Capítulo um - Um recomeço quase perfeito

10 de dezembro de 2018, Rio de Janeiro.

Whoosh!

A flecha metálica cortou o ar com precisão sobrenatural. Formando uma parábola côncava, ela se prolongou por metros e metros mar adentro antes de colidir com a densa superfície azul-esverdeado.

Ariella inspirou e expirou profundamente a maresia acolhedora, antes de recostar seu corpo sobre o solo arenoso e observar; Observar as três flechas boiando na água. Observar que apesar do que era, do fogo que corria em suas veias, não estava acima das leis físicas do Universo. Assim como aquela força extra não amenizava a constante sensação de vazio que ainda a preenchia. Mas ela já estava se acostumando quanto a isso. Acostumando-se a aprender novamente como ser humana.

Trinta minutos antes, quando saíra silenciosamente de seus aposentos nos fundos da lanchonete onde trabalhava, o céu ainda era uma imensidão escura de nuvens e estrelas brilhantes. E enquanto caminhava sozinha pelas ruas silenciosas com seu arco e flechas a tiracolo, ela se permitiu pensar na forma como levara a vida nos últimos seis meses.

Sempre tirando um tempo para estudar suas condições físicas e psíquicas e quase sempre evitando pensar em como tinha manipulado sua família antes de deixar Londres, poderia descrever seu cotidiano do outro lado do oceano atlântico em duas palavras: Solitária e pacificamente. E ela gostava. Gostava de saber que todo mês receberia aquela ligação de Kaellyn que a lembraria porque tinha se afastado; seus amigos estavam felizes, e bem melhores sem ela e suas anomalias.

Então, todos os dias Ariella acordava antes do alvorecer, corria alguns quilômetros até aquela parte intocada da praia e atirava suas flechas no mar, testando sua própria força e precisão e claro, refletindo sobre a vida. Depois, ela permitia-se apreciar a quietude que precedia o nascer irreverente do sol; apenas alguns segundos de silêncio celestial, como se o mundo todo prendesse o fôlego por alguns instantes para adorar a chegada da Luz.

Uma entrada triunfal, diga-se de passagem. O Sol era uma maldita estrela poderosa e exibicionista, ela tinha percebido. E a trivialidade daquele pensamento quase a fez rir. Assim como o par de chinelos em seus pés, afinal, ela nunca tinha imaginado que usaria algo diferente de botas ou tênis, mas gostava da sensação de liberdade e simplicidade que aquilo proporcionava.

Enquanto o céu transformava-se numa mistura de cores claras e os primeiros raios solares refletiam na água e em seu corpo bronzeado, ela se levantou rumando na direção das violentas ondas salgadas. Era sempre bom mergulhar pela manhã para espairecer, quando a água ia e vinha tão imaculada e violenta e gelada. Em poucos segundos, estava forçando seus braços contra a maré conforme nadava em busca de suas flechas; a agilidade de seu corpo imortal era tamanha que ela mal sentia seus músculos trabalhando. Alguns poucos minutos e já estava de volta a bancada de areia, ensopada de água salgada; Ariella torceu o excesso da água de suas roupas e guardou as flechas recuperadas na aljava.

O cabelo agora curto – com reflexos mais claros por toda sua extensão –pingava água em seus ombros, mas ela não se incomodou em tirar o excesso. Apenas pegou o par de chinelos em uma mão, o arco na outra e com a aljava sob o ombro esquerdo, ela partiu em direção a lanchonete. Estava na hora de começar mais um dia caloroso na grandiosa cidade do Rio de Janeiro.

•••

Alguns minutos de caminhada depois, a cidade estava finalmente acordando. As ruas antes vazias estavam começando a serem preenchidas por uma quantidade razoável de carros e lotações indo e vindo e alguns turistas deslumbrados caminhavam nas calçadas fotografando  tudo ao seu redor enquanto a maior parte do povo carioca – cautelosos e apressados – se preparava para o início de mais uma jornada de trabalho.

Caminhando entre aquelas pessoas, Ariella logo avistou a fachada simples – mas convidativa – da pequena e aconchegante lanchonete à beira mar em que trabalhava.

E em frente a porta de vidro, em uma luta acirrada com a fechadura do estabelecimento, estava Amanda e seu molho de chaves tilintante. A morena simpática de volumosos cachos cor de mel e olhos castanhos, era a gerente da lanchonete e também a filha do dono, o Seu Jorge. E tinha sido ela quem contratara Ariella seis meses antes, não esquecendo de alegar com incredulidade que o currículo da adolescente excedia qualquer exigência pra vaga de atendente. Mas Ariella tinha insistido tanto que precisava da vaga que acabou por ganhar de bônus o puxadinho nos fundos da loja como parte de seu salário.

Kaellyn tinha insistido que a adolescente trabalhasse em uma das filiais de sua renomada empresa no Brasil quando ela contou sobre a sua partida – omitindo alguns fatos sobrenaturais – mas a garota prontamente negara; ela queria levar uma vida muito mais simples da que tinha antes, porque tinha certeza de que aprenderia muito com isso. Principalmente em um país como o Brasil, onde Amanda e outros milhares de jovens se sacrificavam o dia todo trabalhando para ajudar a família e a noite ainda se dedicavam aos estudos, tentando garantir seu futuro em um país que afundava com a corrupção de governantes desonestos.

Era uma situação revoltante. E Ariella sabia que o que Amanda lhe contava casualmente não era nem a ponta do iceberg, considerando outras milhares de pessoas ainda mais pobres vivendo em situações alarmantes de inanição, conforme ela tinha visto em noticiários locais; enquanto o povo desse país tão belo enfrentava uma árdua batalha todos os dias para sobreviver, corruptos usufruíam de uma vida luxuosa as suas custas. Isso sem contar todas as questões sobrenaturais que ela sabia que existia.

— Precisa de ajuda aí? — Ariella perguntou com uma pitada de humor, quando se aproximou o suficiente.

Amanda se virou num pulo; seus cachos rebeldes se espalharam por todo seu rosto graciosamente. Ela sorriu e levou uma mão ao peito quando o reconhecimento lhe atingiu.

— Meu Deus, que susto! Você é algum tipo de mutante que se teletransporta ou o que? — ela estreitou os olhos, como se analisasse Ariella em busca de alguma anomalia e depois riu ao notar o arco e as flechas e a roupa molhada da outra — Ah sim, sempre me esqueço que você é a Katniss Everdeen britânica que acorda com o canto do galo e depois nada com os peixes — revirou os olhos, fazendo graça.

Ah, se ela soubesse a verdade. Ariella pensou, mas apenas meneou a cabeça para a morena e estendeu a mão, antes de dizer:

— Deixa que eu abro.

Amanda sequer pensou duas vezes antes de entregar o molho de chaves na mão da adolescente e se afastou da porta, dando espaço para a outra.

Para o espanto de Amanda, Ariella abriu a fechadura com um simples clique e sem nenhum esforço, deslizando as portas para o lado e abrindo o estabelecimento.

— Obrigada, Hulk. — Amanda gracejou, entrando na lanchonete e já começando a organizar as mesas. Ariella apenas assentiu com um mínimo sorriso e começou a ajudá-la — O que você ainda está fazendo aqui, jovenzinha? Seu turno só começa daqui uma hora. — ela indicou o relógio na parede e praticamente expulsou a adolescente para os fundos com pequenos empurrões.

Às vezes Amanda lembrava muito Kaellyn. E Ariella gostava disso. Porque assim como a empresária, Amanda tinha lhe dado a chance de um recomeço e sequer sabia disso. Toda simpatia, gentileza, e claro, a firmeza da estudante de jornalismo de vinte e um anos que enfrentava batalhas silenciosas todos os dias a ensinavam novamente como ser humana.

No instante em que cruzou a porta de madeira que separava a lanchonete dos três cômodos extras que agora ela chamava de casa, Ariella foi recebida por uma bola de pêlos escura roçando suas pernas nuas e miando.

Sherlock. O felino de pelagem preta e olhos verdes tinha se tornado a companhia diária da adolescente três meses antes, quando ela o encontrou vagando pela rua e resolveu adota-lo. O nome era uma homenagem a um dos personagens literários favoritos da adolescente e sua aparência física lembrava muito a garota do assombroso conto 'O gato preto' de Poe, que ela tanto adorava.

— Oi, Sherlock! — saudou o felino que ronronava entre suas pernas conforme ela andava pelo espaço e alcançava uma toalha de banho para secar seu cabelo — Está com fome?

Sherlock apenas miou em resposta e esperou, sentado próximo ao seu pote de plástico. Então a jovem pegou o vasilhame e o encheu de ração, antes de colocá-lo ao alcance do felino; Ariella afagou o pêlo do gato e então o deixou a sós com sua refeição matinal e se dirigiu para o seu quarto.

Diferentemente da maioria das crianças na sua infância, a jovem nunca tinha sentido vontade de ter um animal de estimação. Nunca sequer tinha pensado em ter um até Sherlock aparecer em sua vida. E estranhamente, ela se sentia confortável em tê-lo; talvez fosse apenas a necessidade de uma companhia, mas ela gostava de conversar sobre seus avanços com o felino, mesmo que ele não pudesse responde-la como um ser humano faria.

Abrindo o pequeno armário de madeira onde colocava seus pertences, Ariella pensou no quanto Naomi ficaria chocada quando se deparasse com as peças de roupas coloridas que ocupavam boa parte do espaço agora. Não que ela não gostasse mais das cores neutras que sempre usara ou que tivesse se tornando o próprio arco-íris em forma de gente, mas numa cidade de temperaturas altíssimas como o Rio de Janeiro, usar preto constantemente era um grande infortúnio. Então lentamente, as peças em tons de azul, verde e até lilás tinham passado a preencher o guarda-roupa da jovem por questões climáticas, ela diria. Mas no fundo sabia que gostava. Que vestidos soltinhos e chinelos combinavam muito com sua nova imagem.

Em frente ao espelho, ela analisou sua nova aparência mais uma vez. A aparência de Ariella Heavlyn: a jovem órfã britânica de dezoito anos, leitora assídua de ficções, bilíngue e expert em computadores que trabalhava como atendente numa lanchonete à beira mar. Com seus olhos dourados escondidos pelas lentes de contato castanhas, o vestido preto de flores um pouco acima dos joelhos, o cabelo na altura dos ombros, a pele bronzeada e com algumas sardinhas quase imperceptíveis e a falta daquela antiga argola prateada no nariz, ela mal se parecia com a adolescente de alguns meses atrás. E não apenas fisicamente, porque a maior mudança tinha acontecido dentro dela.

Continuava acontecendo, na verdade.

Ela sempre sentia aquele poder espreitando sua pele, querendo tomá-la a todo custo nas horas mais inoportunas e era preciso muito autocontrole para mantê-lo adormecido dentro de si. Autocontrole esse que ela tentava exercer com o auxílio de livros de psicologia e psiquiatria. E não parava por aí; ela precisava entender a si mesma, então seus estudos não se estendiam apenas a ciência, mas também ao conhecimento sobrenatural. Por isso, o Códice do Sobrenaturais também estava muito bem acomodado na sua escrivaninha e ela o lia sempre que podia, estudando aquela imensidão de criaturas que vagavam pelo mundo.

Ainda que tivesse abdicado de quem era quando saiu de Londres, ela não podia fechar os olhos para o mundo sobrenatural coexistindo com a humanidade, mesmo ali naquela terra paradisíaca. Então, vez ou outra ela vagava pela cidade em busca de qualquer anomalia; qualquer sombra escura demais, qualquer energia pesada demais, qualquer sorriso maléfico demais. E estranhamente, não tinha encontrado absolutamente nada desde sua chegada, mas sua adaga estava sempre a postos. Parecia que ou a cidade do Rio de Janeiro era livre de criaturas sobrenaturais – o que ela duvidava muito – ou as criaturas estavam se escondendo, mantendo-se nas sombras, como se esperassem por algo. E para o desalento da adolescente, a segunda opção era com certeza a mais plausível.

Nenhum sinal de sobrenaturalidade deveria ser um alívio para a garota. Mas não era. Porque ela sabia que cedo ou tarde, eles a encontrariam. Fossem anjos ou demônios, eles a encontrariam porque ela tinha certeza de que podiam senti-la, assim como ela sentia. Ariella só esperava que pudesse estar preparada o suficiente quando acontecesse. E não apenas fisicamente.

Vez ou outra, Ariella tinha sonhos confusos com o Arcanjo de enigmáticos olhos azuis e as lembranças voltavam como uma torrente forte e pesada e ela se via questionando aos céus onde ele estaria e se tinha recebido sua carta. Mesmo que estivesse melhor – em termos emocionais – do que estava seis meses antes, ela não tinha certeza se estava pronta para vê-lo, ou melhor, não tinha certeza de como se sentiria em relação a isso, já que uma parte de si tinha ido embora com a Ascensão.

E também tinha o jovem de olhos incandescentes e cabelos avermelhados com quem ela tinha sonhos perturbadores, sobre os quais escrevia detalhadamente no caderno de capa preta jogado sobre a escrivaninha de madeira: seu diário. Tinha lido na internet que um diário era uma boa ferramenta para pessoas reclusas lidarem com traumas, uma vez que escrever sobre eles era como tirar um peso das costas. E mesmo que os problemas que assombravam a jovem fossem do tipo sobrenaturais, ela imaginou que escrever sobre seus sonhos estranhos ajudaria. Ou pelo menos aliviaria a estranha sensação crescente em seu cerne toda vez que sonhava com os dois. Não uma sensação necessariamente ruim, mas uma confusão de sensações. E ela não gostava nada de não compreender o que aquilo significava.

Devidamente uniformizada – o que consistia em um simples avental vermelho com um pequeno crachá escrito seu nome – ela deu uma última checada no espelho a sua frente e suspirou, pronta para mais um dia comum.

— Psss, Psss, Psss — Ariella chamou o felino, que não tardou em vir ao seu encontro, miando enquanto roçava em suas pernas — Se comporte, Sherlock. Tenho que ir trabalhar, mas eu volto na hora de almoço. Até lá, nada de fazer xixi fora da caixa de areia. — ela instruiu o gato, afagando seu pêlo.

Sherlock miou em resposta e subiu na cama de sua dona, se enrolando nos lençóis escuros. Ariella pareceu satisfeita com a atitude do gato e o afagou mais uma vez, antes de se dirigir em direção à lanchonete.

•••

Três horas e meia mais tarde, o fluxo de pessoas era contínuo na lanchonete. Enquanto Amanda cuidava do caixa, Ariella atendia as mesas ocupadas com toda simpatia e gentileza que tinha aprendido a exercer nos últimos meses.

— Uma porção de camarão pra mesa 03 — Ariella repassou suas anotações para o cozinheiro, o jovem e recluso Erick.

O rapaz de cabelos escuros e encaracolados e de pele morena apenas acenou em confirmação para a jovem e logo se retirou.

Erick não era um falante – pelo menos não com Ariella – mas era um ótimo cozinheiro e também muito observador, como a jovem não demorou a perceber. Ele arrancava olhares desejosos da maioria da clientela diária da lanchonete – olhares que ele fingia que não notava, incluindo da própria Amanda.

Pelo menos ele era educado.

— Será que ele é comprometido? Ele não colocou o estado civil no currículo. — a gerente perguntou a jovem que se movia para trás do balcão, lançando um olhar nada sutil para a cozinha.

Ariella soltou uma breve risada, enquanto reorganizava meticulosamente o balcão.

— Você devia perguntar pra ele. — respondeu tranquilamente, dando de ombros.

A jovem ouviu Amanda soltar um longo suspiro, antes de dizer:

— Talvez. — suspirou mais uma vez, antes de mudar de assunto se voltando para a mais nova  — E você, também nunca me disse qual seu estado civil. — Amanda estreitou os olhos para a jovem, como se pudesse desvendar todos os seus segredos.

Ariella soltou uma risada nasalada e meneou a cabeça, arqueando uma sobrancelha para a morena. Mas o olhar da mais velha era determinado.

— Solteira. — ela deu de ombros olhando longe, tentando evitar que aqueles olhos azuis invadissem sua mente, mas falhou. — E pretendo continuar assim. — completou, soando mais ríspida do que gostaria.

Amanda recuou, entendendo que aquele não era um bom assunto e lançou um sorriso envergonhado a outra antes de retornar a seus afazeres silenciosamente.

Ariella quis estapear sua própria testa, mas se conteve.

Progresso, não regresso. Ela lembrou a si mesma.

— Não quis ser grosseira. — a jovem se desculpou, ainda um pouco rígida; ela não tinha entendido porque tinha ficado tão afetada apenas com uma pergunta e Amanda não merecia seu mal-humor. — Apenas não gosto muito desse tipo de assunto.

— Entendo. — ela respondeu e soou sincera, assim como o sorriso em seu rosto.

Enquanto a gerente voltou sua atenção nas finanças do estabelecimento na tela do computador, Ariella refletia.

Os únicos momentos em que ela conseguia sentir emoções depois da sua Ascensão, se resumiam a pensamentos envolvendo Nicholas e o jovem do sonho. Não eram emoções felizes, mas intensas, numa mesclagem de sentimentos confusos. E agora ela se perguntava o porquê.

Com um suspiro cansado, Ariella começou a limpar e organizar as mesas da lanchonete, tentando guardar seus questionamentos para o fim do expediente. Ela precisava entender a linha tênue daqueles sentimentos o quanto antes.

O dia estava quente como de costume, mas o ambiente era climatizado, então ela sabia que o calor que começou a percorrer todo seu corpo subitamente naquele momento envolvia aquele fogo adormecido em suas veias, trazendo-lhe uma sensação de confusão, dividida entre familiaridade e alerta. 

Ariella se esforçou para ignorar a sensação e entre sorrisos gentis a clientes que estavam de saída e outros que entravam, ela continuou a exercer seu trabalho.

Mas a sensação confusa continuou lhe assombrando e ela só entendeu o fundamento do que sentia quando os raios do sol que brilhava radiante no céu azulado do lado de fora refletiram graciosamente sobre a figura de fios avermelhados e olhos incandescentes que entrava pela porta da frente.

Ariella ofegou, imóvel ao encarar a figura masculina. Seus dias de paz tinham acabado. E embora o dia estivesse ensolarado, uma tempestade estava prestes a arrebata-la.

Porque ela sabia, com todos os átomos inquietos do seu corpo, quem era o jovem que se aproximava em passos lentos e meticulosos e que pior, ainda sorria  para ela.

— É um prazer finalmente conhecê-la pessoalmente, Ariella.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top