O Festival (parte 2)
As luzes do festival deixavam a noite ainda mais bonita. Uma atmosfera aconhegante cercava os arredores da vila, e eu fecho os olhos por um breve momento ao sair do restaurante. Era muito bom estar em casa. Desço as escadas com Ching e Dada vem nos cumprimentar.
— Olá meninas! Acredito que já conhecem minha namorada Ring Ring — ele sorri de modo simpático.
Eu não queria parecer tão surpresa, mas não tenho certeza se consegui. Minhas sobrancelhas se erguem contra a minha vontade e tenho que controlar o impulso de ficar boquiaberta como uma tonta. A namorada de Dada vem para o lado dele, aceitando prontamente a casquinha de sorvete que ele oferece para ela. Sua pele clara estava bem maquiada, seu vestido rosa era deslumbrante e pelo o que posso perceber ela ainda tem resquícios do azul nas pontas do cabelo. A diferença agora, era que ela não era mais a criança que costumava querer rivalizar comigo. Ring Ring sorri para mim e diz:
— Oi Pucca.
Ching me dá um tapinha no ombro, me retirando do meu choque inicial ao ver o quanto ela estava diferente e linda.
— Oi... Rin — preciso de uns segundos para me lembrar de seu nome de verdade ao invés do apelido — Que bom te ver.
— Hahaha, posso ver que está surpresa — ela ri — Mas tudo bem, acho que faz mesmo um tempo que a gente não se vê.
Quero afundar meu rosto num poço e me esconder, mas mantenho o sorriso amigável.
— Sim, felicidades para vocês! — digo, enquanto a observo segurar a mão de Dada.
— Obrigada, para vocês também! — ela devolve a gentileza, indo em direção a outra barraca do festival.
A música do festival se mistura com as vozes em volta. A rua principal estava cheia e até agora nenhum sinal de problemas, mas sei que é cedo para alimentar essa esperança. Olho em volta, em meio a multidão, tentando encontrar o rosto que eu estava procurando, e quando não encontro, tento me conformar dizendo que ainda era cedo, ou que talvez ele não fosse vir.
— Nossa, você não sabe mesmo disfarçar — Ching comenta quando os dois já ficaram para trás.
— Ai, mas é que eu nunca imaginei que ela e o Dada ficariam juntos um dia, é estranho e bom ao mesmo tempo — rio da minha própria estranheza com o assunto.
— Vem, vamos comprar alguma coisa para beber.
Ching me puxa para a primeira barraca que vê p lá frente. Papai Noel secava copos quando nos vê chegando.
— Ho, ho, ho, Ching! O que vai querer?
— Duas limonadas, por favor! — ela coloca o dinheiro em cima da bancada.
Continuo a olhar em volta enquanto ele preparava as bebidas. Ching estava certa, por mais que eu tentasse eu não conseguia disfarçar, ao menos não minha expressão, que ficava sempre escancarada para demonstrar tudo o que eu sentia.
— Pucca, relaxa! — ela tenta me confortar.
— Mas eu tô... — meu sorriso some quando vejo quem está se aproximando atrás dela — Aí que droga.
Ching se vira, e sua cara também fecha ao ver Abyo bem na nossa frente. Ele parece divido ao vê-la, como se não soubesse o que dizer, mas quando olha para mim, seu olhar altivo transparece e eu reviro os olhos antes mesmo de ele falar as primeiras palavras.
— Vejo que já estão aproveitando o festival — ele pega o copo de limonada ainda intocado de Ching e dá um gole — Obrigado, estava morrendo de cede.
— Vem, Ching, vamos embora — seguro em sua mão para tentar salvá-la daquela situação.
— Espera, eu quero falar com você — Abyo se coloca na minha frente — Não foi legal o que fez na nossa academia mas eu vou deixar isso de lado em respeito a nossa amizade de infância.
— Puxa, que gentileza — respondo, não me dou o trabalho de conter o sarcasmo.
— E eu espero que você ainda tenha o mínimo de consideração, não pela amizade do passado, mas pelo Garu.
— Como é que é? — Ching tira as palavras da minha boca.
— Eu só tô dizendo que eu jamais me aliaria com o cara que tentou matar ele várias vezes. Tobe é um psicopata, não sei nem se dá pra chamar ele de ninja.
— Porque você não cala a boca e volta pro buraco de onde veio? O Muji deve estar sentindo sua falta. — Ching rebate furiosa.
— O Muji não é meu dono — Abyo deixa escapar, ele não diz com todas as palavras, mas ainda assim admite que deve satisfações àquele mercenário.
Troco olhares com Ching, e sei que ela está pensando a mesma coisa. Abyo não era tão esperto quanto se achava bonito. Já tínhamos uma informação valiosa que confirmava algumas suspeitas, não havia porque ficar prolongando a conversa, mas eu não me seguro e faço a pergunta mais óbvia:
— Mas você responde para ele, não é?
Abyo ri sem humor, tentando disfarçar o desconforto visível em seus olhos.
— Você não ouviu nada do que eu disse. Vou te dar só mais um aviso para você nao se decepcionar depois: Tobe é um assassino, o que acha que aquela cicatriz entre os olhos significa? O próprio clã fez isso com ele. Ele é um homem marcado e por isso não tem limites para crueldade.
— Foi isso o que o Garu contou a você? — pergunto, ignorando totalmente seus "avisos amigáveis e em respeito a nossa amizade".
— Pelo amor de Deus! — ele se exaspera — Ele tentou matar o Garu várias vezes!
Àquela altura eu já estava cansada de Abyo. Eu não acreditei em nenhuma palavra, e ele só estava ali gastando o meu tempo. Ouvir os conselhos de Ching sobre não confiar totalmente em nenhuma das versões da história era uma coisa, mas vindo dele? Abyo só estava repetindo o que Garu contou aos monges da vila.
— E daí? Eu também! — continuo meu caminho, esbarrando nele, já que ele se recusou a sair da frente.
Enquanto eu mantinha os olhos no festival da vila, absorta em suas cores vibrantes e na agitação alegre dos moradores, minha atenção foi abruptamente desviada para a entrada. Ele havia acabado de chegar, sua presença silenciosa rompendo o ar festivo. As pessoas em volta o olhavam fixamente, e até se afastavam, mantendo uma distância segura, mas ele não demonstra nada.
Meu olhar percorreu sua figura alta e séria, contornada por músculos sob a roupa azul escura, notando que seus ferimentos pareciam ter melhorado consideravelmente. Seu rosto, que antes exibia marcas de batalha, agora revelava sinais de cura. Seu olho ainda carregava vestígios de um roxo desbotado ao redor. O pequeno corte no lábio mal dava para ver agora. O ferimento mais grave, a cicatriz que repousava entre seus olhos, apesar de ainda vermelha, estava bem melhor, quase completamente cicatrizada.
Enquanto eu contemplava essas melhoras em seu rosto, meu coração parecia bater ainda mais acelerado que o ritmo da música do festival que voltou a tocar animada. Eu nem tentei disfarçar desta vez, minha atenção estava completamente tomada por Tobe. Seu porte austero e sereno, sua postura séria, tudo nele emanava um magnestimo irresistível.
Nossos olhos se encontram em meio a tanta gente. Apesar de eu não conseguir dizer uma palavra, minha mente sussurrava segredos, desejos, e sentimentos que eu não tenho coragem de admitir. Ergo a mão em cumprimento, junto com um sorriso amigável. Meu coração dá um salto quando ele vem caminhando na minha direção. Era como se a vila inteira desaparecesse e restássemos apenas nós dois. Deixei escapar um suspiro e noto Ching sorrindo para mim enquanto se afastava.
Assim que o ninja já está perto o suficiente, eu praticamente me jogo nele, abraçando-o com força. Meu sorriso aumenta quando sinto seus braços me envolverem, retribuindo o gesto. Aquilo não só era um alívio, pois nas minhas memórias mais distantes, o garoto quem eu estaria abraçando estaria tentando freneticamente se desvencilhar para fugir. Eu me via irremediavelmente atraída por Tobe, e não posso mais negar isso para mim mesma.
— Você veio — exclamo feliz enquanto me estico para alcançar seu rosto, dando um beijinho em sua bochecha.
Tobe dá um sorriso mínimo ao olhar nos meus olhos, ainda com as mãos em mim. Apesar do momento ser aconchegante, é rápido e dura poucos segundos. O ninja segura meus braços e me afasta. Minha confusão é breve, pois vejo que Abyo se aproximava de nós. Tobe segura meu pulso com gentileza e me puxa para ficar atrás dele.
— Você é insano por vir aqui sozinho. — Abyo debocha — Devia ter trazido o seu reforço, pode precisar.
— Ah, mas eu não vim sozinho — Tobe ergue as sobrancelhas, com um misto de surpresa e divertimento — Se me lembro bem o convite foi estendido para os meus ninjas.
Sorrio ao ver os rapazes vestidos com trajes ninja na cor azul escura. Ao menos Abyo não seria louco de tentar arrumar uma briga.
— Exatamente! — confirmo, envolvendo meu braço no de Tobe, num aviso de que estávamos de saída — Fico feliz que tenham vindo.
Sem dizer mais nada, eu começo a me afastar. Tobe não se move de imediato, encarando Abyo por mais alguns segundos, mas então ele se deixa ser conduzido para longe. Apesar do encontro indesejado, estou radiante por dentro, pelo simples fato de Tobe não ter.me afastado. No entanto, assim que nos afastamos o suficiente para não ter mais que olhar para a cara de Abyo, eu o solto. Afinal, não éramos nada um para o outro, e apesar do ninja não ter feito nada para impedir meu toque, eu não sabia como ele se sentia em relação a isso, e eu não queria ser invasiva.
Penso em alguma coisa para dizer, mas não sei exatamente o que, afinal, eu nunca havia passado desta fase. Durante meu tempo fora da vila, meus relacionamentos com outros homens foram casuais e eu não me sentia tão nervosa quanto agora. Percebo o olhar de Ching sobre mim, ela estava sorrindo, encorajando. Não sei se ela percebe minha insegurança, mas ela vem até nós quando paramos próximo a uma barraca de artesanato. Tobe nota sua aproximação e é o primeiro a se pronunciar:
— Sinto muito pela sua perda, seu pai era um homem bom e honrado. Eu nunca tive a chance de dizer.
— Puxa, muito obrigada, Tobe, significa muito pra mim — ela sorri fraco — Ele gostava muito de você.
— Jura? — a pergunta simplesmente escapa da minha boca.
— É uma longa história, se bem que não é tão longa assim — Ching suspira com a lembrança triste — Tobe pode contá-la melhor do que eu. Com licença.
Ching se distancia com uma piscadinha para mim, e eu agradeço mentalmente pelo apoio.
— E então? — sorrio para ele — Você vai me contar agora ou depois?
— Ergh... — o ninja hesita — Eu não sei por onde começar.
— Vem comigo — seguro em sua mão e o levo comigo, voltando até o fim da rua.
Apesar de ter bancos e mesas, a praça era muito cheia e era de lá que vinha o som. Ao invés disso, eu subo as escadas do Goh-Rong até a metade, me sentando nos degraus e o convidando para sentar comigo. Tobe prontamente atende, e enquanto ele faz isso, minha mente fértil cria o cenário fantasioso de nós dois abraçados ali. Eu respiro fundo, me preparando para ouvir o que ele tinha a dizer.
Eu o observo, seus olhos transmitiam tristeza e resignação, mas também havia um traço de alívio ao se abrir. As palavras fluíam de sua boca, relembrando os eventos que aconteceram após a minha partida.
— Depois que você foi embora, — ele começou — os assistentes sociais aproveitaram a situação para me levar também. Eles não podiam me levar sem a autorização de um adulto responsável, mas também não podiam me deixar solto, representando uma ameaça para as pessoas ao redor. Então, eu e meus ninjas fomos levados para a delegacia, onde os assistentes improvisaram uma unidade socioeducativa.
A imagem de Tobe e seus ninjas ainda adolescentes sendo conduzidos para a delegacia encheu minha mente. Ele continuou a história, descrevendo como Chang, ao tomar conhecimento da situação, se ofereceu para tutelá-los por um tempo e treiná-los como ninjas.
— No início eu resisti à ideia. O pai de Ching apenas treinava os outros enquanto eu ficava de fora olhando. — ele admite, sua voz carregada de memórias — Mas com o tempo, aprendi a confiar em Chang. Ele me ajudou a controlar minha raiva e a encontrar a paz através da meditação, preparando minha mente para os momentos em que eu precisasse lutar.
No entanto, Tobe compartilhou comigo que a saúde de Chang começou a piorar, e seus ensinamentos precisaram ser interrompidos. Enquanto ele contava, pude sentir a tristeza em suas palavras. Tobe, com quase dezoito anos, acabou cumprindo apenas alguns meses na prisão e não chegou a completar um ano inteiro.
— O delegado, que na época era o pai de Abyo, permitia que eu e meus ninjas fizéssemos visitas no hospital. — ele diz, em um tom melancólico — Ainda assim, a doença de Chang progrediu. Assim que fiz dezoito e deixei a prisão de vez, os agentes sociais partiram. Alguns dias antes de falacer, Chang me fez prometer que eu não buscaria mais vingança.
Consigo sentir o peso de suas palavras. Ele estava disposto a deixar o passado para trás, a buscar sua paz.
— Eu nunca contei a verdade a ele, deixei ele acreditar que Garu era uma vítima. Chang me fez prometer — ele repete, sua voz quase um sussurro — E eu prometi.
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