Capítulo 3: Fria Noite


O ar frio da noite condensava a respiração de Aria, formando pequenas nuvens que pairavam brevemente no ar antes de se dissiparem. Ela esfregou os braços por cima do casaco jeans surrado que usava, numa tentativa inútil de afastar o clima gélido da noite em Sombra Alta. O letreiro do Lunaris, com suas letras cursivas prateadas iluminadas por uma lua crescente cintilante, havia sido desligado, deixando a fachada do restaurante envolta em sombras.

A rua estava praticamente deserta, exceto pelas luzes fracas e bruxuleantes dos postes, que emitiam uma iluminação amarela e, por vezes, esverdeada. A ironia de chamarem aquele bairro de "Terras das Lâmpadas" não passava despercebida por Aria. Com tão poucas luzes iluminando a madrugada, parecia mais um lugar de sombras, perfeito para esconder segredos.

Ela observou os funcionários rapidamente se dispersando, murmurando "adeuses" e "até-logos" apressados, ansiosos para retornar ao calor e segurança de seus lares. Aria permaneceu parada junto à porta dos fundos, movendo o corpo de um lado para o outro, na esperança de gerar algum calor para afastar o frio que penetrava até os ossos.

— Ainda aqui? — A voz de Petrus a fez se virar. Ele agora vestia um longo casaco escuro, com um cachecol rosa vibrante envolto em grande parte de seu rosto largo. Ele lançou um olhar de soslaio para Aria enquanto trancava as portas de seu restaurante.

— É isso que ganho por te fazer companhia? — Aria provocou, um meio sorriso brincando em seus lábios. — Até os seguranças já foram embora...

Ela se permitia um pouco mais de ousadia no fim do expediente, quando o peso das formalidades parecia evaporar junto com o último cliente.

— E isso seria o quê? Uma tentativa de amolecer meu coração para que eu não desconte seus atrasos no seu salário? — respondeu Petrus com um tom seco, caminhando rumo ao seu carro luxuoso, cujos cromados brilhavam sob a fraca luz dos postes.

— Ei, hoje eu trabalhei bem! Servi os sanguessugas e tudo mais — pontuou Aria, acelerando o passo para acompanhá-lo. — E ainda queria explicar o atraso...

— Se for sobre o gato... — Petrus abriu a porta do carro e já estava prestes a fechá-la na cara de Aria.

— Não é sobre o gato, não exatamente. É sobre meu pai — disse ela rapidamente, a mão alcançando a porta antes que ele a fechasse.

Petrus parou, o rosto escondido na sombra, mas havia uma pequena faísca de interesse em seus olhos.

— Oh... Arthur está bem? — perguntou, sua voz carregando um raro traço de preocupação.

— Sim, ele está bem, não está doente nem nada do tipo. Só que, com a aproximação do Baile Escarlate, a demanda por fotos está aumentando. Ele anda ocupado demais... — Aria fez uma pausa, hesitando antes de continuar. — Ele costumava ficar com o Raptor enquanto eu trabalhava, mas hoje não pôde. E, bem... Raptor não pode ficar sozinho. Ele quase causou um incêndio no apartamento da última vez.

Petrus bufou, impaciente.

— Certo, certo, entendi... — Ele cortou, os olhos estreitados. — Não sei por que você ainda mantém esse bichano, se ele causa tantos problemas...

Aria apertou os lábios antes de responder, sua voz mais baixa.

— Ele era da minha mãe...

O silêncio que se seguiu era pesado, quase tangível. O olhar de Petrus suavizou por um breve momento, e Aria sentiu um aperto no peito. Petrus não era apenas seu chefe exigente e rígido; ele era, ou ao menos havia sido, um amigo da família. Ele conhecia Arthur e conhecia Marine, sua mãe. Sabia de todo o drama que rondava sua vida familiar. E sabia, mais do que ninguém, sobre o misterioso desaparecimento de Marine...

Petrus suspirou, seu olhar desviando-se.

— Pois bem, só não se atrase mais, Aria. Os outros funcionários podem começar a pensar que estou te favorecendo de alguma forma. — Com isso, ele fechou a porta do carro com um estrondo final, deixando-a para trás nas ruas frias e desertas de Sombra Alta, sem sequer oferecer uma carona.

— Você está pronta para ir? — A voz suave, mas inesperada, fez Aria sobressaltar. As ruas não estavam tão desertas quanto ela pensava. Encostada em um muro próximo, Maria a observava, enrolada em um casaco tão volumoso que parecia ter se transformado em um grande urso de pelúcia.

— Ei! Você ficou esperando todo esse tempo? Está louca? — inquiriu Aria, se aproximando da amiga, a surpresa ainda evidente em sua expressão.

Maria apenas sorriu em resposta, um brilho divertido nos olhos.

— Eu estava comendo... — disse ela, levantando o sanduíche enorme que segurava nas mãos. — Não conseguiria fazer isso enquanto andava para casa.

O sanduíche era feito com os restos da lagosta não consumida pelos vampiros. Petrus, em sua benevolência (a ironia era quase palpável), havia oferecido os restos praticamente intocados da refeição dos clientes de dentes pontudos para os funcionários que haviam doado sangue. Afinal, eles precisavam repor suas energias e células sanguíneas perdidas — e, claro, não poderiam tirar folga no dia seguinte. Petrus, sempre tão "compreensivo" e "atencioso" como patrão.

— E além disso... — Maria continuou, dando uma mordida generosa no sanduíche, falando com a boca cheia. — Vamos na mesma direção.

Aria bufou, mas um sorriso pequeno brincou em seus lábios enquanto dava de ombros. Enfiou as mãos no bolso de suas calças jeans e começou a seguir a rua de paralelepípedos, que descia suavemente sob seus pés.

— Mesmo assim — murmurou. — Desculpa por ter te feito esperar.

Maria apenas balançou a cabeça, ainda mastigando o alimento, sem parecer minimamente incomodada. Com passos rápidos, ela alcançou Aria, caminhando ao lado da amiga.

— Então, seu pai está mesmo ocupado com o Baile Escarlate? — questionou Maria enquanto viravam na esquina, as luzes trêmulas dos postes lançando sombras distorcidas pelo caminho.

— Você estava ouvindo minha conversa com Petrus? — Aria jogou a pergunta de volta, um sorriso brincando em seus lábios.

Maria corou instantaneamente, o rosto adquirindo um tom tão vermelho quanto um tomate maduro. Para disfarçar, ela deu uma grande mordida em seu sanduíche de lagosta, mas a mordida foi tão apressada que quase a sufocou. Ela começou a tossir violentamente, fazendo Aria rir enquanto dava tapinhas nas costas da amiga para ajudá-la a recuperar o fôlego.

— Não foi minha intenção! — Maria ofegou entre um ataque de tosse e outro. — Eu só estava ali te esperando e... meio que ouvi.

Aria riu mais alto, balançando a cabeça.

— Não se preocupe, não é como se fosse um grande segredo. — Ela deu de ombros, o sorriso ainda nos lábios. — Mas, devo admitir que não fui totalmente verdadeira. Digo, meu pai está sim atarefado com o Baile, mas isso não foi exatamente o motivo do meu atraso...

Maria a encarou com grandes olhos curiosos, claramente querendo saber mais, mas talvez envergonhada de parecer intrometida demais.

Aria suspirou antes de continuar, não vendo razão para esconder a verdade.

— Eu apenas dormi demais! — confessou, sem rodeios. — Mas, para ser justa, Raptor tem parte da culpa. Ele passou a noite reclamando por eu não deixá-lo sair para "namorar" — ela fez aspas com os dedos — e ficou miando, arranhando a porta, agindo como um verdadeiro demônio. Com isso, acabei dormindo tarde demais... Acordei atrasada e ainda tive que ajudar meu pai com algumas entregas. Só depois disso veio a questão do Baile Escarlate. Tudo virou uma bola de neve e, bem... aqui estou. Nem tive tempo de me arrumar direito. Olha só para mim!

Aria fez um gesto amplo para si mesma. Ela vestia jeans rasgados nos joelhos, desgastados pelo tempo e pelos hábitos enérgicos de Raptor. O casaco jeans que usava por cima da camisa de mangas longas preta era claramente insuficiente para o frio implacável de Sombra Alta, que parecia ganhar vida própria assim que o sol desaparecia no horizonte. Seus tênis, que outrora eram brancos, estavam gastos e manchados, dando a impressão de que já haviam suportado muitas noites como aquela.

— Se quiser meu casaco... — ofereceu Maria, já desabotoando o volumoso casaco com uma das mãos, enquanto equilibrava o enorme sanduíche com a outra.

Aria negou com a cabeça, fazendo seus cachos negros balançarem de um lado para o outro. Antes presos firmemente em um coque durante seu turno no restaurante, agora eles caíam soltos sobre seus ombros, bagunçados pelo vento frio.

— Já estamos quase na estação de trem! — apontou ela, gesticulando para o fim da rua de paralelepípedos. À frente, erguia-se um prédio antigo, com colunas desgastadas que pareciam sustentar o peso de eras passadas. Gárgulas esculpidas em pedra adornavam as laterais da grande porta de entrada, seus rostos monstruosos fixos em expressões eternamente vigilantes. O telhado era pontiagudo e afiado, como se feito para cortar o céu noturno. — Lá dentro, pelo menos, tem aquecimento.

— Mas mesmo assim, depois que sair na sua parada, você vai ter que andar no frio de novo — insistiu Maria, seu tom preocupado enquanto observava a amiga com os olhos suaves.

Aria apenas deu um sorriso travesso.

— Estou muito sedentária. Acho que posso usar este frio para queimar algumas calorias — brincou, piscando para Maria. A amiga abriu a boca, talvez para retrucar, mas foi interrompida pelo som estridente de um badalar.

Na entrada da estação, um grande poste de ferro trabalhado sustentava um relógio antigo. A estrutura estava coberta por uma pátina esverdeada, resultado de anos de ferrugem e exposição ao tempo, mas o relógio, surpreendentemente, ainda funcionava com precisão. Os ponteiros pesados apontavam para a meia-noite exata, e o som do badalo ecoava pela rua deserta.

— Pela Santa das Luzes! — exclamou Aria, alarmada. — O último trem deve estar partindo agora!

Sem perder mais tempo, ela deu um rápido abraço em Maria, quase esmagando o sanduíche contra o corpo da amiga.

— Amanhã conversamos mais! — disse Aria, se afastando às pressas.

— Sim, eu tenho algo importante para te contar... — respondeu Maria, sua expressão subitamente séria.

Aria parou por um instante, hesitando enquanto olhava para Maria, confusa pela súbita mudança de tom. Mas o apito distante do trem a tirou de sua vacilação.

— Certo, amanhã! — prometeu Aria, já se virando e correndo em direção à estação.

À medida que se afastava, a última imagem que teve de Maria era dela acenando com o sanduíche ainda na mão, envolta no enorme casaco, parecendo uma criança solitária e abandonada na noite fria. Um estranho sentimento de arrependimento pinçou o coração de Aria, mas ela o empurrou para longe enquanto focava na urgência de pegar o último trem. O prédio da estação se aproximava, seu calor fantasmagórico a atraindo, e logo ela desapareceu pelas portas pesadas de madeira, deixando o frio e as sombras da noite para trás.

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