Capítulo I: Relicário de Prata

Uma névoa lúgubre abraçava o vilarejo no dia posterior, quase um mau presságio do que estava por vir. Com dificuldade proveniente das dores que se alastravam por toda sua espinha, Anaeryn levantou-se com o fadigado humor matinal.

Lembranças da noite anterior rodeavam seus sonhos e sua mente, rendendo-lhe uma noite mal dormida. Não somente aquela conversa, pois também ocupara considerável parte da madrugada com pensamentos e planejamentos de como seguiria sua viagem da forma mais eficaz possível.

Prendeu os cabelos negros volumosos em um coque apertado e vestiu-se rapidamente, escondendo a parte inferior do rosto. Sua barriga doía de fome, nada satisfeita ao lembrar o gosto insípido da comida do dia anterior. Ela olhou brevemente para o espelho, tentando não pensar muito no quão desgastada parecia. A pele estava ainda mais pálida que o normal, e os olhos negros afiados eram acompanhados de bolsas escuras na parte inferior, revelando o pouco descanso que tivera. Algumas décadas atrás, havia alguém que a amaldiçoaria por ser tão descuidada consigo mesmo.

Esse pensamento abriu um sorriso involuntário no rosto da feérica, acompanhado do familiar aperto no peito que sentia ao retornar às lembranças do passado.

Quando pronta, atravessou a estreita porta de carvalho, os corredores e escadas até chegar no salão principal no andar inferior. A estalagem encontrava-se relativamente vazia, preenchida somente com poucos funcionários que apressavam-se em corrigir a bagunça noturna e, como combinado, uma figura esguia e baixa bebericando a xícara de uma bebida qualquer em uma das mesas, o olhar vagando para lugares distantes das paredes do local.

Não demorou muito para Nicollas perceber pelo canto dos olhos a chegada da sua nova ladra imortal, que caminhava em sua direção com tanta disposição quanto um bêbado de ressaca.

- Sua pontualidade me assusta mais do que qualquer demônio. - ela comentou ao juntar-se a ele.

- Suponho que também não queira perder tempo, então sejamos práticos hoje. - ele cumprimentou, retirando de dentro do casaco um pedaço de papel dobrado e uma pequena bolsa, sacudindo-a de forma a destacar o tilintar de moedas. - Aqui estão quinhentos marcos de ouro. Devem ser suficientes para sua travessia pelo continente.

- O que exatamente quer que eu roube?

O próximo a ser entregue fora o papel, que abriu com cuidado, lendo cada um dos itens listados em garranchos disformes.

Anaeryn ergueu uma sobrancelha, ainda encarando com interesse a lista pretensiosa.

- Definitivamente é um conjunto exótico de pedidos. Parece que alguém realmente gosta de conspirações históricas por aqui. É uma pena que não pude conhecer seu cliente pessoalmente, talvez eu mudasse de ideia quanto ao meu favoritismo humano.

Nicollas semicerrou um olhar de aviso renitente.

- Conheço essa expressão. Não se atreva a considerar ficar com as relíquias para si. - ordenou, fazendo-a soltar um suspiro de desgosto. - Pode tentar roubá-las de volta depois que nós dois recebermos nosso pagamento.

- Que cruel, Nicollas Barth. Não precisa ficar enciumado. - Um brilho divertido dançou nas írises escuras. - Mas vou considerar a nova proposta.

Ele sorriu.

- Dê atenção especial aos artefatos mágicos. - ele pontuou, indicando o papel. - Especialmente a braçadeira de serpente do Grão-Senhor. Soube que Helion o mantém consigo em boa parte do tempo, então receio que seja a parte mais difícil do seu trabalho. Não sei sua utilidade, mas estou ciente que refere-se a algo como quebra de contratos e maldições.

Um tipo de relíquia com poder semelhante ao do seu Grão-Senhor. Era surpreendente pensar que um humano almejava aquilo tão desesperadamente, afinal, promessas são algo perigoso. Na humanidade, tão triviais quanto palavras, mas para o povo imortal, era um vínculo eterno e praticamente inquebrável.

Mas eis ali algo que poderia destruí-lo.

- Me disse também para adquirir algumas informações da corte. Do que se referia?

- Aparentemente, ocorreram tensões políticas entre a rainha Briallyn e os povos imortais pouco antes do seu assassinato.

Ah, ela sabia disso. Não fazia a mínima ideia do tamanho da relevância que o ato tinha gerado nas Cortes feéricas, mas no mundo humano, o assassinato de duas rainhas imortais em um curto espaço de tempo fora drástico.

Na mesma proporção que cresciam os seguidores dos Filhos dos Abençoados, também surgiam rebeldes indignados com a constante ameaça política que os feéricos representavam. Afinal, era certo que os povos imortais os tinham defendido na Grande Guerra, mas e agora? A sombra implícita e angustiante de um novo possível controle de Prythian sobre as terras humanas pairava como uma densa névoa de temor ou esperança - dependendo de para quem perguntasse.

- Até o que foi exposto publicamente até agora, sabe-se que a justificativa do ato foi uma tentativa de nova guerra por parte da nossa rainha. Imagino que os feéricos estejam plenamente acostumados com a imponência sobre nós e não pensaram muito nas consequências. - Nicollas prosseguiu. - A verdade é que essa desculpa não possui nenhuma prova concreta e haviam muitos ao lado de Briallyn ao decidir aliar-se a Hybern com um novo governo. Uma fantasia tola, na minha opinião, mas o que realmente importa é que esse assassinato continua sendo investigado. E segundo minhas fontes, a Corte Diurna está diretamente envolvida com isso, assim como a Noturna e a Outonal. Seria como acabar com dois problemas numa jogada só, informações valiosas e deliciosamente caras por aqui.

- Você realmente quer ter controle total sobre o início de uma nova guerra. - ela disse, numa mistura de admiração e desprezo.

As palavras não denotavam muito sentimento, ainda sim, Anaeryn sentiu certo desconforto embrulhar seu estômago. Não pela guerra, afinal, estava mais do que acostumada a conviver com a sombra de um novo conflito sussurrando em seus arredores, mas pela menção de uma palavra.

Hybern.

Seu lar. Aquele que não via há muito tempo, mas ouvira incessantemente nos últimos meses por todos os cantos, trazendo consigo um conjunto de memórias inconvenientes e ambíguas. Fazia lembrar de tudo. Principalmente do seu pai.

Ele certamente estaria irritado de saber que, após sua morte, ficara lembrado simplesmente como "Rei de Hybern" ou "Rei Invasor". O maldito sempre tivera uma estranha obsessão de ter seu nome gravado na história, mas ela duvidava que fosse recordado por outra pessoa além dela pelo resto das eras.

Uma pequena punição.

- Nenhum tipo de vantagem deve ser descartada. - foi sua resposta.

- Nesse caso, fico feliz de saber que esse tipo de coisa não seria bom para seus negócios. Se Briallyn realmente foi assassinada por isso, odiaria perder meu fornecedor e cliente favorito.

- Parece estranho, mas uma rainha é muito mais fácil de se matar do que um ladrão. De se encontrar, principalmente. - Nicollas levantou-se, ajeitando o colete e limpando um fiapo invisível, deixando claro também que aquela conversa estava por acabar. - Creio que não tenha mais dúvidas agora, certo?

- Só mais uma. Você trouxe o que te pedi?

Ele assentiu, fazendo um sinal sutil com os dedos. No mesmo instante, ouviu os passos de um homem corpulento e armado se aproximando, carregando consigo uma bolsa de couro enrolada sobre um tecido grosso. Ele cumprimentou com a cabeça e deixou o material sobre a mesa.

No mesmo instante, Anaeryn sentiu uma leve ardência percorrer todo seu corpo.

- Admito que estou curioso. - Nicollas diz, assim que seu capanga se distanciou novamente. - Pensei que feéricos não pudessem manusear nenhum material com ferro e madeira de freixo.

- Realmente não podem, pequenos cortes podem causar a mesma sensação de um mutilamento. São totalmente fatais para meu povo. - ela ergueu as mãos, como se fosse acenar. - Essas luvas anulam o efeito, então consigo manusear desde que não entre em contato com o resto do meu corpo. Seria burrice da minha parte viver durante décadas entre humanos e não aprender a lidar com isso - acrescenta enquanto desembrulha cuidadosamente a parte inferior do tecido, apenas o suficiente para que pudesse ver as lâminas das adagas feitas pelo material. Eram pequenas e alongadas, como varinhas ou agulhas gigantes. Perfeito. - Os outros também estão aqui?

Nicollas negou.

- Armas contra feéricos são tão comuns quanto água, especialmente aqui tão perto da antiga fronteira. Agora certamente não estava contando com o pedido da moeda e o Sussurrador.

Ele retirou do bolso da calça uma pequena moeda e um frasco com líquido transparente. A moeda era mais leve, composta brutamente por madeira e revestida sobre uma fina camada de ferro fundido, deixando apenas a parte central exposta por freixo. Era possível entrar em contato com as duas superfícies de uma única vez.

- Felizmente, encontrei um ferreiro confiável que pudesse improvisar a moeda durante a madrugada e mestre alquímico em uma cidade próxima para o Sussurrador. - explicou, depositando o objeto na mesa. - Posso supor para que serve o veneno, mas e a moeda?

- Emergência. - ela diz, puxando um cordão escondido por baixo das roupas que continha um pingente relicário de prata. - Vou precisar das adagas enquanto estiver atravessando o continente por contas das bestas feéricas que habitam nos recantos isolados das florestas. No entanto, assim que chegar na Corte Diurna, precisarei me livrar das armas, elas chamariam muita atenção. A simples presença torna o ar ao redor mais sufocante. - Com o gesto rápido, ela abriu o compartimento e colocou a moeda dentro, fechando-o em seguida e o escondendo novamente. - Apesar disso, preciso de uma garantia sutil em situações mais... drásticas. O relicário consegue disfarçar o efeito da moeda enquanto permanecer fechado por conta da prata.

- Bem pensado. - ela constatou, voltando seu olhar para o frasco de veneno, que mesmo pequeno, estava preenchido pela metade. - Acha que será suficiente?

- Se eu precisar usar isso mais de três vezes, significa que estou chamando mais atenção do que deveria. Se estou chamando atenção, significa que o plano falhou. Se o plano falhar, estarei morta. - ela disse, agora guardando o Sussurrador em um dos bolsos do colete. - Então, para sua riqueza e minha sobrevivência, vamos torcer que seja mais do que suficiente.

Anaeryn encarou o limite fronteiriço que separa Prythian das Terras Humanas reconhecendo o peso daquela decisão em cada poro do seu corpo, que por instinto gritava para correr o mais longe possível dali. Da sua provável morte.

Tratavam-se das ruínas da muralha que tinha sido destruída há poucos meses pela última guerra, restando apenas escombros da anterior glória. No entanto, o verdadeiro limite era a floresta congelada que se seguia por alguns quilômetros até lentamente transformar-se no paraíso verde da Corte Primaveril. Anaeryn pressionou a mão contra o cabo de Santa em busca do seu calor reconfortante diante do frio e da inevitável agonia causada pela presença de adagas de freixo, repulsavam sua pele, mesmo recobertas.

A feérica exilada permitiu que essa dor fosse bem-vinda, afinal, suspeitava que seria o menor de seus problemas.

Então atravessou.

Helion, o Grão-Senhor da Corte Diurna e Senhor das Maldições, estava inquieto.

Ele encarava o céu noturno estrelado distraidamente, sentindo uma estranha sensação de alarme remexendo suas entranhas. Ele tinha vários motivos para isso, afinal, mesmo após a derrota do Rei de Hybern e da Rainha Mortal, a ameaça do caos pairava sobre a mente de todos os feéricos de Prythian. Ainda sim, sabia que sua agonia não se devia a isso. Era um sentimento estranho que surgia sem uma explicação lógica desde a manhã daquele mesmo dia, como se algo houvesse mudado.

O Grã-Senhor tinha séculos de experiência suficientes para saber que não deveria ignorar aquela sensação, pois geralmente estava certo em seus receios. Apesar dos pensamentos distantes, o leve farfalhar dos lençóis e a sensação de que estava sendo observado o levou a olhar de relance para a figura feminina nua em sua cama, que o encarava com curiosidade.

- Algo o incomoda, Grão-Senhor? - a fêmea disse, em tom meloso, mas genuinamente preocupado. Helion virou seu corpo em sua direção, lançando um sorriso ladino.

Apenas as burocracias políticas entediantes de sempre. - Desconversou, inclinando a cabeça para observá-la melhor. - Não quero aborrecê-la com isso.

A fêmea sorriu fraco e se ajeitou, cobrindo os seios e a parte inferior do corpo com o lençol, mas sem desviar o olhar dele. Era impressionante como, sob mesmo a luz da lua, o feérico conseguia carregar um pouco de luz consigo, uma magia imortal enraizada em sua linhagem.

- Não me aborrece. - ela respondeu, gentilmente. - Pode conversar comigo, se desejar. Estou aqui para servi-lo, meu senhor.

Sim, ela estava. E isso era terrivelmente frustrante, mas não podia culpá-la, pois de qualquer forma, não tinha intenção alguma de trocar informações importantes com a feérica, por mais grosseiro que pudesse soar. Ele não era ingênuo para revelar confidências para a primeira fêmea bonita que aparecesse em sua cama.

Helion se aproximou em passos lentos, sentando na lateral esquerda da cama e inclinando-se em direção a ela, deixando um beijo longo em seu pescoço. Ela suspirou e estremeceu.

- Não há necessidade, minha querida. - respondeu, deslizando os dedos pelos cabelos negros da fêmea, depois pela bochecha até alcançar a ponta do seu queixo, então o ergueu levemente para encará-lo nos olhos. - Mas se realmente não estiver tão cansada, consigo imaginar outros meios para entretê-la. - acrescentou, sorrindo ladino.

A feérica corou, mas correspondeu ao seu sorriso logo em seguida, colando seus lábios em um beijo lento. Helion posicionou cada um dos braços entre o quadril dela, se inclinando até que ela estivesse totalmente deitada novamente, os cabelos longos espalhados pelos lençóis enquanto sua mão deslizava pelo cabelo dele.

Ele detectou instantaneamente o cheiro do desejo despertando nela, então grunhiu e deixou que suas mãos vagassem deliberadamente pelo corpo esguio, arrancando suspiros da fêmea.

Então Helion sentiu uma pontada de agonia reverberar no próprio, o que o fez se afastar bruscamente, levando uma mão ao peito, surpreso. A feérica o encarou, confusa.

- Está tudo bem? - ela perguntou, recuperando a postura.

O Grão-Senhor, no entanto, estava concentrado demais naquela sensação para formular alguma resposta adequada. Não era nenhum tipo de dor física, apenas um aperto simulado, que o puxava para longe. Ele iria preferir que realmente fosse alguma questão de saúde, pois ao menos teria ideia de como lidar com a situação.

Helion olhou para a janela outra vez, sua mente que parecia se fincar no horizonte, procurando por algo que nem ele mesmo entendia.

A criatura rosnou alto, mostrando os dentes cobertos de um líquido escuro e viscoso, enquanto cravava uma das garras no antebraço esquerdo da feérica, arrancando um grunhido de dor.

- É, vai se foder você também. - Anaeryn resmungou, concentrando sua atenção em sentir a energia repulsiva do ferro de freixo em vários pontos ao redor de si. Suas adagas perdidas e espalhadas pelo ambiente escuro da madrugada da floresta da Corte Primaveril, com árvores tão altas que ofuscavam o brilho da lua, dificultando ainda mais seu campo de visão. Ela prendeu um dos braços entre ela e a criatura, que estava sobre ela no chão, tentando abocanhá-la, enquanto a outra se estendeu para fora, atraindo aquela energia negativa em sua direção, contra seus instintos. Um leve assobio de lâminas voando pela noite atraiu a atenção da besta, que antes que pudesse entender o que estava acontecendo, gritou ao sentir várias adagas de freixo se cravando por todas as regiões fatais do seu corpo. Em segundos, a criatura caiu no chão ao seu lado, vomitando no próprio sangue.

Anaeryn levantou com certa dificuldade. Somente agora tinha percebido que havia recebido cortes profundos em uma das pernas. Ela olhou ao redor com cautela, onde seis corpos daquela mesma raça a cercavam, todos mortos. Uma pequena alcateia de bestas noturnas que imaginavam ter encontrado a presa perfeita quando a encontraram acampando sozinha na floresta.

- Que recepção calorosa. - ela ironizou, divagando seus pensamentos para atrair as adagas de volta para seu corpo, guardando uma por uma em suas devidas posições. Verificou calmamente seu corpo, chegando à conclusão de que precisaria parar sua viagem e passar na primeira aldeia da corte que encontrasse. Atrasaria um pouco seu percurso, mas era mais seguro.

Por hora, apenas recolheu seus pertences e se afastou do local, pois não queria estar ali quando outros predadores reconhecessem o cheiro fresco dos corpos. Ao encontrar um lugar relativamente seguro da floresta, ela se prontificou em fazer curativos improvisados nas regiões onde estava perdendo mais sangue, acomodou-se da melhor forma que podia e adormeceu treinando seus escudos mentais, agora um pouco fragilizados após passar anos sem qualquer prática em terras humanas.

E naquela noite, pela primeira vez em décadas, Anaeryn sonhou. Sonhou com o brilho ofuscante do sol sobre um céu azul limpo e se sentiu segura.

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