11. Consulta - Theo
— Theo, fale-me sobre como foi sua noite de aniversário de casamento. Estava bastante ansioso sobre isso em nossa última consulta. — O psiquiatra me fitava atento, como se tentasse ultrapassar o verde de meus olhos em busca de minhas mentiras.
Ajeite-me na cadeira incomodado, escolhendo as melhores palavras a serem ditas. Estava farto da imposição de ir duas vezes por semana nas sessões terapêuticas, para tentar recuperar meu cargo de cirurgião. Suspirei derrotado.
— Saí para jantar com uma amiga.
— Amiga?
— Bem, mais para uma paciente. — ele manteve o olhar cravado em mim, claramente à espera de detalhes, nunca estava satisfeito com frases curtas. — Eu fiz uma sutura quando ela se cortou e como ela é assídua do hospital meio que nos tornamos amigos.
— Interessante. Por que essa amizade agora?
Na verdade, nem sabia se podia realmente dizer que eu e Laís éramos amigos, mas não quis explicar todas as confusões que salpicavam em minha mente. Se começasse a entrar nestas, talvez o psiquiatra me deixasse mais tempo em terapia mandando para mais longe meu sonhado cargo. Respirei fundo novamente, buscando uma forma de simplificar.
— Ela é bem alegre, parecia alguém interessante para conversar.
— A felicidade dela foi o suficiente para querer se aproximar e criar uma amizade?
— Provável. — ou seria o fato dela ser a única presente em um momento de crise?
— Isso é bom. Fazer amizades é um sinal de sua melhora.
Será que ele pensaria o mesmo se soubesse que o jantar com Laís foi acometido por um longo momento de desespero? Desviei o olhar com um receio tolo de ter a verdade descoberta.
O relógio da parede indicava, para meu alívio, o final da sessão. O psiquiatra continuava a me encarar com olhos penetrantes.
— Essa sua nova amizade me diz que está lutando. Um primeiro degrau, Theo. Mas não se apoie só nisso, a sensação de alegria deve vir de você, de estar em paz consigo mesmo e não de outra pessoa. Pense nisso! Voltamos ao assunto em nossa próxima sessão.
Aliviado, deixei a clínica psiquiatra. Eu não dava real importância às reflexões daquele homem sobre meus atos, apenas me perguntava o quanto ele demoraria para me considerar apto novamente a cirurgias. Contudo, a previsão de falar sobre Laís na próxima sessão amenizava a angústia constante sentida ao me sentar naquela poltrona, pelo menos me daria uma folga nos assuntos realmente difíceis.
Saí da clínica com a maior rapidez possível, e entrei no hospital. Ali sim eu me sentia confortável. Klaus me interceptou com olhos aflitos no corredor de acesso à emergência.
— Como está, Theo? — meu amigo pousou sua mão sobre meu ombro, com grande pesar. — Eu me esqueci por completo que dia foi ontem. Sinto muito! — Ele sacudiu a cabeça frustrado, como se fosse o pior amigo do mundo. — Só me dei conta hoje de manhã quando Eunice me perguntou sobre você.
— Estou vivo, se é isso que te preocupa. — falar sobre os sofrimentos da noite anterior não me interessava, deveria ser uma página virada. Por que ninguém entendia isso?
— Eu não devia ter te deixado sozinho. Eu...
— Não se preocupe — interrompi e forcei um sorriso, não o deixaria se sentir culpado por minha dor. — Passei o tempo jantando na casa da Laís.
— A garota do sanduíche? A tal "ratinha de hospital"? Como foi parar na casa de uma paciente? — Klaus me fitou confuso, como se tivesse perdido uma parte da história.
— Também não tenho resposta para isso. O importante é que estou vivo. — soltei em um suspiro sincero, por que não tinha tanta certeza se ainda estaria respirando se a noite houvesse sido diferente, se eu tivesse ficado sozinho em meu apartamento. Sacudi a cabeça em afastamento dos pensamentos sombrios a me rondar.
— Mas o que aconteceu? — Klaus me observava ainda confuso com a situação. Comecei a andar lhe informando que ele não teria uma explicação. Ele bufou e me alcançou com passos ligeiros. — Eu estou com fome, podíamos aproveitar o sol e comer um lanche no telhado.
Ele não ia me deixar escapar. Seu grande coração de amigo precisava se certificar que eu estava bem. Eu já devia tanto a ele. Puxei o ar para manter a paciência e confirmei seu convite com um aceno sem vontade. E depois, a ideia de passar um tempo no telhado poderia ser agradável.
Quando éramos residentes, o telhado era um lugar no qual encontrávamos um momento de descanso das inúmeras tarefas. Um lugar que não iria afetar meu humor para pior, era um espaço neutro onde eu nunca havia levado Clara, já que ela tinha pavor de altura.
Com um lanche pego no segundo andar em mãos, subimos de elevador até o telhado. Antes de eu conseguir me ajeitar sentado no parapeito para olhar as nuvens, Klaus iniciou seu inquérito, mais detalhado do que meu psiquiatra faria.
Eu teria fugido de suas perguntas, contudo não havia para onde ir, ele me perseguiria até conseguir as respostas. Derrotado, contei-lhe sobre o jantar, omitindo minha crise de choro.
— Essa "ratinha de hospital" conseguiu fazer o que eu venho tentando sem sucesso há três anos. Te deu uma injeção de ânimo. Mulheres! — ele revirou os olhos rindo, parecia aliviado com meu relato, e eu começava a me sentir também mais leve. Klaus me deu um tapa amistoso no ombro. — Ela é bonita? Talvez um romance seja o melhor remédio para curar o seu mal.
— Está sugerindo que eu esqueça Clara? — levantei irritado, o que ele dissera era impensável.
— Não quis dizer isso! — ele me seguiu com voz arrependida. Segurou meu braço, seu olhar era sério. — Não quero que esqueça as lembranças de Clara, apenas que pense em seguir sua vida. Talvez se divertir, conhecer outras mulheres.
As palavras dele me ofendiam, me soltei de sua mão e comecei a andar com passos pesados pelo telhado. Como eu poderia simplesmente começar de novo? Não havia recomeços para mim, muito menos perdão. Aquela constatação me feriu como uma faca, arfei com receio de entrar em pânico ao apoiar as mãos nos joelhos e baixar a cabeça.
Só havia um lugar para fugir, me dirigi até a saída com intenção de voltar à emergência. Klaus me alcançou na porta do elevador.
— Theo, me desculpe eu não queria te ofender. — Ele manteve a mão na porta do elevador impedindo-a de se fechar. Meu coração ardia, e eu não conseguia olhá-lo. — Mas pense sobre isso. Não importa se for com a "ratinha de hospital", com a nova enfermeira da emergência que está sempre à sua volta, ou com qualquer outra, mas abaixe um pouco a guarda e veja o que acontece. Não pode simplesmente passar o resto da vida sozinho.
— Isso não é uma escolha sua! — minha voz foi bruta, empurrei a mão de Klaus para que o elevador se pusesse em marcha e me deixasse solitário. Quem ele pensa que é? Quem ele pensa que sou?
As ideias de Klaus haviam me tirado de meu frágil eixo. Toda a aparente calma montada em meu peito com finos tijolos de vidro após a crise de choro acolhida pelo abraço de Laís fora estraçalhada e apenas a terrível sensação de angústia me acompanhava. Quando eu iria parar de desmoronar? Quando voltaria a me concentrar apenas na medicina e pararia de ser invadido por essa dor em meu coração? Soquei a parede do elevador.
A dor me alertou, respirei fundo durante o trajeto. Eu precisava me acalmar, socar coisas não era uma solução, era estupidez. Minhas mãos garantiam a firmeza e destreza necessária para minha profissão, não poderia arriscar perder isso também ao sofrer uma lesão estúpida.
Por sorte, a emergência estava atulhada. As enfermeiras precisaram distribuir macas pelos corredores para acomodar todos os necessitados, e assim eu me envolvi com dois adolescentes acidentados em um campeonato de skate. Minha parte médica ocupou o controle afastando as agonias insistentes da parte homem, possibilitando-me seguir por mais um dia.
Consegui me encaixar em um dos plantões noturnos, desta forma poderia ficar pelo menos três dias sem voltar para casa e sem espaço para pensamentos sobre minha miserável existência. Eu torcia que isso fosse o necessário para me devolver o frágil equilíbrio de antes.
***
Ao final do terceiro plantão na sexta à tarde, eu me sentia mais fortalecido, talvez houvesse alcançado finalmente uma estabilidade emocional. Pelo menos eu me esforçava para acreditar nisso. E, para garantir, evitei qualquer situação que pudesse ser de difícil resolução emocional como passar na frente de antigos almoxarifados onde eu e Clara houvéssemos escapado para namorar.
Mantendo essa rotina de me afastar dos antigos lugares e assim das antigas lembranças, fui ao último andar para comprar um lanche. Ao colocar os pés no corredor da lanchonete, avistei Laís conversando com a enfermeira Claudete e com um médico, não o tinha visto muitas vezes, lembrava-me por alto que era um cardiologista. Por que eu continuava a teimar e ir para o último andar? Sempre havia uma chance de reencontrar Laís. E apesar de nossa última conversa, não sabia se desejava realmente voltar a vê-la. Isso era errado? Eu era um mal agradecido?
— Então, Laís, o que me diz de fazer essa entrevista? — Dr. Emílio, nome lido no crachá, fitava-a ansioso com as mãos dentro do jaleco. — Será uma ajuda bem-vinda. Ora, para convencer as pessoas da importância da doação de órgãos, quem melhor do que minha paciente mais carismática?
— Tudo bem. — estranhamente ela não parecia animada. — Mas me pegou de surpresa, não poderia ser amanhã? — Eu devia voltar por aonde vim antes dela perceber minha presença, mas não o fiz.
— Os repórteres já estão aqui. — o médico estava decidido a conseguir a colaboração dela.
— Criança, é só uma entrevista. — Claudete passou o braço sobre os ombros de Laís. Por que ela parecia tão relutante? Achei que ela seria o tipo sempre disposta a ajudar todos. — Para quem já fez tanta coisa, como pode ter vergonha de uma entrevista?
— Não é vergonha, eu só... Tudo bem, eu faço — ela respondeu sem muito ânimo, o médico afastou-se animado.
Minha curiosidade pela conversa pega pela metade já havia sido saciada. Eu devia retornar ao elevador, porém antes de dar um passo para trás, Laís me viu e acenou sorridente. Eu estava envergonhado, afinal ela tinha me visto fragilizado e por mais que ela viesse com o papo de amigos e eu tivesse usado dessa artimanha com meu psiquiatra, não me considerava suficientemente confortável com a situação. Sem querer ser mal agradecido, respondi ao aceno e me vi obrigado a uma aproximação.
— Veio buscar um sanduíche? — Laís sorria, mas em seus olhos não havia o brilho de sempre, algo a chateava. Isso era tão estranho em seu rosto, como se não pertencesse a ela.
— Sim, quer um? — respondi sem pensar ao tentar ser educado com alguém que sempre o fora comigo. Irritado, fechei a boca. Por que simplesmente não fui embora?
— Claro, — ela tocou meu braço em agradecimento. — mas preciso fazer uma entrevista sobre transplante então...
— Vai ser muito rápido, criança. São só umas perguntinhas. O Dr. Theo espera. — Claudete tomou a frente me deixando sem saída com seu atrevimento.
— Sim, espero. — falei entre dentes, não iria ser grosseiro. Afinal já havia abusado do limite da má educação com Laís e isso não era mais certo, não depois do último jantar.
Laís e o cardiologista entraram na sala onde seria a tal entrevista. Escorei-me no balcão da enfermagem, frustrado por ter que esperar alguém de quem minha vergonha desejava fugir.
— Laís foi a melhor paciente que já tive — a mulher estava decidida a manter um diálogo e não parecia se importar se eu desejava ou não ouvi-la. — Sempre com um sorriso no rosto, não reclamava de ser submetida aos procedimentos, ou quando tinha dores e falta de ar. Fico feliz que sejam amigos.
— Eu... — abri a boca para negar a suposição, contudo me calei. Não imaginava o que Laís havia ou não contado para ela. — É. — eu não aguentaria mais tempo ao lado daquela mulher. — Vou comprar os sanduíches.
— Eu aviso Laís.
Dirigi-me conformado em direção à lanchonete, só me restava pegar os sanduíches e sentar à espera dela; ir embora seria indelicadeza. Pensei no que a enfermeira disse sobre as internações de Laís e recordei quando eu próprio passara alguns meses internado após o acidente de carro. Eu também não resmungava, estava apático demais para isso, mesmo quando a dor quase me consumia durante os curativos. Como teria sido para ela? Seu silêncio seria apatia ou coragem? Ou outra coisa?
Eu não conhecia suas dores, ela conhecia as minhas. Impacientei-me com o pensamento. Poderei se não seria melhor deixar o sanduíche nas mãos da enfermeira para evitar o olhar de Laís, a única conhecedora da verdade sobre como eu me encontrava devastado.
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