7 - Quem é vivo sempre aparece
Petrus devia ter desconfiado. Quando achou que tinha vislumbrado o brilho de um bracelete octopo no balcão do bar, devia ter desconfiado. Quando Cláudio começou a lhe fazer perguntas impertinentes sobre Coral, devia ter desconfiado. Quando sentiu um cheiro acre pela boate, atordoando levemente seus sentidos, devia ter desconfiado. Ainda assim, ele se surpreendeu quando as pessoas começaram a desabar ao seu redor.
Impulsivo demais. Imprudente demais. Sempre fazendo escolhas erradas.
Petrus podia ouvir a voz do pai lhe recriminando em sua cabeça, com aquele olhar julgador que o matava por dentro. No fim das contas, não importava o quanto se esforçasse, ele sempre fazia tudo errado. Sabia que parte do problema estava em ter se afastado de Delfos e do caminho natural que devia seguir. Um delfine responsável, que sabia o seu lugar no mundo, já devia ter desenvolvido sua sensitividade àquela altura. Se soubesse interpretar sua intuição, os caminhos desconhecidos de sua psiquê, ele saberia que estava levando Coral diretamente para uma armadilha.
Seu pai adorava lhe dar longos sermões sobre as escolhas que ele deveria fazer, como se ele tivesse muitas. Mas cada vez que ele pensava no que implicaria abraçar seu destino como o oráculo de Delfos, mais ele tinha vontade em se atirar no precipício do Érebo. Ligar-se a um outro delfine contra a sua vontade, negar seus próprios sentimentos, essa era a única escolha possível para ele. Mesmo sem todo aquele peso do oráculo, não era como se ele pudesse ser feliz algum dia em Atlântida. Afinal, um delfine e um selaquiano jamais poderiam ficar juntos. Era contra as leis da natureza. Ainda que ele não o tivesse traído...
Mas Petrus não podia mais pensar no selaquiano. Tudo aquilo havia ficado para trás no momento em que abandonara Delfos. Ele não queria pensar, esforçava-se todos os dias para esquecê-lo, esquecer-se de quem era, esquecer-se da dor. Na maioria dos dias, ele fazia um trabalho razoável. Ainda assim, não era o suficiente.
Na superfície, em todos aqueles anos, tudo o que ele encontrou foi uma vida vazia. Ainda que vivesse confortavelmente, cercado de luxo, com roupas caras e noitadas regadas a álcool e sexo, era uma vida vazia. Uma vida sem amor. A vida que um traidor da raça como ele merecia...
Impulsivo demais. Imprudente demais.
Se não fosse, ele teria percebido. Teria feito uma escolha mais sensata.
Agora seus dedos trêmulos encontravam uma corrente metálica de temperatura quente no pescoço de Cláudio, se é que esse era o seu nome verdadeiro. Oricalco.
Petrus recuou um passo atrás para encará-lo em choque.
— Você é atlante!
Cláudio repuxou os lábios em um sorriso presunçoso.
— Demorou para perceber. Eu pensei que os delfines tivessem um sexto sentido apurado, mas parece que esse não é o seu caso.
Petrus engoliu em seco, incapaz de formular uma resposta satisfatória. No fundo, sabia que Cláudio tinha razão. Ele não passava de um delfine defeituoso.
— Ou isso ou estava tentando se livrar da sua amiga — instigou o atlante.
Petrus sentiu uma fisgada no peito. Como pode se deixar levar tão facilmente por um estranho?
— Coral... O que fez com ela?
A voz raivosa preencheu o recinto, uma vez que a música havia cessado assim que o DJ tombou sobre seu equipamento de som.
Cláudio riu em tom de deboche.
— Eu? Nada... Mas não posso dizer o mesmo dos octopos. Como sabe, eles estão ávidos para provar seu valor a Caleo, fariam qualquer coisa por ele.
A raiva e a vergonha deram lugar a um medo descomunal. Seria tarde demais?
Com um tranco para frente, Petrus empurrou o peito de Cláudio com certa força, correndo para o balcão do bar logo em seguida. Ele pulou os corpos caídos de forma desajeitada, mas seu desespero aumentou ao se dar conta de que Coral não estava mais onde ele a havia deixado.
— Não não não não não... Isso não pode estar acontecendo...
Expirou e inspirou profundamente algumas vezes, tentando raciocinar e se acalmar ao mesmo tempo, mas estava à beira de uma crise de pânico. Como ele pôde ser tão burro a ponto de negligenciar a princesa de Atlântida?
— CORAL? — ele gritou o nome algumas vezes, sentindo sua garganta apertar cada vez mais. — Droga, onde você está...?
Como resposta, ele ouviu o som de algo pesado despencando sobre o chão, seguido de alguns gritos de dor e incentivo, no que parecia ser um embate violento. Seria possível que Coral estivesse lutando sozinha contra os octopos? Ele não conseguia imaginar que uma garota inexperiente como ela tivesse qualquer chance contra a tropa de elite de Atlântida.
Não havia outra escolha. Ele teria que intervir na luta para defendê-la, ainda que não tivesse treinamento algum e morresse no processo. Pelo menos seria uma morte digna.
Petrus seguiu os barulhos cada vez mais intensos, tentando ignorar as batidas descontroladas em seu coração. No entanto, ao alcançar finalmente a porta que levava à arena improvisada de batalha, os sons cessaram repentinamente. Tremendo, ele empurrou a porta e adentrou o recinto, já temendo pelo pior.
A quantidade de corpos espalhados pelo chão e o sangue azul escorrendo por todos os cantos o assustou em um primeiro momento, mas só até localizar Coral encolhida a uma curta distância, junto a outra pessoa que ele não conseguiu identificar a princípio.
— Coral... — começou ele, soltando todo o ar de seus pulmões, relaxando completamente ao constatar que a garota estava bem.
No entanto, ao dar alguns passos à frente, notou a figura que a acompanhava virar o rosto lentamente, como se lhe custasse encará-lo nos olhos. Petrus congelou ao se dar conta de quem ele era. Infelizmente, ele reconheceria aquele perfil esculpido há quilômetros de distância.
Agora fazia sentido todos aqueles octopos abatidos sobre o chão. Não que isso fosse um alento, muito pelo contrário.
Deixando toda a raiva acumulada de anos tomar conta de si, Petrus fechou a cara, marchando até os dois.
— Coral! — Repetiu o nome, dessa vez em um tom duro de acusação. — Como pode fazer isso? Eu te disse para nunca confiar em um selaquiano, e a primeira coisa que você faz quando eu dou as costas é confiar em um, francamente!
Coral ergueu-se em um pulo, parecendo muito indignada com o que acabava de ouvir do amigo.
— Do que diabos está falando? Você desapareceu esse tempo todo, sequer sabe de tudo o que aconteceu, como pode querer me acusar de algo?
— Você não faz ideia do que um selaquiano é capaz para confundir a sua mente.
— Dante salvou a minha vida! Se dependesse de você, eu já estaria morta!
— Eu não confiaria nisso se fosse você, com certeza deve haver algum motivo torpe e egoísta por trás das palavras bonitas do selaquiano.
Antes que Coral respondesse, Dante ergueu-se, encarando o delfine de frente pela primeira vez.
— Petrus, porque está agindo como se não me conhecesse?
Petrus sentiu todo o sangue subir para sua cabeça.
— E quem disse que você pode falar comigo?
— Eu entendo sua raiva, mas...
Dante não teve tempo de terminar sua fala, pois, usando toda a força que tinha, Petrus saltou sobre ele, o socando no maxilar de baixo para cima. A cabeça de Dante foi projetada para trás com o impacto, mas logo ele se endireitou, massageando o local.
— Petrus, o que está fazendo? — gritou Coral, horrorizada com a agressividade do delfine. — Dante está machucado!
Petrus riu com escárnio.
— Machucado, você diz? — provocou ele, aproximando-se da coxa enfaixada e arrancando o tecido recém-amarrado. Havia um sangue seco ao redor da pele, mas no lugar do corte profundo, apenas uma cicatriz quase imperceptível estava visível. — Não há machucado algum, como vê.
— O quê? Como?
Petrus revirou os olhos.
— Capacidade curativa selaquiana e blá blá blá...
— Será que nós podemos... — tentou Dante mais uma vez, mas foi novamente interrompido por Petrus.
— Não! Nós não podemos nada! E fique longe de Coral!
O delfine puxou a garota para trás, assumindo uma postura protetora contra a sua vontade. Coral sentia-se confusa, por isso deixou-se levar por um momento.
— Você acha que quero fazer mal a ela? — disse Dante em um tom abatido.
— Não me importo com o que você quer, apenas volte para Seláquia. Você não tem permissão para estar na superfície.
Dante deu um passo à frente, mas Petrus assumiu posição de ataque, com os pés separados e os punhos cerrados, pronto para a briga. Ele estava se concentrando apenas na raiva de anos acumulada. Não podia se dar ao luxo de encarar os olhos tristes de Dante. Não podia sucumbir na frente dele.
— Você vai lutar comigo? — A voz dele era apática, quase quebrada, nada do tom orgulhoso selaquiano de que Petrus se lembrava.
— Sim! — Petrus avançou, dando um golpe certeiro em seu estômago. — Lute comigo, Dante!
No entanto, Dante não esboçou reação alguma, apenas permaneceu parado para servir como saco de pancadas a Petrus. É claro que o delfine sabia que não teria a mínima chance se seu oponente resolvesse revidar, mas talvez fosse exatamente disso que ele precisasse: ser golpeado e pisoteado mais uma vez. Talvez assim ele pudesse consertar seu coração torto.
Petrus golpeou uma, duas, três vezes. Dante não se moveu em nenhuma delas.
— Já chega, Petrus! — gritou Coral, não suportando aquela cena deprimente. — Porque está fazendo isso?
— Deixe-o — disse Dante, com a voz rouca. — Petrus tem o direito de me bater o quanto quiser. Me bata até que fique satisfeito...
Petrus socou o rosto de Dante como se sua vida dependesse disso.
— Lute de volta! — Mais um soco. — Vamos, por que você não revida? — Mais um soco. — Você não passa de um maldito covarde!
Petrus continuou golpeando, chutando e socando sem trégua. A cada golpe, ele gritava, deixando toda sua raiva extravasar, finalmente. A cada golpe, uma nova lágrima caía de seu rosto. A dor era insuportável e o consumia por inteiro.
Coral deixou-se cair ao chão, levando as mãos ao rosto, horrorizada e impotente.
Quando Dante finalmente caiu como um saco de batatas, Petrus caiu ajoelhado ao seu lado, ofegante e com o rosto banhado em lágrimas. Seus punhos sangravam pelo esforço de bater seguidamente em um corpo tão resistente, mas ele não sentia realmente a dor física.
— Por que está aqui? — ele disse em um fio de voz torturado, finalmente deixando sua vulnerabilidade à mostra.
Dante rolou o corpo para frente, para encarar Petrus. Seu rosto estava todo roxo e inchado, com sangue escorrendo do nariz e dos lábios.
— Petrus, eu...
Petrus rapidamente limpou o rosto com as mãos, erguendo-se para se afastar da pessoa que mais lhe causara dor em sua vida.
Dante esforçou-se para se sentar no chão, mas assim que fez isso, ouviu outro corpo ao seu lado se remexer, o que o alertou para o perigo que os três ainda corriam.
— Esses octopos estão prestes a acordar, precisamos sair daqui o quanto antes.
Coral correu para ajudá-lo a se levantar.
— Vamos para o quarto de Petrus, estaremos seguros lá.
— Espera aí! — protestou Petrus. — Eu não vou levar selaquiano nenhum para o meu quarto, isso está fora de questão.
— Bem, se ele não for, eu também não irei.
Petrus bufou, irritado.
— Você claramente já escolheu um lado.
— E o que você esperava depois do que acabou de fazer com ele? Dante salvou minha vida e não pretendo abandoná-lo à própria sorte.
— Mas eu também não posso te deixar aqui com ele!
— Então ou iremos nós dois ou não iremos ninguém.
— Mas...
— A escolha é sua.
Petrus olhou em pânico para os octopos que começavam a se mexer. Eles teriam no máximo alguns minutos para sair dali sem problemas. Não havia tempo para discussões inúteis.
— Está bem, está bem! — concedeu ele muito contrariado, amaldiçoando-se por dentro pelo que estava prestes a fazer. — Vamos logo!
Antes de sair, porém, ele apontou um dedo ameaçador para Dante.
— Mas você não pode falar comigo.
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