele me ensinou. Ela sorriu para mim, é meio baixinha, porém parece ser simpática. Trocamos um par de palavras em inglês, após Chitta informar que não sei seu idioma, mas acredito que ela não tivesse muito o que me dizer a não ser boas vindas. Porém, quando me afastei, seu olhar sobre mim queimou. Não de um jeito ruim. Ela só parecia estar me dissecando como se quisesse descobrir a ínfima camada de mim. Fiquei tentado a contar todos os meus segredos só para isso parar.

Depois da tia, ele me levou a um tio alto e grisalho que estava bebendo vinho branco próximo ao pequeno lago ornamental totalmente sozinho. Na verdade, acho que tinha acabado de terminar uma chamada quando me aproximei. Ele falou comigo um pouco mais, olhando meu jeito de vestir discretamente e dizendo quão surpreso está por eu estar aqui. Só pude responder que estava muito grato pela hospitalidade — eu olhei bem feio para Ten nessa hora, porque a hospitalidade dele foi terrível — e que seria um prazer ficar um tempo lá.

Rodamos um pouco cá e acolá, apresenta-me a alguns primos e parentes mais distantes que, segundo o próprio Ten, não sabe pra que porra eles estão aqui. Em síntese: não gravei o nome de ninguém. Ou melhor, apelido. A grande maioria é em inglês, já que os tailandeses atualmente estão costumando deixar o apelido nessa vibe e só o nome fica em tailandês. É por isso que o apelido de Ten é Ten, mas o real nome dele é Chittaphon. Ah, ele também me proibiu de ficar pegando o nome dele para juntar com palavras já existentes — como Chittaphau, Chitaphorra, Chittaphica, Chittaphum, Chittaphombo, Chittaphão... Estou proibido.

E agora ele me disse para ficar quieto e em silêncio, porque a mãe dele já notou minha presença, então devemos ir falar com ela e seu avô senão ela vai encher o saco. Eu não sei por que Ten é assim com a família dele, todo mundo parece normal.

— Obrigado — ele sussurra quando estamos caminhando ao banco onde encontra-se sua mãe. — É pura atuação.

Não mais pergunto nem comento nada. Vou deixar como está. Assim que me aproximo, cumprimento ambas figuras em tailandês e deixo que Chittaphon faça minha apresentação. Seu avô está sentado, em silêncio, apenas olhando para mim. Ele é aqueles vovôs que parecem estar cansados demais para se importar com as coisas, os fios do cabelo estão extremamente brancos e ele veste-se tão bem que se eu pudesse roubar suas roupas eu compraria meu apartamento e ainda sobraria troco.

A mãe de Ten não é diferente. Tem cabelos longos e posta-se de uma elegância descomunal. Usa jóias, roupas chiques e, acima de tudo, tem um olhar mais julgador que daquela primeira tia. Levemente agita o vinho tinto na taça ao olhar-me. Não consigo identificar se é positivo ou negativo. Eu tenho um pouco de medo de gente rica. Já quero fugir. Vou pular no lago e sair nadando.

Ah, então foi você com quem Ten teve um noivado de uma noite? — ela pergunta do nada, em inglês, claramente se referindo ao dia que eu e Ten bebemos e eu pedi ele em casamento.

Foi um inferno para desmentir todas as informações que estavam rondando a internet.

Não foi real — respondo.

O avô de Ten fica me olhando, então me curvo num pedido de desculpas formal. Chitta me puxa pelo braço, depois toma a frente e conversa alguma coisa com eles. Cita meu nome inúmeras vezes, mas não sei do que se trata. Já está escurecendo um pouco, o sol está descendo devagar. Não sei de onde está tocando uma melodia clássica, mas é possível escutar. É como se toda a família estivesse numa espécie de festa de jardim em que cada um fica no seu próprio grupinho, bebendo vinho, alguns conversando ou não... Isso é esquisito. Não sei. Não há muito calor.

— Ah, merda... — pela glória do senhor, Ten fala algo que não seja em tailandês.

Me faz despedir-me dos ambos familiares e saímos caminhando pelo jardim. Ele olha para a esquerda, vejo um homem vindo, e depois apressamos nossos passos. Parece que ele não quer que sejamos alcançado por essa pessoa. Eu  não sei muito bem o que está acontecendo, só estou indo com o bonde porque tenho medo do que Ten pode fazer comigo se eu desobedecer.

Entramos na casa, numa parte que eu não tinha visto antes. Passamos pela sala de jantar, a sala de estar, um piano preto, uma ramo de escadas e entramos na cozinha grande e requintada. Sério. Isso daqui só tem coisa chique e cara e... Jesus, eu não posso tocar em nada, tenho medo de quebrar e eu ficar cinco meses sem dinheiro pra tentar pagar.

— Tá, ok... — ele começa. — Para alguns da minha família, você é um ser insignificante.

— Eles disseram isso?

— Não, dava pra ver na cara deles... — inquieto, fica rondando a cozinha branca e bege. — Isso é incrível.

— Sua mãe e sua tia ficaram olhando para mim.

— Sim, isso é péssimo! — ele põe as mãos no balcão. — Mas é só você ficar quieto que tudo se resolve.

— Ah... — eu não sei que porra está acontecendo.

— Vou te deixar longe deles um pouco. Espere aqui — então, sem mais nem menos, me deixa sozinho na cozinha.

Fico tentado a abrir a geladeira, porque ela é grande e quero saber que é que gente burguesa come. Mas vou ficar quieto até Ten voltar. E quando ele volta, me puxa pelo braço e diz que vai me mostrar a biblioteca do avô dele e que lá poderemos ser nós mesmos, porque não tem ninguém. Não sei o que isso significa, mas sigo ele escada acima.

No primeiro andar, subimos para o segundo. Dobramos o corredor umas duas vezes até chegarmos na porta da biblioteca. Tem um sistema de digital para permitir a entrada, o que me faz concluir que o avô de Ten deve ser muito paranóico com esse lugar. Como a digital de Ten está cadastrada no sistema, conseguimos entrar e eu confesso que aqui dentro tem um dos melhores cheiros do mundo. É friozinho e, olhando melhor, estende-se por mais um andar acima.

— Aqui é seguro, porque só eu e minha irmã, senão meu avô, podemos entrar — Chittaphon conta, seguindo por uma prateleira de madeira mogno entalhada com flores.

— Pode me dizer o que está acontecendo? — questiono, porque eu estou perdido na batatinha.

— Minha mãe ficar querendo saber que raios é você é um perigo — me conta, entre uns livros de capa dura super grossos que não faço a mínima ideia do que tratam. — Porque ela é extremamente invasiva e pode tornar nossas vidas num inferno. Minha tia é... Nossa, insuportável. As duas vivem brigando, mas se juntam quando tem algo em comum. Se você virar o assunto da casa, eu me mato.

— Credo, Ten...

— Por sorte temos o namorado da minha irmã, que é a verdadeira estrela do momento. Obviamente, ela avisou de antemão que ele estaria aqui e queria conhecer a família. Então está tudo bem. Ninguém vai ligar para o amiguinho do Ten que veio sem nem avisar e só fica quieto na dele, bebendo vinho e olhando as plantas — quanto mais ele fala, mais fico perdido na história. — Todo ano tem uma pauta polêmica sobre a família que acaba virando atração principal que requer comentários de todo mundo... Eu já fui essa porra inúmeras vezes, não quero mais. Sério. Fica quietinho, senão vou ter que te defender e se eu te defender, eu vou virar pauta principal da casa. Me ajuda?

— Tá, ok... — curvo um pouco a cabeça, prestando respeito a sua decisão. — Qualquer coisa por você.

— Fica comigo sempre, tá bom? — ele olha nos meus olhos e eu concordo ao menear a cabeça. — Nós precisamos ficar juntos.

Depois disso, ele me mostra algumas partes da biblioteca. Vejo-me com vontade de abraçá-lo ou segurar sua mão ou andar pertinho a ele ou então pôr a mão na sua cintura ou então beijar-lhe o rosto... Ele é cheio de graça, pomposo. Não sei se vou me segurar de aparecer no seu quarto durante a noite nem que seja para bater papo sobre idiotices. Eu estou bem viciado na presença dele.

— Uh, minha irmã está querendo te conhecer — ele fala, olhando um conjunto de mensagens dispostas na tela do celular. — Vamos voltar para o jardim, depois eu arranjo um livro em inglês para você.

— Por que todo mundo está no jardim mesmo? — vou caminhando ao lado dele, agora indo em direção a saída.

— Estamos esperando meu pai, mas acho que ele nem vem hoje — Chitta conta, usando sua digital para liberar a saída da biblioteca. — Ele no mínimo aparece amanhã de noite ou depois de amanhã, espia só...

— Ah... — eu sussurro, sem saber o que falar.

Caminhamos apressadamente pelo corredor, depois as escadas, as salas e agora já estamos no jardim. Ten disfarçadamente se afasta de mim mais do que estava e não para de ir de um lugar ao outro. Ele parece tenso e nervoso, agora que parei para analisar sua postura, a expressão, e o modo que esfrega dos dedos da mão direita nos da esquerda. Eu não sei o que há de errado. Também não sei por que andamos tanto, pois já está bem mais escuro que outrora e eu não sei aonde estamos indo. Passamos por algumas árvores, seguindo o caminho indicado, e por fim aparecemos num real lago de pequena extensão. Vamos nos aproximando de uma garota de cabelos longos sentada num pequeno píer junto com um rapaz.

Ten é o primeiro a falar quando ambos se viram para nós. Com um sorriso nos cumprimentamos, além de algumas saudações em inglês.

— Taeyong — meu amor me chama. — A partir de agora, entre nós quatro, estaremos falando em inglês, certo? Fica mais fácil para nos comunicarmos... Qualquer dificuldade, você me diz e eu traduzo.

— Certo — concordo com a cabeça.

Sentem-se — a irmã de Ten ergue o braço num gesto para que sentemos, assim como eles, na madeira. Estamos bem perto da pontinha.

— A propósito — Ten volta a falar comigo em coreano, ainda se aconchegando. — Eu amo seu sotaque quando fala em inglês, sabia? É muito fofo.

Eu fico envergonhado na hora e acho que a irmã dele percebe, porque fica olhando para nós dois com um sorriso no rosto. Eu espero que eu não esteja corado ou que esteja escuro o suficiente para que não possam perceber. Eu estou tão feliz por estar aqui com ele!

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