09 - Amigos até nos matarmos


Levei horas para melhorar. Não foi bem uma intoxicação alimentar, acho que só estive mal mesmo. Agora estou melhor, mas a preguiça me abraça com força. No meio da tarde acabei dormindo e acordei agora há pouco. Não sei exatamente que horas são, mas já está escuro o suficiente para que os postes estejam sendo ligados. O rock pesado que Ten estava escutando alto agora nada mais é que um amontoado de guitarra e bateria num volume um tanto aceitável. Mesmo assim, é enjoativo. Não sei como ele aguenta.

Bocejo meio cansado e me movo, para então perceber que meu corpo está um caco e que talvez eu tenha ficado, mais uma vez, muito tempo numa mesma posição. Isso me deixa chateado, mas não ao ponto de conversar com Ten. Ele está em silêncio, mas sei que sabe que acordei. Ele até que é bem atento com o trânsito, não está tão rápido quanto antes, porém parece estar apressado. Pelo menos isso não me soa como algo ruim, já que da outra vez foi trezentas vezes pior.

— Posso mudar a música? — pergunto.

— Não.

— Por favor?

— Continua sendo não.

— Só uma música.

— Pra mexer no rádio, precisa pôr um adicional no meu pagamento — ele olha rapidamente para mim, porém não tarda a pôr os olhos no retrovisor.

— Você não acha que já me extorquiu demais, não?

— De modo algum.

Fico em silêncio, mas noto um pequeno sorriso no canto dos lábios dele. Ten tira uma das mãos do volante para afastar a franja dos olhos, depois fica totalmente sério de novo. Então solta um suspiro. Distraio-me olhando a firmeza com que suas mãos apertam o volante e depois encaro a estrada escura. Só tem dois caminhões e um carro perto de nós. Parece ser uma viagem que nunca vai ter fim e isso chega a ser desesperador. Bem, eu gosto disso. Posso focar nessa palavra: desespero. Desespero é algo que eu gostaria de trabalhar um dia.

Por ora, subo a janela por conta de um ventinho meio frio demais e depois me abraço contra a porta travada. Vou cochilar um pouco, porque ainda estou com sono. Não acho que vou dormir muito. É só um pouco.

★★★

Quando abro os olhos, a primeira coisa que vejo é o céu meio desbotado. O silêncio permeia tudo. Estamos estacionados no meio de uma estrada que aparentemente foi fechada, cercados por mato e árvores. Deve ser de manhã bem cedo, está começando a amanhecer. A temperatura está mais baixa que ontem, então sinto minha pele meio arrepiada por isso. No entanto, mal noto as coisas ao redor quando percebo que um cobertor marrom está sobre mim. Isso não é meu. Eu não trouxe um cobertor, porque achei que ficaria num hotel todas as noites. Agora solto um suspiro e deslizo a mão por ele. Isso deve ter vindo de algum lugar, obviamente...

Eu olho para o lado e não encontro Ten no banco de motorista. Isso me preocupa. Olho para o lado de fora, mas não tem ninguém. Nada. Apenas as árvores, grama e insetos. Não há nenhum humano ao redor. Viro-me para o banco de trás e finalmente vejo Ten. Sim, ele está dormindo. Deitado no banco traseiro, tem um travesseiro debaixo da cabeça e está com os joelhos dobrados. Além disso, está abraçando a si mesmo, como se estivesse com frio e quisesse se aquecer. Ponho os olhos em mim, para o cobertor sobre meu corpo. Ele é de Ten. E Ten me cobriu com ele enquanto eu estava dormindo.

Solto um suspiro e afasto o cobertor de mim. Não preciso ser cuidado por ele. E também nem sei bem o porquê de ter feito isso. Aparentemente nos odiamos. Se nos odiamos, por que estaríamos fazendo isso? Por que eu estaria me esticando para jogar sobre ele o cobertor? É pena? Compensação? Decerto, talvez ambos. Ele foi legal comigo por isso, devo pelo menos contribuir fazendo o mesmo. Até mesmo aos piores inimigos há um punhado de paz. E na paz de Ten eu descubro o silêncio, o cheirinho do orvalho matinal, o frescor. Nas suas pálpebras delicadas que encaro, eu me perco e divago. Se eu odeio-o, por que acho fofo seu cabelo desgrenhado? E por que estou girando o corpo para ficar olhando diretamente para ele? É algum tipo de contemplação? Eu odeio ele. Eu disse, odeio.

Mesmo assim, despendo minutos da minha vida observando-o dormir. Quando se mexe, viro-me para frente e encaro a rua. Acho que aqui ao lado tem uma pequena plantação de lavanda ou planta similar. Da minha bolsa arranco meu caderno, meu estojo e uma vontade repentina de desenhar o nascer do sol numa estrada aparentemente infindável cuja única beleza provém da natureza ao meu redor e o gradiente sobre minha cabeça. Meu pai dizia que essas coisas eram besteira e deveriam ser apenas hobby. Mas isso daqui não parece ser nada disso para mim. Eu não sei fazer nada senão meus hobbys. E se o que sei fazer é desenhar o amanhecer e uma plantação, aqui estou eu.

— O que você está fazendo? — a voz rouca de Ten me dá um susto, tanto que eu derrubo o caderno, que antes estava sobre o painel.

— Você não sabe falar um “bom dia” antes? E nem precisa gritar… — reclamo com a cara amarrada, me curvando para pegar o caderno.

— Eu não gritei, é porque está tudo quieto.

— Então você deveria ter falado um pouco mais baixo.

— Você reclama de tudo.

Viro-me para trás no momento exato em que ele se inclina na minha direção. Quase perco o ar com a proximidade do seu rosto, porém fico imóvel.

— Abre o porta-luvas — ele me pede.

Eu me viro pra frente e faço o que ele pediu.

— Pegue aquele porta-escova verde ali — ele aponta. — E aquela garrafa de água.

Entrego ambos na mão dele. Rapidamente, Ten abre a porta do carro e sai. Eu me ocupo no meu desenho por um tempo, mas em pouco tempo ponho os olhos no retrovisor para ver o que ele está fazendo. Basicamente, Ten está sem camisa (ela está repousando em seu ombro esquerdo) e aparenta estar escovando os dentes no meio da rua. Isso é inacreditável.

Desvio o olhar, porque tenho o mínimo de senso. Eu disse desde o início que esse cara era maluco. Não é por nada que eu disse isso. Volto a prestar atenção no meu desenho, afinal essas lavandas não irão ser desenhadas só. E no meio do meu sombreado humilde, surje um meliante batendo na lataria do veículo e fazendo um gesto para que eu abra a janela.

— O que foi? — pergunto, após abrir.

— Sua vez, patty — joga a garrafa de água no meu colo e depois se afasta.

Eu reclamo por um punhado de tempo, mas saio do carro. Motivo: estou cansado de brigar e acho que as coisas não vão ser totalmente do meu jeito nunca. E por isso eu pego minha escova e meu creme dental da bolsa e saio para fazer a mesma coisa que ele. Não pretendo demorar aqui, até porque está meio friozinho e o sol ainda não botou a cara no mundo por completo. Vou ser obediente só um pouco.

Eu aproveito a escovação para chegar perto da cerca que me separa das lavandas. Acho que vou tirar foto disso. É, de fato, uma boa ideia. Viro-me para pegar meu celular, porém a primeira coisa que vejo é Ten sem camisa molhando o cabelo e depois empurrando-o para trás, com o porta-malas aberto. Isso daí é ele lavando o cabelo? Sério, eu tenho certas dúvidas sobre o processo de higienização dele…

Desisto da foto por enquanto, me distraio com isso agora. Ele está de costas para mim, por isso não vê que estou vendo. Mas estou vendo, sim. Estou vendo o momento em que arranca uma camisa listrada de mangas longas de uma caixa do porta-malas e veste. Depois pega uma camisa de mangas curtas preta e veste por cima. E eu me lembro agora que não sei bem qual a sua tatuagem, só sei que tem algo escrito. Do jeito que ele está vestido, não vou ver tão cedo. Na verdade, nem sei por que raios estou interessado nisso. Eu deveria estar terminando de escovar os dentes.

— Jesus, Taeyong! Você se babou todo, foi? — ele finalmente me vê.

Então me toco de que, sim, estou todo melado da espuma do creme dental, porque realmente me distraí. Abro a garrafa de água na mesma hora, viro-me e me preocupo no enxágue.

— Sabe nem escovar os dentes, sinceramente… — Ten resmunga ao passar por mim.

Não respondo, embora eu queira. Vai que ele realmente percebeu que eu estava olhando-o trocar de roupa? E se ele pensar que estou obcecado ou algo do tipo? Ou interessado? Eu não estou obcecado nem interessado.

Cuspo com medo, porque a ideia de ele ter percebido me deixa meio desestabilizado. Mas é só eu esfregar o antebraço contra meus lábios que eu sinto uma cutucada no meu ombro. Viro para ver do que se trata e dou de cara com Ten me dando uma balinha.

— Pra você — ele diz.

— Por quê?

— Porque a gente começou com o pé errado — dá de ombros, então eu pego a balinha de sua mão. — Deveríamos pelo menos tentar um pouco ser amigos ou nos suportar um pouco.

— Hm — balanço a cabeça.

— Vamos fazer as pazes — ergue a mão para mim.

Eu olho da sua mão para o seu rosto e percebo que ele está realmente com cara de quem acordou. Só que não é algo ruim, está até fofo. Parece o Coringa com esse cabelo verde para trás. E sua camisa, olhando de frente, está escrito numa fonte com serifa: “MAKE EMO GREAT AGAIN”.

— Ok — ergo minha mão para apertar a sua.

Ao contrário da primeira vez, não está pegajosa.

— Amigos até nos matarmos.

Eu sorrio com isso. O sol está surgindo no horizonte, trazendo uma paleta de cores já conhecida por mim. Um roxinho meio rosa pinta nossos rostos.

— Ok — balanço sua mão na minha. — Amigos até nos matarmos.

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