𖦹 022

Alana Dubois Ambrose vivia em uma casa com seu marido, John Ambrose, e seus dois filhos, Antoine Dubois Ambrose, eu e meu irmão, Matthew Dubois Ambrose.

A casa ficava em uma floresta dentro de uma pequena cidade isolada no interior do estado de Oregon, tipicamente de um lenhador. Vivíamos felizes, até o dia 09 de agosto 1999, quando eu tinha 10 anos.

Fazia sol, época de pesca, um sábado em família. Meu pai teve a ideia de um final de semana de pesca, então fomos até o Lago Paulman. Usamos a caminhonete velha e alaranjada para dirigir até o lago. Aprendi a pescar com sete anos assim que Alana engravidou.

Meu pai, um ruivo barbudo de lei, dirigia como um típico americano, com uma cerveja do lado e o som do carro no máximo ouvindo qualquer música que tocasse, sua esposa de cabelos pretos cuidava do filho de quatro anos que estava em seu colo, aquele era Matthew. Eu estava sentado atrás, lendo uma revista paranoica sobre a virada do milênio.

- Sabe, Antoine - Meu pai disse enquanto curvava - Acho que precisamos considerar todas as possibilidades...

- Do que o senhor está falando?

- Bem, meu pequeno filósofo, estou falando de como vamos garantir que os peixes no Lago Paulman estejam preparados para a virada do milênio. Afinal, quem sabe o que pode acontecer quando o relógio bater meia-noite? Talvez eles se tornem peixes voadores ou comecem a cantar músicas dos anos 2000! - brincou meu pai, com um sorriso travesso no rosto.

Minha mãe riu, balançando a cabeça em diversão.

- John, você e suas teorias malucas! Aposto que esses peixes estão mais preocupados em se manterem longe de nossos anzóis do que com a virada do milênio. - Ela respondeu, provocando meu pai de maneira afetuosa.

Matthew, no colo dela, olhou para mim com aquele olhar curioso de criança.

- Toine, os peixes vão voar mesmo? - Ele perguntou, seus olhos arregalados de expectativa.

- Ah, claro! Eles vão voar e cantar para nós. Mas só se você conseguir pegar um peixe mágico! - Eu respondi, entrando na brincadeira e fazendo Matthew rir.

O clima leve e descontraído era típico de nossas viagens em família, cheias de piadas e momentos engraçados que guardávamos com carinho em nossas memórias.

Enquanto meu pai dirigia, minha mãe começou a cantarolar baixinho uma música dos anos 90, fazendo Matthew se juntar a ela em um dueto adorável e desafinado.

- Mamãe, você canta igual a sereia do desenho! - Matthew exclamou, e todos nós rimos da comparação.

- Eu sou a sereia do Oregon! Cantando para os peixes do Lago Paulman. - Minha mãe brincou, fazendo gestos dramáticos como se estivesse em um palco.

Meu pai fez uma pausa dramática antes de entrar na brincadeira.

- E eu sou o lenhador com poderes mágicos que vai fazer os peixes dançarem! - Ele exclamou, fazendo movimentos exagerados com os braços, enquanto a caminhonete seguia seu caminho em direção ao lago.

Esses momentos simples e divertidos eram preciosos para nós, lembranças que aquecem o coração mesmo nos dias mais difíceis.

Chegamos ao Lago Paulman, um local tranquilo e sereno cercado por árvores altas e o som suave da água batendo nas margens. Meu pai estacionou a caminhonete em um local estratégico próximo ao melhor ponto de pesca, e todos nós saímos animados para começar nossa tarde de pescaria.

Enquanto meu pai montava as varas de pesca e preparava os iscos, eu e Matthew corremos até a beira do lago, ansiosos para ver quem pegaria o primeiro peixe. Minha mãe nos seguia, sorrindo enquanto observava nossa empolgação infantil.

- Quem acha que vai pegar o maior peixe hoje? - Perguntei, provocando Matthew com um sorriso travesso.

- Eu vou! - Ele respondeu prontamente, segurando sua pequena vara de pescar com determinação.

- Você vai precisar de muita sorte para superar meu recorde de peixe! - Eu brinquei, me preparando para lançar minha linha na água.

Meu pai se juntou a nós, distribuindo os equipamentos e dando algumas dicas de pesca para Matthew.

- Tudo bem, pessoal, hora de mostrar quem é o verdadeiro mestre da pesca aqui! - Meu pai declarou com entusiasmo, lançando sua linha com habilidade.

Enquanto pescávamos, o tempo parecia voar. Contávamos histórias, fazíamos apostas sobre quem pegaria o próximo peixe e aproveitávamos a tranquilidade do ambiente.

- Ei, olha ali! - Exclamei, apontando para um movimento na água perto da margem.

Todos nós nos aproximamos, curiosos para ver o que estava acontecendo. Para nossa surpresa, um grupo de patos estava nadando tranquilamente, parecendo não se importar com nossa presença.

- Que bonitinhos! - Minha mãe comentou, sorrindo ao ver os patos.

Matthew, sempre curioso, deu um passo à frente para observá-los melhor.

- Ei, patinhos, vamos brincar de pescaria também? - Ele chamou, fazendo todos nós rirmos com sua inocência.

O restante da tarde passou em meio a risadas, conversas e, é claro, algumas capturas de peixes. Meu pai conseguiu pegar o maior de todos, para orgulho dele mesmo, enquanto Matthew estava radiante com suas próprias capturas, mesmo que fossem peixinhos pequenos.

Ao final do dia, enquanto voltávamos para casa com nossos troféus de pesca, todos estávamos cansados, mas felizes. A caminhonete estava repleta de histórias e memórias daquele dia especial em família.

- Acho que os peixes do Lago Paulman podem descansar tranquilos esta noite, nós já pegamos o suficiente para um jantar delicioso! - Meu pai brincou, e todos nós concordamos, já ansiosos para saborear os frutos de nossa pescaria.

Ao chegarmos em casa, meu pai, sempre entusiasmado com atividades ao ar livre, teve uma ideia para complementar nossa noite: uma fogueira no quintal para assarmos alguns dos peixes que havíamos pescado. Minha mãe assumiu a tarefa de preparar o jantar, enquanto meu pai ficou responsável por cuidar de Matthew, nosso irmão mais novo, que estava animado com a ideia da fogueira.

Enquanto ajudava minha mãe na cozinha, meu pai olhou para mim e sugeriu:

- Antoine, que tal você ir até a floresta buscar algumas madeiras para a fogueira? Será uma aventura e vai ajudar a criar um clima especial para nossa noite em família.

Eu hesitei por um momento, lembrando-me do leve medo que senti mais cedo na floresta durante a pesca. No entanto, meu pai estava ocupado cuidando de Matthew e minha mãe precisava de ajuda na cozinha.

- Mas pai, está escurecendo lá fora e a floresta pode ser assustadora à noite... - Tentei argumentar.

Meu pai sorriu e tentou me tranquilizar:

- Não se preocupe, filho. Vou ficar de olho em Matthew e você não vai longe, apenas até a borda da floresta. Levará só alguns minutos e logo estaremos todos juntos em volta da fogueira. Além disso, você é corajoso, não é?

Embora ainda um pouco receoso, concordei. Peguei uma lanterna e, com um saco para carregar as madeiras, dirigi-me em direção à floresta enquanto o sol se punha lentamente no horizonte. A atmosfera estava diferente à noite, com sombras se alongando e os sons da natureza assumindo uma qualidade mais misteriosa.

Ao chegar à borda da floresta, olhei para as árvores escuras e senti um calafrio percorrer minha espinha. A ideia de adentrar aquela escuridão sozinho não era reconfortante, mas respirei fundo e comecei a caminhar cautelosamente. Cada som da floresta parecia ampliado pela escuridão, e meu coração batia mais rápido a cada passo.

Enquanto reunia algumas madeiras caídas, os galhos rangiam sob meus pés, criando uma trilha sonora inquietante. Tentei me concentrar na tarefa em mãos e não prestar atenção aos ruídos ao meu redor.

Foi quando ouvi um som estranho, um rosnado baixo e gutural. Congelei no lugar, segurando a lanterna com força. Meu pai não estava por perto para me proteger, e a sensação de vulnerabilidade se fez presente.

- Eu estou vendo coisas - Afirmei a mim mesmo em um sussurro.

Decidi terminar rápido e voltar para a segurança de casa. Carreguei o saco com as madeiras e comecei a retornar, acelerando o passo. Cada som desconhecido me deixava mais apreensivo, e a escuridão parecia se fechar ao meu redor.

Quando então, ouvi tiros, diversos tiros vindo da direção da minha casa. Meu coração disparou ao ouvir os tiros ecoando pela floresta. Um frio percorreu minha espinha enquanto as imagens dos momentos felizes em família contrastavam com os sons violentos que cortavam o ar.

Com a lanterna tremendo em minhas mãos, corri de volta para casa o mais rápido que pude. Cada passo era uma corrida contra o tempo, uma tentativa desesperada de chegar em casa e encontrar minha família a salvo.

Quando finalmente alcancei a clareira onde nossa casa se erguia, meu coração afundou. A cena diante de mim era como um pesadelo ganhando vida. A caminhonete alaranjada estava parada na entrada, os pneus sujos da estrada de terra. Mas o que mais me atingiu foram as silhuetas caídas no chão.

Meu pai e minha mãe estavam ali, imóveis, em uma imagem que não conseguia compreender. O rosto de meu pai, sempre sorridente e cheio de vida, agora estava pálido e vazio. Minha mãe, que sempre irradiava alegria, estava tão quieta quanto as sombras da noite que nos cercavam. Eles estavam mortos do lado de fora da casa, perto do lugar em que faríamos a fogueira.

As lágrimas brotaram em meus olhos enquanto eu corria na direção deles, meu corpo tremendo de choque e tristeza. Caí de joelhos ao lado deles, incapaz de processar a realidade diante de mim, deixando os galhos caírem ao lado do corpo de minha mãe.

- Não, não pode ser... - Sussurrei, minhas palavras se perdendo na noite.

Foi quando ouvi um som abafado vindo de dentro de casa. Uma voz conhecida, a voz de Matthew. Meu irmãozinho, cuja inocência e alegria agora eram um contraste assustador com o horror do que acontecera.

Com o coração apertado, levantei-me e entrei na casa. O que vi lá dentro foi ainda mais devastador. Matthew estava encolhido em um canto, os olhos arregalados de medo, as lágrimas molhando seu rosto infantil.

- Antoine, eles... eles... - Ele tentava falar, mas as palavras pareciam se perder em sua angústia.

Corri até ele, abraçando-o com força enquanto tentava entender o que havia acontecido. Matthew balbuciou sobre homens estranhos que apareceram de repente, sobre gritos e tiros, sobre como ele se escondeu e rezou para que tudo acabasse logo.

- Toine... Ele está atr... - Um tiro na parede em que estávamos envolvidos.

Um homem com seus vinte e poucos anos de cabelos loiros e aparência russa me olhou com um sorriso no rosto.

- Você é um garoto bem forte, o que fazia na floresta até agora? - Ele perguntou enquanto apontava a arma em nossa direção.

- Eu... eu estava pegando lenha - Às lágrimas escorriam no meu rosto pálido.

O homem continuou me encarando, seu sorriso cínico contrastando com a tensão que pairava no ar. Ele parecia avaliar a situação, sua expressão indecifrável.

- Lenha, é? - Ele repetiu, como se estivesse testando minha história.

Nesse momento, ouvi passos pesados se aproximando pela porta dos fundos. Outro homem, mais alto e com uma expressão séria, entrou na sala. Seus olhos varreram o ambiente, pousando em mim e em Matthew com uma mistura de curiosidade e avaliação.

- O que temos aqui, Ramon? - Ele perguntou ao homem loiro, sem desviar o olhar de nós.

- Um garoto esperto, pelo visto. Estava pegando lenha na floresta à noite? Parece uma desculpa conveniente, não acha? - Ramon respondeu, mantendo a arma apontada para nós.

Minha mente girava em busca de uma saída, qualquer coisa que pudesse nos salvar daqueles homens desconhecidos e armados. Meus olhos encontraram a janela ao lado, uma pequena chance de fuga se apresentando.

- Nós... nós só queríamos fazer uma fogueira... - Eu murmurei, buscando desesperadamente uma conexão humana que pudesse apelar para a compaixão deles.

O homem alto pareceu considerar minhas palavras por um momento, seu olhar analítico penetrando minha alma. Então, com um gesto brusco, ele se aproximou de nós e pegou Matthew pelo braço, arrastando-o em direção à porta.

- O que estão fazendo com meu irmão? - Gritei, meu coração martelando no peito.

Ramon se aproximou de mim, sua expressão se suavizando levemente.

- Calma, garoto. Não estamos aqui para machucá-los, só precisamos de algumas informações. Se cooperarem, tudo ficará bem.

Minha mente estava em turbilhão, mas uma parte de mim sabia que não podia confiar cegamente na promessa desses estranhos. No entanto, não havia escolha senão seguir adiante e proteger Matthew a todo custo.

- O que vocês querem? Por favor, não machuquem meu irmão. - Pedi, minha voz tremendo de medo e ansiedade.

O homem alto se virou para mim, seus olhos sérios agora refletindo uma sombra de compaixão.

- Vamos levá-los conosco por enquanto. Tenho algumas perguntas para vocês, e depois veremos como proceder. Não causem problemas, e tudo ficará bem.

Com Matthew sendo conduzido à frente, segui-os para fora da casa, a noite escura envolvendo-nos em seu abraço frio. O destino incerto e as intenções dos homens permaneciam como um mistério ameaçador diante de nós.

Eu corri para o lado de fora, e vi Matthew ser colocado em um carro preto. No momento em que vi meu irmão ser colocado à força dentro do carro preto, meu coração disparou ainda mais rápido. As lágrimas escorriam livremente pelo meu rosto enquanto eu lutava contra a sensação de impotência e desespero. Meus músculos estavam tensos, cada parte de mim gritando para correr em direção a ele, mas uma voz interior sussurrava para eu ser cauteloso, para pensar estrategicamente.

Ramon e o homem alto observaram minha reação com uma mistura de interesse e indiferença, como se estivessem acostumados com esse tipo de situação. Eles apenas entraram no carro em que Matthew estava.

- Por favor, não levem meu irmão! - Gritei, minha voz trêmula ecoando na noite.

O homem alto se aproximou de mim, seu olhar penetrante buscando sinais de fraqueza ou medo. Ele não disse nada por um momento, apenas estudou minha expressão com uma calma calculada.

- Você ainda será útil um dia - Roman disse e fechou a porta do carro enquanto o outro homem acelerava.

Vi Matthew pelo vidro de trás do carro gritar meu nome mas o som era muito abafado. Quando o carro preto desapareceu na estrada escura, levando meu irmão e levando consigo o que restava da minha segurança e inocência, um vazio gélido se instalou em meu peito. Fiquei ali, imóvel, com o coração apertado pela angústia e pela sensação de impotência.

As lágrimas escorriam livremente pelo meu rosto enquanto eu processava a realidade brutal que acabara de enfrentar. Minha mente lutava para compreender o que havia acontecido, para encontrar alguma faísca de esperança na escuridão que nos cercava.

As vozes de Ramon e do homem alto ecoavam em minha mente, suas palavras cínicas e promessas vazias pairando como sombras ameaçadoras sobre mim.

- Você ainda será útil um dia.

Essa frase ecoava como um eco sombrio, uma advertência silenciosa sobre o que poderia estar reservado para mim no futuro incerto que se desenrolava diante dos meus olhos.

Com passos vacilantes, caminhei de volta para a casa agora silenciosa, os ecos daquela noite ainda reverberando em minha mente atormentada. Cada canto escuro, cada sombra projetada pelas árvores da floresta, parecia sussurrar segredos sombrios e ameaças ocultas.

Ao entrar na casa vazia e silenciosa, meu coração pesou ainda mais. Os objetos familiares ao redor pareciam agora estranhos e distantes, testemunhas mudas de um passado feliz que agora se despedaçara em pedaços sombrios.

Caí de joelhos no chão frio, as lágrimas inundando meu rosto enquanto a dor e o desespero se misturavam em um turbilhão de emoções avassaladoras. Meus pais, meu irmão... tudo o que eu amava e conhecia estava agora fora do meu alcance, perdido em um labirinto de perigo e intriga.

Com um suspiro trêmulo, reuni o pouco de força que me restava. Sabia que não podia me render ao desespero, não enquanto Matthew precisava de mim mais do que nunca.

Levantei-me com determinação, a dor ainda presente, mas agora misturada com uma determinação feroz. Eu faria o que fosse preciso, enfrentaria qualquer desafio, para encontrar Matthew e trazê-lo de volta para casa, para a segurança que ele merecia.

Com passos firmes, comecei a traçar um plano, a buscar pistas e ações que pudessem me levar até meu irmão. A noite era escura e cruel, mas eu não permitiria que a escuridão engolisse a última luz de esperança que restava em meu coração.

Aquela foi a madrugada mais triste da minha vida, eu pensei em deixar meu corpo apodrecer em algum canto, mas isso seria suicídio e meu pai sempre dizia que homens fortes não se matam.

Então, a fome instável veio. A casa estava sem nada, sem suprimentos, sem dinheiro. Naqueles vinte e sete minutos que estive na floresta, minha vida toda girou um desastre. Então, eu peguei uma faca.

Fui ao lado de fora e me sentei ao lado do corpo da minha mãe, que estava gélida.

Minha mão tremia como se eu estivesse congelando, eu não permitiria que outra pessoa fizesse isso. Enfiei a faca dentro do corpo da minha mãe, precisamente na barriga onde ela tinha os pontos da cesariana e puxei a pele o máximo que eu pude.

Retirei um pedaço do corpo da mulher que me deu a vida com a mão, senti a textura com as minhas digitais. Aquela talvez, foi a primeira vez que me senti tão verdadeiro.

Eu sabia acender uma fogueira com as coisas que os homens haviam deixado na casa, pois eles haviam alguns fósforos caírem no chão.

Peguei um tipo de balde que ficava nos fundos da nossa cabana de madeira e abri o tanque de gasolina do carro para jogar nos gravetos. Peguei as roupas de Matthew que estavam curtas e fiz um amontoado junto com os galhos, joguei o líquido em cima e acendi um fósforo. A chama veio quente.

Peguei um graveto novamente e afundei ele na carne que havia retirado do corpo de minha mãe e assei-a naquela fogueira improvisada. Eu não poderia me deixar morrer de fome, não era isso que Alana iria querer.

Os dias após aquela noite fatídica foram uma espiral de desespero, dor e solidão. Eu tentava manter a compostura, tentava encontrar pistas ou qualquer informação que pudesse me levar até Matthew, mas cada dia que passava sem notícias era como uma faca cravada no meu peito.

A fome, implacável e insaciável, era uma presença constante. A princípio, eu relutava em pensar na ideia de comer carne humana, mas a necessidade de sobreviver era mais forte. Aos poucos, o desespero e a fome me levaram a cometer atos que nunca imaginei serem possíveis.

Comecei com pequenos pedaços, tentando convencer a mim mesmo de que era apenas uma questão de sobrevivência. Cada mordida era um conflito interno entre a repulsa e a necessidade básica de alimentação.

Os dias se arrastavam lentamente, e a cada dia que passava, minha mente se afundava mais na escuridão. Eu me isolava, evitando qualquer contato com o mundo exterior, com medo do julgamento e da condenação que certamente viriam se descobrissem o que eu havia feito.

Não havia coragem em mim para enfrentar a polícia, não só pelo crime hediondo de comer carne humana, mas também pelo que aconteceu com meus pais, e principalmente, com Matthew. Cada vez que eu olhava para a faca suja de sangue, a lembrança daquela noite assombrava meus pensamentos.

Eu não era mais o mesmo Antoine alegre e confiante que brincava com seu irmão mais novo e pescava com seus pais. Eu me tornei um espectro de mim mesmo, perdido em um labirinto de culpa, desespero e solidão.

Os dias se tornaram semanas, e as semanas se tornaram meses. Cada dia era uma luta para sobreviver, uma batalha entre a esperança frágil e a escuridão avassaladora que ameaçava consumir-me por completo.

E assim eu continuei, vivendo em um mundo de sombras e segredos, sempre olhando por cima do ombro, sempre com a sensação de que a verdade macabra daquela noite nunca me deixaria em paz.

Então, o inverno chegou e trouxe consigo um novo desafio: o frio cortante que penetrava os ossos e a neve que cobria a paisagem. Minha luta pela sobrevivência tornou-se ainda mais intensa enquanto tentava enfrentar as condições adversas da estação.

Minhas roupas estavam gastas e insuficientes para proteger-me do rigor do inverno. Cada dia era uma batalha contra o frio congelante, procurando abrigo em lugares abandonados e improvisando meios de me aquecer.

A solidão era minha única companhia, os dias se arrastando em uma rotina sombria de procurar por comida, água e abrigo. As lembranças daquela noite fatídica continuavam a assombrar-me, cada vez mais intensas à medida que a escuridão do inverno se aprofundava.

Cada noite era uma luta para dormir, os pesadelos e as memórias invadindo meus sonhos como fantasmas do passado. Eu me perguntava constantemente se algum dia encontraria Matthew, se algum dia encontraria redenção por minhas ações desesperadas.

A fome era constante, meus instintos de sobrevivência sendo testados ao limite. A caça tornou-se uma necessidade cruel, a busca por qualquer coisa que pudesse saciar minha fome voraz.

Às vezes, encontrava vestígios de civilização, ruínas abandonadas, casas vazias. Tentava evitar o contato com qualquer pessoa, o medo da descoberta e da condenação ainda forte em meu coração.

Os dias se transformaram em semanas, e as semanas em meses. O inverno se arrastava lentamente, uma provação interminável que parecia nunca acabar.

Eu me afastei de quem eu era, da inocência da infância e da alegria simples dos dias em família. Tornei-me um ser solitário e sombrio, consumido pela culpa e pelo peso de minhas ações passadas.

A cada passo que dava na neve gelada, a cada suspiro de ar gélido que queimava meus pulmões, eu me perguntava se algum dia encontraria redenção, se algum dia encontraria a paz que tanto ansiava.

Mas a vida não oferecia respostas fáceis, apenas desafios implacáveis que testavam minha força e minha determinação a cada momento.

E assim eu continuei, um fantasma perambulando pela paisagem desolada do inverno, carregando o fardo de minhas escolhas e buscando um vislumbre de esperança em meio à escuridão que me cercava.

O tempo passava, as estações mudavam, mas minha jornada solitária persistia. Eu não sabia onde minha busca por Matthew me levaria, mas uma coisa era certa: eu não desistiria. Eu não podia desistir.

Cada dia era uma luta pela sobrevivência, cada passo era um ato de resistência contra a escuridão que ameaçava consumir-me. Eu não era mais o Adrian que um dia fui, mas ainda havia uma centelha de esperança dentro de mim, uma chama frágil que me impelia a continuar.

E assim eu continuei, enfrentando os desafios do inverno, da solidão e da culpa, determinado a encontrar meu irmão, a encontrar redenção e a encontrar um sentido para minha existência nesse mundo implacável e cruel.

Minha jornada não tinha fim à vista, mas eu mantinha a esperança viva dentro de mim, uma luz fraca, mas inextinguível, guiando-me através das sombras do meu passado e do presente sombrio que eu enfrentava.

Em uma noite de inverno, provavelmente em um final de dezembro uma luz invadiu o interior da casa em que eu estava. Uma luz de um carro.

Olhei pela janela enquanto comia as unhas e vi Ramon, meu coração disparou quando vi aquele homem alto abrir a porta.

- Feliz natal, garoto.

O coração disparou quando ouvi aquelas palavras. Feliz Natal? Como poderia ser feliz em meio a tanta dor e desespero? Roman estava ali, parado na entrada da casa, seu olhar sério e avaliador como sempre.

- O que você quer? - Minha voz saiu num sussurro rouco, minha mente girando em pensamentos turbulentos.

Ramon deu um passo à frente, os olhos varrendo o ambiente sombrio da casa.

- Vim verificar como você está. Não é bom ficar sozinho neste frio, especialmente durante as festas de fim de ano. - Sua voz era calma, mas havia algo inquietante em sua presença.

- Não preciso da sua preocupação. Não quero nada de você. - Minhas palavras saíram com uma mistura de desconfiança e hostilidade.

Ele me estudou por um momento, como se tentasse decifrar meus pensamentos.

- Você sabe que podemos ajudar. Podemos te oferecer proteção, recursos, uma chance de recomeçar. Mas você precisa cooperar conosco. - A oferta era tentadora, mas eu não confiava neles, não depois do que aconteceu.

- Não quero nada de vocês. Só quero meu irmão de volta. Onde está Matthew? O que fizeram com ele? - Minha voz tremia de angústia e raiva reprimida.

Roman manteve seu olhar fixo em mim, sua expressão indecifrável.

- Se você cooperar, podemos discutir sobre isso. Mas precisamos de algo em troca. Informações, colaboração. - Ele parecia querer me convencer, mas eu estava determinado a não ceder.

- Não vou cooperar com vocês. Vocês são responsáveis pelo que aconteceu, pelo que fizeram com minha família. - Minha voz saiu firme, apesar da dor que permeava cada palavra.

Ramon suspirou, como se resignado diante da minha resistência.

- Você sabe onde nos encontrar, caso mude de ideia. Mas o tempo está passando. As coisas podem ficar mais difíceis para você se continuar nesse caminho. Pense bem. - Ele se virou para sair, deixando-me com minhas sombras e meus dilemas.

Ele abaixou no meu olhar.

- Antoine Ambrose, certo? - Ele questionou e eu não respondi - Eu sou Roman Schattenjäger, um agente russo. Seu pai não era um homem tão bom quanto ele te dizia. Ele fornecia armas para gente, e armas que mataram meus pais.

Roman olhou para mim com sinceridade.

- Mataram meus pais também, depois me pedir ajuda. Eu já estive no seu lugar Antoine e hoje estou bem acima. Você acha que não sabemos que você come os corpos? Achamos impressionante! - Ele passou a mão no meu cabelo - Quero treinar você. Quero te dar uma chance de vida, quero que você venha comigo para Moscow.

Me tremi com a explicação. Vi o retrato de família que ainda estava na parede e pude ver minha mãe sorrindo pela última vez. Ele iria me matar se eu não fosse ou se não matasse, eu faria.

- Eu vou... - Suspirei relutante.

- Você vai? - Roman perguntou, sua expressão se suavizando ligeiramente.

Eu balancei a cabeça, olhando para baixo por um momento antes de encontrar seus olhos novamente.

- Eu vou, mas com uma condição. - Declarei com firmeza.

Roman arqueou uma sobrancelha, indicando para que eu continuasse.

- Quero respostas. Eu quero justiça, Roman. - Minha voz tremia um pouco, mas eu mantive minha postura.

O agente russo estudou meu rosto por um momento antes de assentir lentamente.

- Muito bem, garoto. Se você está disposto a buscar a verdade e enfrentar as consequências, estarei ao seu lado. - Ele estendeu a mão para mim.

Eu a segurei com determinação.

- Estou pronto para isso.

Roman sorriu levemente, um olhar de aprovação brilhando em seus olhos.

- Então vamos lá, garoto. Nossa jornada está apenas começando.

Enquanto o carro se movia pela estrada deserta em direção ao local onde o jatinho particular aguardava, meu coração batia forte, uma mistura de ansiedade, medo e determinação me consumia. Eu sabia que estava entrando em um mundo perigoso, um mundo de segredos sombrios e vingança.

Ramon dirigia em silêncio, sua expressão séria e concentrada. Eu o observava de soslaio, tentando decifrar suas intenções, tentando entender por que ele estava me oferecendo essa oportunidade.

Quando chegamos ao local, o jatinho particular estava lá, reluzente sob a luz das estrelas. Era uma visão impressionante, um símbolo de um mundo ao qual eu nunca imaginei pertencer.

Ramon guiou-me até o interior da aeronave, onde fomos recebidos por uma equipe discreta, mas eficiente. Sentei-me em um dos assentos, sentindo a tensão e a excitação se misturarem em meu peito.

O jatinho decolou suavemente, cortando o céu noturno em direção a Moscow. Enquanto voávamos, Roman começou a me explicar mais sobre o que estava por vir.

- Antoine, você está prestes a entrar em um mundo completamente diferente. Um mundo de agentes secretos, intrigas internacionais e perigos inimagináveis. - Sua voz era séria, mas havia um brilho de entusiasmo em seus olhos.

Eu o encarava, absorvendo cada palavra com uma mistura de fascínio e apreensão.

- O que você quer de mim, Roman? Por que está me dando essa chance? - Minhas perguntas eram sinceras, a curiosidade e o desejo por respostas se misturando em minha mente.

Roman suspirou, recostando-se no assento antes de responder.

- Como eu disse antes, seu pai não era tão bom quanto você pensava. Ele estava envolvido em atividades ilegais, fornecendo armas para grupos perigosos. Isso causou muitas mortes, incluindo a dos meus pais. - Sua voz era carregada de emoção, uma mistura de raiva e tristeza.

Eu ouvia atentamente, conectando as peças do quebra-cabeça em minha mente.

- E você acha que eu posso ajudar de alguma forma? - Minha voz era um sussurro, a responsabilidade pesando em meus ombros jovens.

Roman assentiu, seu olhar firme encontrando o meu.

- Eu vejo potencial em você, um potencial que pode ser moldado e direcionado para fazer a diferença. - Sua voz era persuasiva, tentando me convencer da importância do papel que eu poderia desempenhar.

Eu ponderava suas palavras, sentindo uma mistura de emoções conflitantes dentro de mim.

- Eu não falo russo - Assumi baixinho.

- Eu sei que não, você terá eu e isso basta - Ramon respondeu.

- E Matthew? O que acontecerá com ele? - Minha preocupação com meu irmão era evidente em minha voz.

Ramon olhou para mim, sua expressão séria e ponderada.

- Vamos trabalhar juntos para descobrir o paradeiro de Matthew e trazê-lo de volta em segurança. Eu prometo isso a você. - Sua promessa era firme, mas eu sabia que havia muito mais em jogo do que apenas a segurança de Matthew.

Enquanto o jatinho cortava os céus em direção a Moscow, eu sabia que minha vida estava prestes a mudar de maneiras que eu nunca poderia ter imaginado. Uma nova jornada começava, repleta de desafios, perigos e descobertas. Eu estava determinado a enfrentar tudo isso, em busca da verdade, da justiça e da redenção que eu tanto ansiava.

[...]

Ao chegar em Moscow, fui introduzido a um mundo completamente novo e fascinante, mas também perigoso e implacável. O treinamento começou imediatamente, e eu mergulhei de cabeça nessa nova realidade, determinado a me tornar tudo o que Ramon Schattenjäger acreditava que eu poderia ser.

- Antoine, você precisa de um codinome. Algo forte que se pareça realmente com um nome real, você tem dois sobrenomes, Dubois e Ambrose. Escolha um que eu escolherei um nome - Disse Ramon, seu olhar penetrante demonstrando a seriedade da situação.

Depois de refletir por um momento, considerei as opções.

- Ambrose - Murmurei para mim mesmo, deixando o som ecoar em minha mente. Era um sobrenome com uma presença imponente, evocando imagens de mistério e elegância. Dubois me lembrava de minha mãe, entretanto, a última memória que eu tinha da minha mãe dela sendo comida pelo próprio filho.

- Adrian Ambrose - Concluiu Ramon, como se testando o nome no ar - Sim, isso soa forte e autêntico. É isso, você será Adrian Ambrose a partir de agora.

- O que significa?

- "Adrian" vem do latim e significa "aquele que vem do mar escuro". Já "Ambrose" tem origem no latim e no grego, significando "imortal" ou "divino". Seu codinome pode ser interpretado como algo como "aquele que vem do mar escuro e é divino".

Eu gostava da ideia de ser chamado de divino.

- Eu gostaria de ser chamado assim.

Com esse novo nome, senti uma onda de determinação e confiança se espalhar por mim. Adrian Ambrose, um novo começo, uma nova identidade.

Os dias se transformaram em semanas, e as semanas em meses, enquanto eu era submetido a um rigoroso regime de treinamento físico, mental e tático. Aprendi técnicas de combate, estratégias de sobrevivência, investigação e inteligência, tudo sob a orientação experiente de Roman e sua equipe.

Cada dia era um desafio, cada exercício uma oportunidade de superar meus próprios limites e crescer como agente em treinamento. A disciplina e a determinação tornaram-se meus companheiros constantes, impulsionando-me através dos momentos mais difíceis e exigentes.

Enquanto me dedicava ao treinamento, a promessa de Roman de que eu teria a oportunidade de ver Matthew novamente era o que me mantinha motivado e focado. Cada avanço no treinamento era um passo em direção a essa possibilidade, uma luz no fim do túnel que eu ansiava alcançar.

Ramon também não deixava de me recordar das razões pelas quais eu estava ali. A busca pela verdade sobre meu pai, a descoberta dos responsáveis pelas mortes de meus pais e a redenção que eu procurava eram constantemente relembradas durante o treinamento.

Os meses se passaram, e eu me transformei em um agente em treinamento habilidoso e determinado. A confiança que eu adquiri ao longo do treinamento era palpável, assim como a determinação de cumprir as promessas que fiz a mim mesmo e a Roman.

Finalmente, chegou o momento em que Roman me chamou para uma conversa séria.

- Adrian, você fez um progresso notável durante seu treinamento. Estou orgulhoso de como você se desenvolveu e do seu comprometimento com nossos objetivos. - Roman começou, sua expressão séria e avaliativa.

Eu ouvi atentamente, sentindo a expectativa crescer dentro de mim.

- Chegou a hora de darmos o próximo passo. Você está pronto para enfrentar os desafios que virão pela frente, tanto pessoais quanto profissionais. - Ele continuou, sua voz firme e determinada.

Meu coração batia forte, sabendo que este era o momento que eu aguardava ansiosamente.

- E quanto a Matthew? - Minha pergunta saiu quase num sussurro, a esperança e a ansiedade misturadas em minha voz.

Schattenjäger sorriu levemente, como se soubesse o que estava por vir.

- Matthew está seguro, Adrian. Ele está em um local seguro, protegido por nossa equipe. Mas para vê-lo novamente, você precisa completar esta próxima missão com sucesso. - Sua voz era cheia de significado, destacando a importância do desafio que estava por vir.

Eu assenti, a determinação renovada queimar dentro de mim.

- Estou pronto, Ramon. Pronto para enfrentar o que for necessário para ver meu irmão novamente e para buscar a verdade que tanto procuro. - Declarei com convicção.

Roman se levantou, indicando que era hora de começar os preparativos para a missão.

- Então vamos lá, Adrian Ambrose. Nossa próxima etapa começa agora.

E assim, eu me preparei para o desafio que estava por vir, mantendo a promessa de que após completar esta missão, eu finalmente teria a oportunidade de ver Matthew novamente, trazendo um raio de esperança em meio às sombras do meu passado e presente sombrio.

Minha tarefa era eliminar um indivíduo endividado com eles. "Eles" referia-se à organização para a qual Roman trabalhava. No entanto, eu desconhecia a identidade deles na época. Posteriormente, passei a trabalhar para essa mesma organização. Recebi as instruções específicas: data, hora e local para executar a missão. Utilizando minha habilidade de tiro, eliminei o alvo do terceiro andar. Estava em um prédio a um quarteirão de distância, enquanto ele estava no prédio azul, que antigamente funcionava como um motel.

Quando vi o corpo dele caindo, tive certeza de que aquele era meu destino.

Nunca tive um motivo claro. Nunca me interessei realmente em descobrir o que acontecia com meu pai ou em que ele estava envolvido. Sabia apenas que ele negociava armas. De alguma forma, sempre soube que havia algo maior em jogo, pois ele não tinha um emprego formal, mas nunca faltava dinheiro em casa. Sempre tínhamos o básico: comida na mesa, todas as necessidades atendidas. Minha mãe, às vezes, vendia roupas para vizinhas que moravam longe, tão longe que mal podiam ser chamadas de vizinhas. Meu pai nunca teve um emprego registrado, mas o dinheiro sempre estava presente. Naquele dia, voltei para a organização, instalada em um prédio elegante. Schattenjäger não era o líder, mas ele comandava aquela base em particular. A diferença de idade entre nós era de apenas 11 anos.

Um dos caras da base me buscou e me levou de volta, eu tinha uma culpa que me dominava mas, sinceramente, o prazer era maior.

Schattenjäger estava no escritório dele e fui correndo para lá.

Eu me viro para encarar Ramon, a adrenalina da missão ainda pulsando em minhas veias. Seu olhar perspicaz parece ler cada pensamento turbulento que passa pela minha mente.

- Ramon, eu fiz o que precisava ser feito, mas... - minha voz vacila por um momento, a gravidade do que acabei de fazer pesando em meus ombros.

Ele me observa atentamente, esperando que eu continue.

- Eu preciso ver Matthew. Eu preciso ter certeza de que ele está bem. - Minha voz revela a urgência e a ansiedade que sinto.

Ramon assente compreensivo, sua expressão revelando uma mistura de compaixão e respeito.

- Claro, Adrian. Eu vou organizar isso para você. Mas lembre-se, nosso trabalho ainda não está completo. A jornada pela verdade e justiça continua. - Sua voz é séria, mas também reconfortante.

[...]

A porta se abre abruptamente, revelando Matthew em uma maca sendo escoltado por dois agentes da organização. Seu rosto está vazio, sem emoções, os olhos fixos em algum ponto distante que só ele parece enxergar.

- O que vocês fizeram com ele?! - Minha voz irrompe, cheia de raiva e desespero.

Ramon se aproxima, colocando uma mão em meu ombro, mas eu o afasto bruscamente.

- Ele foi lobotomizado. Fizemos isso para garantir que ele não fosse um risco para a organização, Adrian. Foi uma decisão difícil, mas necessária. - A voz de Ramon é calma, mas carrega o peso de uma escolha terrível.

Minha visão fica embaçada pela raiva e pelo choque. Eu tremo de fúria, a sensação de traição e impotência tomando conta de mim. Minhas mãos tremem enquanto eu me afasto de Schattenjäger, a mente girando em um turbilhão de emoções conflitantes.

Pego a arma que estava sobre a mesa de Ramon, engatilhando-a com um movimento rápido e determinado. Meus olhos estão fixos em Matthew, meu irmão que agora é apenas uma sombra do que um dia foi.

- Adrian, pare! Isso não vai trazer Matthew de volta! - A voz de Roman é desesperada, mas eu mal o ouço.

O mundo ao meu redor se reduz a uma imagem: Matthew, vazio e sem vida. A raiva me consome, uma chama ardente que queima tudo em seu caminho. Minhas mãos estão trêmulas, mas minha determinação é clara.

- Você não pode fazer isso! - Ramon tenta se aproximar, mas eu o mantenho à distância com a arma.

- Ele era meu irmão! E você o destruiu! - Minha voz ecoa no escritório, carregada de dor e desespero.

O tempo parece parar enquanto todos observam a cena tensa se desenrolar. Eu seguro a arma firmemente, a respiração acelerada, a mente em um turbilhão de emoções.

Ramon olha para mim, seus olhos transmitindo uma mistura de compreensão e tristeza.

- Adrian, eu entendo sua dor. Mas isso não vai trazer Matthew de volta. Precisamos continuar nossa missão, precisamos garantir que isso não aconteça com mais ninguém. - Sua voz é calma, mas firme.

Eu tremo de raiva e tristeza, lutando internamente com a decisão que tenho diante de mim. A arma parece pesar uma tonelada em minhas mãos.

- Eu não posso simplesmente esquecer isso, Ramon. Ele era minha família! - Minha voz treme, as lágrimas ameaçando cair - A única coisa que restou porque você matou a minha família! Você busca justiça? Então eu também busco.

Sabia que não poderia matar Ramon Schattenjäger, então, peguei a arma e atirei nos dois agentes que estavam ao lado de Matthew. Eles poderiam ter matado meu irmão, mas deixaram eu vê-lo porque queriam ver como eu reagiria.

O som dos tiros ecoa no escritório, cortando o silêncio tenso que se instalou. Os agentes caem no chão, o sangue manchando o carpete em um padrão sombrio. Meu coração bate descontroladamente, a adrenalina pulsando em minhas veias enquanto encaro Roman, a arma ainda apontada.

Seus olhos estão arregalados de surpresa, mas há uma determinação sombria neles.

- Adrian, o que você fez? Isso não era necessário. - Sua voz é calma, mas carrega um peso inegável.

Eu tremo de raiva e desespero, meus olhos fixos em Roman.

- Você fez de propósito! Usou isso como teste, para ver como eu reagiria! - Minha voz é um misto de fúria e tristeza.

Ramon respira fundo, suas palavras cuidadosamente escolhidas.

- Você precisa entender, Adrian. Isso não muda nada na sua situação - Sua voz é firme, mas compreensiva.

Eu baixo a arma lentamente, a realidade do que fiz se instalando em minha mente. As lágrimas começam a escorrer pelo meu rosto, misturando-se com a raiva e o remorso.

- Eu queria... Eu só... - Minha voz falha, as palavras sendo engolidas pela emoção.

Ramon se aproxima lentamente, a expressão preocupada.

- Você precisa se acalmar, Adrian. Isso não pode acontecer de novo. Agora, mais do que nunca, precisamos permanecer unidos e focados em nossa missão. - Sua voz é reconfortante, mas há uma tensão subjacente.

Eu me afasto, abaixo a arma completamente, o peso do ódio pesando em meus ombros indo até Matthew segurando a mão dele ignorando os corpos no chão.

Lágrimas escorriam ao vê-lo assim.

- Eu preferia que tivessem o matado - Minha voz é um tambor, carregado de raiva.

Ramon me olhou de recanto enquanto dois agentes entravam no quarto e me seguravam com força.

- Levem-o para a sala branca - Ramon ordenou.

A raiva fervia dentro de mim como lava em erupção. Não havia espaço para racionalidade, apenas a intensidade do ódio e da dor que me consumiam por dentro.

- Você acha que pode simplesmente me dizer para me acalmar depois do que fez? - Minha voz era um rugido, ecoando pelas paredes da sala branca. - Você não tem ideia do que eu passei! Do que Matthew passou!

Ramon mantinha sua postura firme, mas havia uma sombra de incerteza em seus olhos. Ele sabia que tinha mexido com algo explosivo ao mexer comigo.

- Adrian, entendo que esteja com raiva, mas precisamos olhar para o quadro geral. - Sua voz tentava ser conciliatória, mas eu não estava interessado em suas palavras de consolo.

- Quadro geral? Você matou meu irmão! Você acha que eu me importo com o maldito quadro geral? - Gritei, as palavras saindo em um rosnado.

Os agentes ao redor pareciam desconfortáveis, mas mantinham suas posições, prontos para intervir se eu perdesse completamente o controle.

Ramon deu um passo à frente, tentando se aproximar com cautela.

- Adrian, precisamos manter a compostura. Isso não nos levará a lugar algum. - Sua voz era calma, mas seus olhos denunciavam a tensão crescente.

Eu sentia meu corpo tremer de fúria, os músculos tensos como cordas prestes a se romperem.

- Compostura? Você quer que eu tenha compostura depois de ver meu irmão morto? Depois de saber que ele foi apenas um peão em seu jogo sujo? - Minha voz era um grunhido, as palavras carregadas de veneno.

Ramon suspirou, parecendo resignado diante da minha explosão de raiva descontrolada.

- Adrian, entenda, não era minha intenção causar tanta dor. Mas precisamos seguir em frente, precisamos continuar nossa missão. - Sua voz era quase suplicante, mas eu estava além de qualquer apelo à razão.

- Sua missão? Sua maldita missão não significa nada para mim! Você destruiu minha família, e agora quer que eu simplesmente siga em frente? - Meu rosto estava contorcido de raiva, as palavras saindo em um rosnado baixo.

Os agentes trocaram olhares preocupados, mas mantiveram suas posições, esperando o momento certo para intervir.

Ramon respirou fundo, seus olhos se fechando por um instante antes de se dirigir a mim novamente.

- Adrian, não podemos mudar o passado, mas podemos moldar o futuro. Você tem o poder de fazer a diferença, de garantir que mais ninguém passe pelo que você passou. Mas isso requer controle, requer foco. - Sua voz era firme, mas havia uma nota de compreensão.

Eu senti uma onda de exaustão me atingir, a fúria perdendo um pouco de sua intensidade enquanto as lágrimas começavam a se misturar com a raiva em meu rosto.

- Eu não aceito esse destino - Sussurrei.

O branco do quarto era tão intenso que parecia refletir a minha própria mente, um vazio sem fim onde os pensamentos ecoam e se distorcem. Sentado na beira da cama fria, eu observo as sombras dançando pelas paredes como espectros silenciosos. Eu via Matthew vivo me chamando para brincar.

- Vamos pescar Antoine!

Não é real, eu sei. Matthew não está aqui. Ele se foi, uma vítima das circunstâncias sombrias que eu mesmo ajudei a criar. Mas mesmo assim, a mente teimosa insiste em projetar vultos que se assemelham a ele, como se o fantasma do meu passado estivesse se recusando a me deixar em paz.

Os vultos se contorcem e se transformam, assumindo formas que me são familiares. Às vezes é o sorriso brincalhão de Matthew, outras vezes são seus olhos vazios refletindo a dor e a confusão que o consumiram.

- Não... - sussurro para mim mesmo, tentando afastar as visões perturbadoras. Fecho os olhos com força, desejando que tudo seja apenas uma ilusão passageira. Mas quando os abro novamente, os vultos persistem, desafiando minha sanidade.

Me levanto da cama com passos vacilantes, a sensação de estar sendo observado por algo que não pertence a este mundo me enche de angústia. Caminho em direção às sombras, como se pudesse confrontar meus próprios demônios internos dessa forma.

- Você não está aqui, Matthew. Você... - murmuro, as palavras se perdendo no silêncio sufocante do quarto. Mas as sombras continuam a dançar, indiferentes ao meu sofrimento.

Com as mãos trêmulas, eu tento tocar as sombras, desejando que elas se dissipem como fumaça ao meu contato. Mas elas permanecem ali, uma representação dolorosa de tudo o que perdi, de todas as escolhas erradas que fiz.

Então, a porta do quarto se abre e uma médica russa entra, trazendo consigo a realidade crua. As sombras desaparecem instantaneamente, deixando-me com a sensação de que estive à beira do abismo da minha própria mente.

Enquanto era levado de volta à rotina da base, o eco das sombras ainda ressoa em minha mente, um lembrete constante de que, mesmo no mundo branco e estéril do quarto, as memórias do passado podem se manifestar de maneiras assustadoras e dolorosas.

Quando matei minha quarta, três dias haviam se passado desde minha visita naquela sala branca, imerso em uma névoa densa de culpa e raiva. Caminhava pelos corredores frios e sombrios da base russa, os ecos dos meus passos reverberando nas paredes de concreto como acusações silenciosas. Minha mente estava em turbilhão, mas uma determinação sombria mantinha meus pés em movimento na direção do destino sombrio que eu mesmo havia traçado.

Ao chegar à porta onde Matthew estava, meu coração batia forte no peito, uma mistura de ansiedade e resolução enchendo meus sentidos. Eu, o irmão mais velho, sabia o que era melhor para ele, mesmo que isso significasse mergulhar nas profundezas da escuridão.

A sala era como um sepulcro silencioso, iluminada apenas pelo brilho fraco das luzes fluorescentes. Matthew jazia ali, inconsciente e ligado a máquinas que o mantinham em um estado de torpor artificial. Mas eu sabia que aquilo não era vida para ele; era apenas uma sombra do que ele um dia fora.

Com mãos trêmulas, manipulei os controles das máquinas, o peso da decisão pesando sobre mim como uma âncora. Num ato de desespero e determinação, desliguei os aparelhos, permitindo que Matthew escapasse para longe da dor e do sofrimento.

Seus olhos, antes vazios e sem vida, encontraram os meus por um breve momento antes que a escuridão o envolvesse. Foi um olhar sem julgamentos, apenas aceitação resignada. Matthew tinha apenas quatro anos quando foi lobotomizado pelos agentes russos, e agora, aos meus próprios olhos, eu o assassinei, tirando o que restava de sua humanidade.

A culpa me atingiu como uma avalanche enquanto eu encarava o rosto sereno de Matthew. Eu havia cruzado uma linha sombria, mergulhando em um abismo do qual não havia retorno. Meu corpo tremia com o peso da minha própria traição, minhas mãos manchadas pelo sangue daquele que eu deveria proteger.

A porta da sala se fechou atrás de mim com um estrondo surdo, ecoando o vazio que agora preenchia minha alma. Eu tinha cometido um ato irrevogável, e agora a sombra daquela escolha pairava sobre mim como um espectro implacável.

Os dias na base russa eram como um cárcere de ferro e sombras, um redemoinho constante de tensão, medo e dever. Os corredores labirínticos de concreto cinza se estendiam como veias pulsantes, conectando salas frias e escuras onde segredos eram sussurrados entre murmúrios de paranoia. Cada momento ali era uma dança perigosa entre o que era necessário para sobreviver e os fantasmas do passado que me assombravam.

Os primeiros anos foram os mais difíceis. A base era um lugar impiedoso, onde a disciplina era severa e a punição era implacável. Treinamentos extenuantes, exercícios simulados de combate e missões secretas me moldaram não apenas fisicamente, mas também mentalmente. Eu me tornei uma arma afiada, afogando minhas emoções profundas em um mar de obediência e controle.

Aos poucos, fui subindo na hierarquia obscura da base. Tornei-me parte de operações clandestinas, infiltrando-me em ambientes hostis, roubando informações vitais e executando missões que exigiam não apenas habilidade, mas também sangue frio. Cada missão era uma prova de minha lealdade e habilidade, mas também uma lembrança constante das escolhas que me levaram até ali.

Eu tinha algumas sessões que outros agentes consideravam "terapêuticas" com Schattenjäger mas, eu acha um saco.

- Adrian, você é forte, mas sua raiva é seu maior inimigo - começou Ramon, sua voz suave e manipuladora ecoando na sala escura. - Você não pode deixar que ela o controle, senão você se tornará apenas mais um brinquedo nas mãos dos inimigos.

- Eu sei controlar minha raiva, Ramon. Não sou um fantoche - retruquei, lutando para manter minha compostura diante de suas palavras incisivas.

- Você acha que pode mudar o mundo com sua raiva? Não, Adrian, você só vai se perder no caos - ele continuou, sua voz envolvente como uma serpente prestes a atacar. - Você precisa encontrar paz dentro de si mesmo, só assim poderá verdadeiramente fazer a diferença.

- Não preciso de suas lições de moral, Ramon. Eu sei o que estou fazendo - respondi, mas as dúvidas começavam a se infiltrar em minha mente, minando minha confiança.

Ramon percebeu minha vulnerabilidade e intensificou seu ataque mental, jogando mais lenha na fogueira emocional.

- Você quer justiça, Adrian, mas a justiça não vem da vingança cega. Ela vem da calma, da estratégia, da sabedoria - ele disse, suas palavras reverberando em minha mente como um mantra hipnótico.

Quando a sessão chegou ao fim, saí da sala com um turbilhão de emoções. Sabia que Ramon havia tentado me manipular, mas uma parte de mim ainda lutava para resistir à influência do meu mentor. A batalha interna havia começado, uma luta entre minha raiva e meu desejo de justiça, entre a manipulação de Ramon e minha própria força interior.

A vida na base era um jogo perigoso, onde traições eram comuns e alianças eram tão frágeis quanto cristais. Aprendi a confiar apenas em mim mesmo, a nunca abaixar minha guarda, mesmo entre aqueles que supostamente eram meus aliados. Cada sorriso era uma máscara, cada palavra uma possível armadilha.

Enquanto crescia na base russa, também crescia dentro de mim uma determinação silenciosa. Cada cicatriz física e emocional era uma marca da minha jornada, uma lembrança do que eu havia perdido e do que eu estava disposto a sacrificar para proteger o que restava.

Minha existência era uma dualidade constante. Por um lado, eu era um agente treinado, um executor das vontades daqueles que controlavam os fios invisíveis. Por outro lado, eu era um filho que havia perdido seu irmão para as maquinações cruéis do mundo.

Meus dias na base russa eram uma teia complexa de segredos, mentiras e violência contida. Cada missão cumprida era um passo em direção ao meu próprio entendimento do mundo sombrio em que eu estava mergulhado. Cada momento de solidão nos quartos escuros era uma oportunidade para refletir sobre o que eu havia me tornado e o que eu ainda pretendia ser.

E assim, dia após dia, eu cresci na sombra da base russa, uma criatura moldada pela escuridão e pela dor, mas também uma força a ser temida e respeitada pelos que cruzavam meu caminho. Minha jornada estava longe de terminar, mas eu estava determinado a encontrar redenção em um mundo onde cada passo era uma escolha entre o bem e o mal.

Quando finalmente alcancei a maioridade, não era mais o jovem atormentado pela culpa e pela dor. Então, decidi fugir de Ramon. Eu tinha autorização da base para sair assim que completasse maior idade, tinha recebido os documentos novos com uma história de vida nova.

Eu era Adrian Ambrose, nascido em Oregon onde os pais morreram em um acidente e viveu em vários lares adotivos por isso não tinha registro.

A escuridão da noite era uma aliada enquanto eu me movia pelos corredores familiares da base russa. Meus passos eram firmes, determinados, enquanto eu seguia em direção à liberdade que tanto ansiava. Sabia que Ramon não ficaria feliz com minha decisão de partir, mas eu estava determinado a deixar aquele mundo sombrio para trás.

Ao alcançar o ponto de saída planejado, pude sentir a presença de Ramon se aproximando rapidamente. Sua voz ecoou pelos corredores, carregada de ameaças veladas e promessas sombrias.

- Adrian, você não pode fazer isso. Volte agora mesmo! - gritou Ramon, sua voz cortando o silêncio da noite.

Eu me virei para encará-lo, os olhos cheios de determinação e desafio. Levantei minha arma, não para atacar, mas para me defender, para garantir minha liberdade.

- Eu não voltarei para você, Ramon. Estou cansado desta vida de mentiras e manipulações. - Minha voz era firme, o peso da decisão ecoando em cada palavra.

Ramon avançou em minha direção, seu rosto contorcido de raiva e desespero. Ele sabia que estava perdendo o controle sobre mim, e isso o enlouquecia.

- Você vai pagar por isso, Adrian. Vai voltar para mim, nem que eu tenha que te buscar à força! - sua voz ressoou com uma determinação feroz, uma promessa de vingança no ar.

Eu olhei nos olhos de Ramon, vendo a escuridão que ele representava, a mesma escuridão que eu estava determinado a deixar para trás. Sem hesitar, apertei o gatilho, um estampido ecoando pelo corredor vazio.

Ramon caiu ao chão, atingido pelo disparo. Sua expressão de choque e dor foi como um último lembrete do mundo que eu estava deixando para trás. Eu me afastei, a adrenalina pulsando em minhas veias enquanto corria em direção à liberdade.

Aquela noite marcou o fim de uma era sombria e o início de uma nova jornada para mim. Sabia que Ramon não desistiria facilmente, que suas ameaças eram reais, mas eu estava determinado a não cair novamente em suas garras.

Enquanto fugia da base russa, deixando para trás tudo o que conhecia, prometi a mim mesmo que nunca mais seria manipulado, nunca mais seria apenas um peão em um jogo de poder e intriga. Meu destino estava nas minhas mãos, e eu estava pronto para enfrentar qualquer desafio que o futuro reservasse.

Com o dinheiro dos trabalhos que eu fazia para a base, comprei uma passagem para o Canadá pois era o sonho do meu pai ver as cataratas.

Ao chegar em Vancouver, respirei fundo o ar fresco e limpo, deixando para trás as sombras do meu passado. Com o dinheiro que acumulei dos trabalhos obscuros na base russa, comecei a construir uma nova vida. Encontrei um modesto apartamento em Toronto, próximo às universidades onde eu planejava estudar.

Meu pai sempre sonhou em ver as Cataratas do Niágara, então, em homenagem a ele, fiz questão de visitar aquele espetáculo natural magnífico. Foi um momento de paz e reflexão, um lembrete de que a vida ainda guardava beleza apesar de todas as adversidades.

Matriculei-me na faculdade de medicina, decidido a usar minhas habilidades para ajudar as pessoas de forma genuína, sem as sombras do passado a me assombrar. Estudava com dedicação, aproveitando cada oportunidade para aprender e crescer como profissional e como pessoa. Com isso, consegui uma vaga no hospital particular Saint Pierre.

À medida que os anos passavam, eu me tornei um médico dedicado, pronto para assumir desafios e fazer a diferença na vida dos pacientes. Eu tinha alguns milhões na conta bancária que sabia que era suspeito por eu ser um imigrante que "não trabalhava". Então, comprei uma casa grande e com um grande jardim na frente pois me lembrava a floresta.

Foi então, quando eu já tinha cerca de vinte e poucos anos e estava prestes a concluir minha residência, que recebi uma mensagem de e-mail que mudaria meu rumo mais uma vez. Era um pedido para cuidar de uma paciente com um tumor na perna.

O desafio era grande, mas eu sabia que era uma oportunidade para aplicar tudo o que aprendi e fazer a diferença na vida dessa pessoa. E assim, minha jornada de cura e redenção continuava, cada passo me levando mais longe da escuridão do passado e mais perto da luz do meu propósito.

A garota que eu cuidaria no tratamento se chamava, Sarah Bloom, e eu fiquei fascinado em como ela era tão esperta e bonita. Uma adolescente que perdeu a pré-adolescência por conta de um tumor era algo inspirador.

Uma noite, após um longo dia de trabalho na ala de oncologia do hospital, onde eu havia sido designado para cuidar da paciente com o tumor na perna, uma sensação familiar começou a se insinuar em minha mente. Era como se um antigo vício estivesse despertando, uma ânsia que eu havia mantido sob controle por tanto tempo.

Enquanto caminhava pelas ruas silenciosas de Toronto, a lua lançando uma luz pálida sobre os prédios altos, eu lutava contra os pensamentos sombrios que tentavam se apoderar de mim. Lembranças do gosto do sangue humano, da adrenalina de uma caçada, insistiam em emergir das profundezas da minha mente.

Encontrei-me diante de um beco escuro, onde sombras dançavam como espectros silenciosos. A tentação era forte, o desejo de sentir novamente a sensação de controle absoluto, de poder sobre a vida e a morte.

Com mãos trêmulas, resisti à tentação por um momento, lutando contra as lembranças de um passado que eu havia jurado deixar para trás. Mas a voz interior, a parte de mim que ainda lembrava o gosto do proibido, crescia em intensidade.

Foi então que uma figura solitária emergiu das sombras do beco. Seus passos eram hesitantes, seus olhos refletindo medo e vulnerabilidade. Era como se o universo estivesse testando minha determinação, colocando uma tentação diante de mim.

Então, eu agarrei a oportunidade, entretanto virou um vício. Comecei a usar meus dotes de cirurgias nas minhas vítimas. Eu odiava ver os olhos delas pois me lembravam os de Matthew quando estava com o efeito da lobotomia. Também arrancava os órgãos que eu pretendia saborear e jogava o corpo em algum canto quando eu queria que achassem.

A polícia me apelidou de "Carniceiro" mas, eu preferia o jeito que a Sarah citou uma vez em um tratamento.

Estávamos na clínica e faltava alguns minutos para ela entrar na sala de cirurgia, Sarah me perguntou uma coisa.

- Você viu as reportagens sobre o Ladrão de Olhares? - Ela perguntou séria e eu dei uma risadinha - Não é esse o nome, né? - Ela riu.

- Não, mas é muito melhor que o nome que a polícia escolheu, "Carniceiro".

- Muito feio!

- Sim, concordo. "Ladrão de Olhares" tem um toque poético, não acha? - Respondi, tentando afastar as memórias sombrias que o apelido "Carniceiro" trazia à tona.

Sarah assentiu, um sorriso leve brincando em seus lábios enquanto nos preparávamos para a cirurgia. A luz do ambiente clínico refletia em seus olhos, dando-lhes um brilho singular que me fez lembrar do mesmo brilho nos olhos de Matthew, mesmo que agora estivessem distantes.

Enquanto eu me concentrava na tarefa à frente, minha mente vagueava para aquela noite no beco escuro, onde eu cedi à tentação e me tornei o "Ladrão de Olhares". O vício se instalou rapidamente, alimentando-se das lembranças e dores do passado.

No entanto, ao ver o brilho nos olhos de Sarah, uma paciente que eu prometera cuidar e curar, algo dentro de mim mudou. Era como se uma faísca de humanidade tivesse sido reacendida, lembrando-me de que havia mais do que simplesmente satisfazer um desejo sombrio.

Enquanto trabalhava com habilidade e cuidado, uma sensação de propósito renovado se instalava em meu coração. Eu não podia mudar o que fiz no passado, mas podia usar minhas habilidades para fazer o bem, para trazer cura e esperança às pessoas ao meu redor.

Ao final da cirurgia, quando vi o sorriso de alívio e gratidão nos olhos de Sarah, soube que estava no caminho certo. O brilho nos olhos dela era diferente de qualquer coisa que eu já tinha visto, e por um breve momento, pude vislumbrar o mesmo brilho de Matthew, a mesma centelha de vida e esperança.

Enquanto deixava a sala de cirurgia, olhei para minha vida e o que ela me predestinava. O sangue daqueles que eu matei não sairiam das minhas mãos mas eu poderia salvar aqueles que mereciam entretanto os rudes,
os assassinos e os maus educados mereciam meu julgamento.

Aos poucos, Antoine Dubois Ambrose se tornou distante, uma mistura da inocência que eu tive um dia e do meu primeiro contato com qualquer tipo de malícia. Adrian Ambrose era quem eu estava predestinado a ser: O Carniceiro, o Ladrão de Olhares, um deus.

.

Se você chegou até aqui quero agradecer sua paciência por ter lido um capítulo com mais de 10 mil palavras!

Gostaria de explicar resumidamente o que é lobotomia caso alguém tenha ficado em dúvida do que aconteceu com Matthew.

A lobotomia era um procedimento cirúrgico que consistia na remoção de parte do cérebro, geralmente o lobo frontal, com o objetivo de aliviar sintomas psiquiátricos. No entanto, o procedimento era controverso e muitas vezes resultava em danos irreversíveis ao paciente, levando ao seu declínio cognitivo e emocional. Foi gradualmente abandonado com o avanço de tratamentos mais seguros e eficazes na psiquiatria.

Beijos!

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