Capítulo 30 | Túmulo

[...]

O som abafado da chuva continuava a cair lá fora, ritmado como um relógio que contava o tempo de forma contínua. No quarto de hóspedes, Harry repousava na cama com uma febre alta, o corpo quente demais, a mente mergulhada em um rio que beirava o delírio.

Depois que viu Louis chorar daquela forma na sua frente, sabia que simplesmente não tinha o direito de força-lo a perdoa-lo. Acabou o deixando no quarto e foi descansar num quarto de hóspede.

Infelizmente a chuva que tomou o derrubou de uma forma quase que instantânea, e Harry não desceu para jantar.

O quarto, iluminado apenas pela luz suave de um abajur, exalava o cheiro de compressas quentes, chás não tomados e o suor de quem lutava contra a própria saúde. Anne havia feito o possível para cuidar do filho, mas seus passos cansados pelo corredor atraíram a atenção de Louis.

O garoto estava de pé, apoiado contra a parede, abraçando a própria barriga como se isso fosse suficiente para bloquear a dor que sentia por dentro.

— Ele está pior?– perguntou, tentando manter a voz firme. Já era tarde da noite, quase madrugada.

Anne hesitou por um momento, seus olhos carregados de preocupação.

— Está febril, mas acredito que seja mais emocional do que físico. Talvez a presença de alguém que ele confie o deixe melhor...

Anne nem mesmo precisou terminar a frase. O olhar que lançou a Louis já dizia tudo. Ele ficou parado por mais alguns segundos, imóvel como uma estátua. Mas algo em seu interior o empurrou para frente.

Era difícil demais deitar na cama e tentar descansar quando Louis sabia que no quarto ao lado, o marido suava pela febre. Com passos pesados e lentos, Louis atravessou o corredor e abriu a porta do quarto.

Harry estava deitado na cama, com o peito subindo e descendo em respirações curtas. Seus cachos estavam desarrumados, a testa reluzente de suor. Ele parecia tão vulnerável, tão frágil, que Louis sentiu um aperto no coração.

Louis era bom demais.

Sem uma palavra, ele se aproximou. Pegou a toalha que Anne havia deixado na mesinha de cabeceira, molhou-a na bacia de água e a torceu. Enquanto fazia isso, Louis percebeu que suas próprias mãos tremiam.

Ele odiava essa sensação de fraqueza, de ser incapaz de controlar suas emoções. E naquele momento parecia ser o momento perfeito para que ele ignorasse a Harry, ou que jogasse em seu rosto que Cora poderia muito bem cuidar dele, como ele havia escolhido.

Mas a verdade é que nenhum desses pensamentos, passaram pela cabeça de Louis. O garoto estava realmente preocupado com seu marido.

Quando colocou a toalha fria sobre a testa de Harry, o homem abriu os olhos lentamente. Eles estavam embaçados, mas havia algo neles que o fez prender a respiração.

— Você não precisava vir.– Harry murmurou, a voz tão rouca que mal era audível. O maior não gostaria que Louis se sentisse obrigado a ajuda-lo, não naquelas circunstâncias.

Louis ergueu o olhar para ele, a expressão fria como gelo.

— Não me diga o que fazer.

A resposta curta deveria ter encerrado a conversa, mas Harry permaneceu encarando-o. E Louis, mesmo tentando ser indiferente, não conseguiu ignorar o brilho febril no olhar do marido. Ele repetiu os cuidados em silêncio, trocando a toalha na testa de Harry, verificando os cobertores e, vez ou outra, ajustando o travesseiro.

Cada movimento era meticuloso, quase mecânico, mas dentro de Louis havia uma guerra. Ele queria odiar Harry por tudo que havia acontecido, mas naquele momento, vendo-o tão vulnerável, só conseguia se lembrar do quanto o amava. Queria ver o pai do seu bebê, bem e saudável.

Quando ele começou a se levantar para sair, Harry sentiu uma angústia profunda. Profunda o suficiente para o deixa-lo inquieto.

— Louis...

A esposa parou, mas não se virou.

— Posso...– Harry hesitou, a voz falhando. — Posso tocar em sua barriga?

A pergunta pairou no ar, densa, carregada de significados. Louis ficou completamente paralisado. Por um momento, considerou dizer não, afastar-se, fugir daquela situação que era tão íntima e dolorosa ao mesmo tempo. Mas, então, olhou para Harry. O homem que, apesar de tudo, ele ainda amava.

Sem dizer nada, Louis se sentou novamente na beira da cama. Não tinha certeza se era o certo a se fazer, mas dentro de seu coração ele parecia implorar a si mesmo, pelo toque de Harry.

Pegou a mão trêmula de Harry devagar, e então a guiou até o pequeno volume de sua barriga.

O toque foi suave, hesitante. Harry fechou os olhos, sentindo o calor sob sua palma. Aquele pequeno gesto parecia conectar os dois de uma forma que palavras jamais poderiam.

— Eu não sabia...– Harry sussurrou, a voz cheia de algo que Louis não conseguiu identificar. Talvez fosse culpa? Surpresa? Ressentimento?

Louis não respondeu.

Mas deixou que ele continuasse, porque as palavras pareciam pesadas demais para serem ditas. O silêncio foi quebrado pelo próprio Harry, que abriu um sorriso fraco, quase infantil quando se lembrou de um momento que tiveram juntos.

— Os alhos no travesseiro... Você realmente acreditou que poderia dar certo?

Louis piscou, surpreso, e depois, para sua própria surpresa, riu. Foi um riso curto, quase tímido, mas era a primeira vez que ria em semanas de forma tão genuína.

— Eu estava desesperado.– admitiu, balançando a cabeça.

O comentário arrancou um sorriso de Harry também, embora ele ainda parecesse exausto. Por um momento, parecia que o peso de tudo havia diminuído, apenas o suficiente para que ambos respirassem um pouco mais fácil.

Louis se levantou para arrumar a toalha novamente, olhou para Harry, que agora já parecia um pouco mais sereno que antes.

Aquele gesto que trocaram era tudo, e também nada. Uma promessa silenciosa, um pedido de perdão não verbalizado.

E enquanto o som da chuva preenchia o quarto, os dois ficaram ali, presos entre o passado e o futuro, tentando, de alguma forma, encontrar o caminho de volta um para o outro.

O garoto voltou a se sentar a cama, e Harry voltou a manter a mão quente sobre sua barriga. Ele ainda não conseguia acreditar que teria um filho. Foi o que o cacheado sempre desejou e agora estava acontecendo de uma maneira completamente inesperada. Harry faria de tudo para que aquele bebezinho viesse ao mundo.

Ele já amava de forma incondicional aquela criança.

Louis ficou sentado ao lado da cama até que Harry finalmente adormecesse. O suor na testa do marido já não parecia tão intenso, e a respiração pesada começava a se estabilizar. Ainda assim, Louis permaneceu. Não por Harry, mas pelo bebê que carregava e por ele mesmo.

A dor de estar tão vulnerável, ao mesmo tempo em que trazia à tona todas as mágoas recentes, era um lembrete cruel de que o amor, às vezes, era tão destrutivo quanto reconfortante. 

Quando Harry murmurou algo baixo em seu sono, Louis inclinou a cabeça levemente, os olhos se demorando nele. Seria tão fácil esquecer tudo, perdoar, e acreditar que poderiam ser felizes.

Mas Louis sabia que as coisas não funcionavam assim.

Finalmente, quando os primeiros raios da manhã começaram a surgir, Louis se levantou devagar e saiu do quarto sem fazer barulho.  Tomou uma banho quente e então vestiu uma roupa mais aquecida para que pudesse estar protegido do frio londrino.

Tomou Hércules pelas rédeas, decidido que cavalgaria um pouco para espairecer. A verdade é que Louis deseja pensar na vida e nas decisões que tomaria a frente, sem o olhar venenoso de Magnólia, ou o olhar de pena da sogra.

Louis precisava também, de um lugar para desabafar e que ele ainda não tinha ido antes.

Harry acordou sentindo o corpo pesado e o gosto amargo de febre na boca. A lembrança da noite anterior era fragmentada, mas o calor de Louis ao seu lado era impossível de ignorar.

Ele sabia que Louis havia ficado até que ele fosse vencido pela febre e dormisse. Harry sabia que, mesmo depois de tudo, Louis ainda era a pessoa que cuidaria dele, mesmo que estivesse machucado. 

Sentando-se devagar a cama, Harry deixou os olhos vagarem pelo quarto de hóspedes antes de, impulsivamente, caminhar até o quarto que antes dividia com Louis.

A familiaridade do espaço o atingiu como um soco no estômago. Era a mesma, mas ao mesmo tempo diferente. Havia um vazio que ele não sabia como preencher. Sentia saudades de tudo o que construiu ao lado da esposa naquele lugar.

Acabou abrindo os armários, cheirando as roupas dela com fervor. Mexeu nos perfumes que Louis usava e até nos cremes cheirosos que passava pelo corpo.

Foi ao abrir uma das gavetas do pequeno móvel ao lado em que Louis dormia na cama, que encontrou a foto.

Era uma imagem antiga, amarelada pelas bordas, a imagem que Harry guardou de Cora. Harry reconheceu a expressão nela, aquele sorriso que parecia inocente, mas que agora ele sabia esconder tanto.

O fato de Louis ter guardado aquela foto, que claramente o magoava, fez Harry entender o quão profundo o impacto de tudo havia sido. O cacheado nem mesmo sabia que sua esposa teve acesso aquela imagem, provavelmente acesso as cartas que outrora guardou.

Harry se sentiu um verdadeiro pedaço de lixo.

Sentou-se na beira da cama, e segurou a cabeça entre as mãos, tentando encontrar sentido no caos que havia se tornado sua vida. 

Diante de si, o reflexo no espelho parecia zombar de sua fragilidade. Ele viu o homem que se tornou. Quebrado, egoísta, incapaz de consertar os próprios erros. Fechou os olhos com força, mas isso apenas fez os flashes virem com mais intensidade. As manhãs ao lado de Louis invadiram sua mente como um filme.

Cada pequeno gesto de amor que ele aceitava sem nunca devolver à altura, pesava sobre seus ombros agora.

Respirou fundo, buscando no ar uma clareza que não vinha. Ele sabia que precisava lutar por Louis, mas como?

Algo dentro dele clamava para corrigir o curso, para remendar as feridas que ele mesmo causara. 

No entanto, antes de tudo, havia Cora. A mulher que, por um tempo, ele acreditou amar, mas que agora era apenas uma sombra do que um dia significou para ele. Como encarar alguém que ele sabia estar usando de maneira tão cruel? Não era justo. Não com Louis, e certamente não com Cora. 

Enquanto isso, Louis cavalgava pelo vasto campo que cercava o casarão. O ar fresco da manhã parecia trazer alguma clareza, mas não o suficiente para afastar o turbilhão de pensamentos.

Ele tinha saído muito cedo, apenas com o propósito de estar longe. 

Quando chegou ao um parte do terreno mais afastado, desmontou devagar. O túmulo de Desmond estava adornado com flores frescas, colocadas provavelmente por Anne.

Louis se ajoelhou diante da lápide, permitindo que as lágrimas caíssem livremente. A perda de Desmond o afetou de um jeito realmente inexplicável. Além de seu pai, Louis nutria um carinho paterno pelo sogro.

— Eu nunca pensei que estaria aqui...– murmurou, com os dedos traçando o nome gravado no mármore.
— Você me disse uma vez que família era a coisa mais importante. Mas como é que eu faço isso funcionar agora? 

Louis olhou para o céu, tentando encontrar algum tipo de resposta no vazio cinza. Lembrou-se do dia em que Desmond, casualmente, lhe ensinou a segurar as rédeas do cavalo de uma forma mais firme.

"Você tem que mostrar firmeza, mas não ser duro demais."

Louis se lembrou das risadas do sogro, e de como Zayn brincava com o próprio pai durante a aula de montaria que ambos os homens estavam dando a ele.

Foi mesmo um dia tranquilo, sem conflitos, sem mágoas, sem traições. E naquele momento, Louis decidiu que, por mais difícil que fosse, ele encontraria a força para continuar.

Não por Harry, não por ninguém além de si mesmo e do bebê que carregava. 

Montou de volta no cavalo e retornou ao casarão com uma determinação silenciosa. Ele sabia que o caminho seria difícil, mas estava pronto para enfrentá-lo.

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