CORRENTE DO MAL

As duas meninas de apenas sete anos, em seus vestidos floridos e rodados, deram as mãos e rodopiavam alegres, porque como quaisquer crianças amadas e bem cuidadas, felicidade é seu estado natural. O homem que se aproximou das crianças no gramado da praça naquele radiante dia de Sol, parecia contente também e encantado enquanto aplaudia a brincadeira das crianças.

De mãos dadas, as meninas rodopiavam felizes, quando grossas gotas de chuva vieram do céu e grudavam seus cabelos que não mais bailavam aos ventos.

O poderoso relâmpago feriu a terra ao longe, mas parecia tão próximo que as crianças pararam de girar, abraçando-se e chorando aos gritos e com medo, muito medo.

O homem chegou mais perto das meninas, para tentar consolar o choro, mas elas só faziam chorar mais e mais. A presença dele parecia ser pior do que a dos relâmpagos. E o homem viu as frágeis meninas, como crianças que eram, derreterem-se à olhos vistos sob a chuva como se fossem uma escultura de açúcar.

— Não! – Gritou o homem, à flor dos pulmões, sentando-se na cama.

Uma mulher, uma enfermeira, olhava para ele com ar grave, censurando-o por ter gritado.

Uma enfermeira.

O homem então percebe que está em um leito de hospital. Percebe em seus braços tubos ligados a soro e medicamentos do tratamento que recebia. Sentiu então as dores e lembrou que estava machucado.

Trazia olho roxo, dentes quebrados, diversos hematomas e toda sorte de dores. Sua perna direita estava rígida, enfaixada.

— E-eu fui atropelado? Onde estou? – Perguntou o homem, em uma voz fina. Uma das coisas que ele mais odiava em si era sua voz fina.

A enfermeira que estava cuidando de um homem desacordado, o segundo ocupante do quarto coletivo, pareceu rodopiar como uma bailarina enquanto ia até seu leito, rodando a saia branca e parando em frente ao paciente que acordara. Imediatamente leva o dedo indicador aos lábios enquanto sorri para o homem acordado.

— Não fale tão alto, Luana, vai acordar seu colega de quarto.

A voz dela era doce, mas jocosa, em tom provocativo.

— Onde estou? O que... – O rapaz tentou falar, em tom assustado.

— Shhh... – Ela sorriu, levando seu indicador aos lábios dele. Falava como se o homem na cama fosse uma criança. – Não se agite senão vou lhe dar um remedinho para dormir. – E, fazendo uma careta tristonha, informou – Aqui é um hospital psiquiátrico para pacientes perigosos, sabia? Não lembra por que está aqui? Não lembra das meninas, as filhas da atriz? Você as achou e chamou ajuda, mas... – E, mordiscando os lábios, completa – As pessoas que fizeram isso com você acharam que você fez aquilo com as crianças e então... Então achavam que estavam fazendo justiça.

Do bolso, ela tira um espelho de mão e deixa o homem olhar o próprio rosto. Estava horrível, destruído. Agora se lembrava. Apareceram pessoas de todos os lados e lhe agrediram, espancando ferozmente. Não lembra dos detalhes, mas sim da dor das pancadas. Até sua alma estava doendo.

A enfermeira mostra um recorte de jornal, uma foto onde duas meninas sorriam.

— O-o que? – Gaguejou o homem, ao ver que a enfermeira lhe perguntou algo.

— Eu coleciono curiosidades sobre os pacientes que vem me visitar aqui. – Sorriu a enfermeira, abrindo a blusa e guardando a rota foto no bojo do sutiã, do lado esquerdo. – Eu só perguntei porque as pessoas estão comentando. – Quase sussurrou ela. - Foi você? - Questionou a enfermeira, com a expressão de uma mãe bondosa que pergunta ao filho se ele fez uma travessura. – Foi você que fez aquilo com elas?

As lembranças voltam mais vivas à mente do homem. Ele se lembra do que lhe acusaram. Lembra do absurdo. Da gritaria, da confusão, de pessoas furiosas... Como se ele fosse capaz. Era impossível.

Subitamente, todos aqueles remédios e o cheiro de hospital começaram a lhe enjoar. Precisava sair dali, precisava de ar puro, precisava fugir daquela loucura.

— Me tire daqui! – Ele gritou debatendo-se na cama ao não conseguir se levantar e perceber que as duas pernas estavam imprestáveis. – Não fui eu!

Enquanto ele gritava, a enfermeira pulou na cama sentando-se sobre seu peito, as pernas grossas e fortes imobilizando os braços do acamado. Não se preocupava com os gritos do homem, mas sim com o pano embebido de clorofórmio que tirou do bolso e com a seringa pronta, cuja proteção da agulha arrancou com os dentes.

A cena Dantesca não causava tanto espanto, pois quando se trabalha em hospital psiquiátrico para pessoas perigosas, não é absurdo levar um pouco de clorofórmio e alguns sedativos fortes para pronto uso.

Ela espetou a agulha enquanto o clorofórmio invadia as narinas do homem, em uma combinação que o apagou rapidamente.

As duas meninas brincavam felizes no carrossel.

O homem chega e, sorrindo, detém o giro do brinquedo com as mãos e empurra os cavalinhos na direção contrária, trazendo as meninas para perto de si.

Elas param de rir e olham para ele sem emoção.

Quanto mais ele empurra o brinquedo, mas distantes ficam as meninas.

O homem acorda em um pulo, buscando o ar que não vem. Sente mais e mais dores, então repara que está amarrado na cama.

— Culpa minha. Eu pedi para lhe amarrarem, não gosto de pacientes violentos. E eu pedi que lhe acordassem também. – Disse uma voz.

O homem olha para o lado e vê uma mulher sentada em uma cadeira ao lado de seu leito, vestida em roupas sociais. Usava pesados óculos e não olhava para o acamado, mas sim para uma prancheta onde não parava de escrever.

— Eu vou ser sua psiquiatra hoje. – Disse ela, tirando os olhos da prancheta e olhando sem emoção para o paciente. – Como eu devo lhe chamar? Em seus documentos consta que seu nome e Luana, mas talvez não fique confortável com esse nome, não?

— Luan. – Disse o homem, de imediato. E, olhando seus pulsos amarrados na cama, seus olhos ficam marejados – Me amarraram... Por que...

— A enfermeira disse que você tentou ataca-la, Luan. – Disse a mulher – Isso é verdade?

Luan se sentiu meio grogue. Estudou o rosto da psiquiatra, mas era indecifrável como o da enfermeira. Eram rostos semelhantes, indecifráveis, com grossos lábios e batom vermelho sangue.

— Não precisamos falar sobre isso se não quiser. – Falou a mulher em tom profissional e ajeitando os óculos, depois dos segundos de silencio dele. E emendou – Eram duas crianças, duas lindas meninas gêmeas que eram cheias de vida, mas estavam mortas quando encontradas com você. O que aconteceu, Luan?

— E-eu não fiz nada... Eu... – Gaguejou ele.

— Então quem fez? – Perguntou a psiquiatra em um sussurro, inclinando-se na cama e ficando perto do paciente – Foi você?

— Não... Não... Não... – Começou a chorar Luan, fechando os olhos e balançando a cabeça em sinal negativo, como se a conversa o machucasse.

— Pode confiar em mim, Luan. – Sussurrou a psiquiatra, quase dentro do ouvido dele – Alguém despiu aquelas meninas, abusou delas e as matou. Quem fez aquilo? Vamos, me diga. – Falou tão perto que ele sentiu o adocicado e quente hálito dela dentro de seu ouvido. – Foi você que matou aquelas crianças?

— Não! – Gritou Luan, à flor dos pulmões.

E começou a se debater freneticamente, ameaçando derrubar o leito. Durante o escândalo, o outro paciente no quarto sequer se moveu. A psiquiatra também não se abalou muito.

Na verdade, ela não se abalara em nada. Enquanto Luan se debatia como um animal ferido, ela cantarolava uma canção enquanto calçava as luvas. Em meio aos gritos dele, ela sacou de sua valise uma seringa e um frasco, preparando uma injeção.

Luan ainda gritava quando ela injetou a solução, mas tão forte era o sedativo que os gritos cessaram em segundos, e alguns segundos depois ele apagou completamente.

As duas meninas estão brincando na areia, sujando suas mãos, vestidos e cabelos, mas se divertindo como nunca enquanto montavam lembranças de infância inigualáveis.

Luan as observa de longe, então corre em sua direção.

Ele sempre adorou crianças.

Luan corre e continua correndo, mas não consegue se aproximar.

As meninas olham para ele com rostos indecifráveis, com ar de reprovação, quando o banco de areia onde estavam afunda como areia movediça e elas são tragadas pela terra lentamente.

Luan grita desesperado e estica a mão para tentar ajudar as meninas, mas elas não retribuem o gesto e observam-no com um ar de medo e repulsa até afundarem definitivamente na areia.

O homem levanta-se da cama com um grito mudo preso na garganta e esbugalhados olhos assustados.

Repara que ainda está amarrado na cama, o corpo destruído e com machucados abertos sob os curativos, pernas inúteis, olho roxo.

Percebe também que seu companheiro de quarto continuava desacordado.

— Não acho que ele vai começar uma conversa amistosa ou algo do tipo. Está pior do que você, é a verdade. – Disse uma grave voz.

Luan volta-se e identifica que no banco onde antes havia a psiquiatra estava sentado um homem idoso, com fartos cabelos e barbas bem grisalhos, óculos de lentes grossas e um pouco acima do peso. Esses detalhes eram irrelevantes antes do principal: vestia uma batina.

Era um padre.

— Não me olhe desse jeito, filho, não vim lhe condenar. – Disse o sacerdote, sorvendo um gole da bebida quente que trazia. – Estava fazendo o serviço religioso da capela, quando me falaram do novo paciente que trazia tantos santos católicos na carteira. Era minha obrigação vir lhe ver.

— Padre... – Suplicou Luan, com os olhos marejados – Por favor, me solte... Estão me acusando... Estão me acusando...

— Eu soube pelos jornais da história das meninas, filhas da atriz. – Disse o padre por detrás das barbas, de modo condescendente – Um cristão não seria capaz de fazer aquilo.

— Não, padre, não... – Suplicava Luan, em seu choro - Jamais faria aquilo com crianças... Eu, eu... Eu adoro crianças...

— Talvez... – Disse o sacerdote, inclinando-se na cadeira e envolvendo as mãos de Luan nas suas. – Talvez esse seja o problema...

A boca de Luan se abria, mas nada saia. Apenas as lágrimas saíam de seus olhos, enquanto o desespero quase fazia seu coração parar.

— Do ponto de vista religioso, você está perdoado assim que se arrepende, Luan. Com os homens, vai funcionar a justiça dos homens. – E, olhando nos olhos dele com piedade, pergunta – Por que você fez aquilo, filho?

— Eu... – Quase sussurrava Luan, em um tom de súplica – Não foi culpa minha, padre... Eu... Eu só estava passando, elas estavam brincando... – E, após uma crise de choro, se controla e diz – Não queria... Eu não queria... Não sei o que dizer, padre...

O padre ficou observando o rapaz, como se compartilhasse da dor dele. Por fim, deu alguns tapinhas em sua mão.

— Eu sei exatamente o que dizer, Filho. Sei exatamente o que dizer. – E, levantando-se de sua cadeira, diz – Espere aqui. Eu volto já.

— Não padre, não me deixe. – Suplicou Luan, enquanto ele levantava. – Padre, por favor, me solte. Ainda há tempo. Eu faço o que o senhor quiser. Padre! – E, vendo o homem sair pela porta do quarto, teve um acesso de fúria. – Padre! Padre!

E gritou e se contorceu na cama, tentando soltar as amarras que não cediam por nada.

Sozinho no quarto, sua mente funcionou com clareza. Andava pelas ruas revoltado com o mundo cruel e mesquinho em que vivia. Então viu as lindas meninas brincando e quis brincar com elas. Elas não queriam brincar. Tentaram fugir, ele foi atrás. Tentaram gritar, ele tapou suas bocas. Tentaram lutar, ele era mais forte.

Tentaram...

— Metade do meu reino por seus pensamentos. – Disse a voz da mulher que entrou no quarto. Logo depois, ela emendou – Melhor não. Cabeça vazia é a oficina do diabo.

— Você. – Disse Luan, reconhecendo a enfermeira que entrava e se sentava ao seu lado. – O-onde está o padre? – Gaguejou Luan.

— Estou bem aqui, meu filho. – Disse a voz do padre.

Luan esbugalhou os olhos.

A enfermeira falava com a voz do padre.

— Co-como... Q-quem é vo-você? – Assustou-se Luan.

— Não se preocupe, você me conhece tanto quanto conhecia aquelas meninas, das quais você nem sabe o nome. – Sorriu ela, como se estivesse tendo uma conversa feliz – Mas vou falar um pouco sobre mim. Não sou padre. Nem psiquiatra. Nem enfermeira, sabia?

Luan tentou falar, tentou gritar, mas ela foi mais rápida. Com a mão direita, apertou-lhe o pescoço fazendo-o abrir a boca, enquanto enfiava um pano quase até sua garganta abafando seus gritos.

Quando terminou ficou observando Luan, que se debatia na cama.

— Você nem sabia o nome delas, não é? Claro que não sabia. – Disse ela, em tom condescendente quase professoral – Eram gêmeas, Maira e Maria. Tinham tanta vida pela frente. – E, levantando a saia, meteu a mão na parte interna da coxa direita de onde arrancou um punhal que trazia amarrado. - Tanta vida...

Em murmúrios e gestos, Luan gritou pela vida. A enfermeira então vai até o outro ocupante do quarto, posicionando-se atrás dele de forma a poder continuar observando Luan. E, sem tirar os olhos do rapaz que se debatia, falou ao ouvido do homem desacordado, em um tom de voz alto o suficiente para Luan ouvir também.

— Eu disse para me deixar agir. Tive tanto trabalho para chegar aqui sem ser vista e você não me deu crédito. Agora você acredita em mim? Você ouviu ele confessar, não ouviu? – E, como o homem sequer se mexeu, ela esmurrou o rosto dele enquanto arrancava os cobertores, expondo seu corpo. – Não ouviu?!

Luan, se pudesse, teria libertado do peito o mais poderoso grito de sua vida. Sob os cobertores, em uma cama coberta de sangue, estava um enfermeiro em seu uniforme de trabalho que um dia foi branco e agora estava tingido de vermelho sangue.

Luan se debatia tanto que seu leito chegava a balançar.

A mulher cerrou os olhos e parecia sentir prazer diante do desespero de sua vítima, caminhando lentamente para o leito de Luan. Percebe então que sujara a ponta do dedo com o sangue do enfermeiro.

Sem tirar os olhos de Luan, lentamente lambe a ponta do mesmo dedo.

Em um gesto brusco, salta sobre a cama e agarra Luan pelo pescoço, forçando-o a olhar em seus olhos enquanto usa o peso de seu corpo para cravar o punhal no peito de Luan, atravessando seu coração.

Ela chega a gemer de prazer enquanto Luan se contorce e revira os olhos à medida que a vida abandona seu corpo lentamente.

Quando tudo termina a enfermeira calça luvas e, lentamente, com ajuda de uma gaze embebida em uma solução limpa todos os locais em que tocou, apagando todas as digitais.

Terminado o serviço, olha para Luan estirado no leito com seus olhos esbugalhados e sem vida.

A enfermeira então enfia a mão por dentro da blusa, tirando cuidadosamente o recorte de jornal que trazia escondido sobre o seio esquerdo, aquecido pelas batidas de seu coração.

Observa a foto por alguns segundos.

— Agora acabou. – Sussurrou ela, beijando a fotografia com ternura. – Mamãe falou que ia pegar ele, não falou?

Ainda beijando a fotografia, sai pela porta do quarto e ganha os corredores do hospital.

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2.494 palavras

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