Capítulo 2 | A invasora
Curitiba/PR, Brasil. - Parque Tingui/Memorial Ucraniano. - 10/02/20 - Corte Sul
Malakai Arzov
Curitiba não é o melhor lugar para um lobisomem. Mas tem parques, muitos parques. Além de que uma pequena parte de sua história viera daquela cidade. E como um bom lobo, o que deve ser levado em conta, é viver com a floresta por perto e algum nível de familiaridade.
Kai se sentou ao pé de uma árvore no Memorial Ucraniano, com uma matrioska - boneca russa - na mão. A boneca era branca com cabelos negros, e flores da mesma cor adornavam a região de sua barriga, que levava arabescos que imitavam roseiras, um indicativo de um cultura antiga e longínqua. Assim como a história de sua família.
Pensavam que ele era búlgaro, como o sobrenome falso deixava evidente. Porém era apenas uma camuflagem, algo que seu pai, Aleksey Azov, tinha inventado para esconder sua herança ucraniana.
Kai sempre fora uma peça no tabuleiro do pai, que esperara a hora certa para torná-lo mais forte, e forçá-lo a ser o líder que ''nascera'' para ser. Mas se cansara de agir como uma carta na manga, ou ainda, um monstro pronto para dilacerar qualquer coisa com os dentes a qualquer pico de agressividade.
Ele sabia que ganharia o torneio de Sawenhill¹ ainda que não se candidatasse. Sabia que o pai – antigo Alfa - se renderia, e que o irmão mais velho – e antigo Beta - , não cederia devido à teimosia, obrigando Kai a arrancar seu coração. Sabia que passaria por tudo aquilo... Mas que quando chegasse a hora de tomar o posto de alfa dos alfas, seria o seu momento, no qual daria seu glorioso não, e os mandariam se fuder.
E ali estava ele, esfregando a liberdade na cara da família há míseros dez dias. Porém, hoje era o término do seu prazo para retornar. O mesmo dia no qual sua cabeça seria colocada à prêmio, e todas as alcateias os caçariam para matá-lo, a fim de elevar seus líderes ao cargo de alfa dos alfas.
Por isso, ele ergueu a matrioska mensageira da morte na altura dos olhos, o suficiente para que visse, e quem quer que estivesse observando também vislumbrasse. Não fora preciso fazer sua força sobre-humana atuar, mas Kai queria ter certeza que a boneca estaria estilhaçada aos seus pés.
Era um fugitivo porque escolhera. E sua decisão havia sido acatada pela família, que na realidade acreditava que ele não sobreviveria como um alfa solitário. Mas que caso não morresse, o destino se encarregaria de encontrá-lo.
De qualquer forma, agora era um desertor, e não importa o quanto implorassem, não iria voltar. Nem que o destino viesse pessoalmente atrás dele. E certamente viriam: Alfa após alfa, beta após beta, alcateias após alcateias.
Pensariam que poderiam caçá-lo, pensariam que poderiam matá-lo. Mas não podiam. Era um alfa de verdade, por força. Sempre fora o mais forte dos irmãos, e sempre ganhara todos os torneios de lutas. Era tão poderoso que começara a ser conhecido como La Bestia, uma força jamais vista.
A Lei dizia que no caso deserção alfa, os lobisomens não podiam instituir outro alfa dos alfas sem que o antigo fosse morto, seja pela morte seja pela rendição. Porém ele nunca quisera essa responsabilidade, o que por si só já o obrigava matar um a um. Até que a alcateia real se reunisse e elaborassem outra lei, porque ele não poderia ser morto e estava muito, mas muito decidido a viver.
- Não devia ter feito isso. - Disse uma voz feminina e conhecida atrás dele. – Era um exemplar genuíno.
Ele se virou para observar sua irmã. Anastásia tinha os cabelos negros soltos, e a face pálida estava corada, torturada pelo sol brasileiro.
- Meu recado está dado.
- Vão caçá-lo.
- Vou matá-los. – pronunciou, se levantando.
- Vai me matar, assim como matou Ren? - ela perguntou. Kai sustentou o peso da morte de Warren no peito, e respondeu:
- Se tentar me matar...
- Sabe que não terei escolha, Kai.
- Então também sabe que irei matá-la por legítima defesa.
- Você é um alfa dos alfas. Tem uma família...tem uma alcateia.
- Isso não significa que não tenho escolha.
Os olhos negros da irmã se cravaram com pesar.
- Isso significa que não ter escolha faz parte.
- E é exatamente por isso que não tenho mais uma alcateia. – Kai concluiu, pronto para continuar sua corrida. Ele checou no relógio esportivo a quantidade de quilômetros, mas antes que desse o start, se virou. – Tásia, não volte.
Apesar de soar como uma ordem, era uma súplica. Anastásia colocou uma mecha do cabelo atrás da orelha, e com a cabeça abaixada assentiu. Kai sabia que ela voltaria, mas de qualquer forma, não custava nada avisar.
Ele continuou a corrida pelo parque Tingui. Já não sabia mais qual rodada era aquela, uma vez que já havia corrido mais de 30km. Ia continuar, dando mais e mais voltas, gastando toda a energia acumulada.
Porém, como não queria problema com as criaturas da noite - vampiros -, assim que o sol se pôs no horizonte, parou, retornando até a Harley-Davidson estacionada na sombra de uma árvore. Kai a montou, enfiando o capacete na cabeça suada.
A motocicleta partiu cantando pneu em direção à Estrada da Graciosa, uma via sinuosa ladeada por flores, e que devido à serração, tinha uma neblina fina esbranquiçando o ar.
Ele chegou à noite na cidadezinha de Morretes, que tinha esse nome por ser rodeada por morros. Ainda de moto, Kai entrou na linha do trem, seguindo para o parque estadual que guardava sua humilde moradia.
Clareando o caminho apenas pela lanterna da morto, ele seguiu por alguns quilômetros, e parou quando encontrou a casa abandonada e grafitada entre a linha do trem e dúzias de árvores, onde havia feito seu símbolo na parede com a ponto da garra. Um círculo como outro dentro. A representação dele, sozinho naquela jornada.
Kai escondeu à moto com a folhagem, e entrou na casa com uma lanterna que tirara do baú da motocicleta. O cheiro de mofo e tijolo molhado o recebeu quando pisou no piso de ardósia quebrado. O lobisomem se despiu, guardando a roupa de ginástica num buraco da parede onde era a antiga lareira.
E então começou a transformação.
Os ossos dele queimaram, se partindo e atrofiando em estalos. A dor que irrompia do corpo o fez morder os lábios, cuidando para que um rugido alto não cortasse a noite e espantasse a todos. Pelo menos, não antes da hora.
Sua altura de quase dois metros deu lugar a um lobo de um metro e noventa de comprimento. E onde era a pele bronzeada, surgiram pelos espessos e cinzentos. O nariz aquilino deu lugar a um grande focinho, sendo despertado ainda mais para os variados cheiros. Os olhos cinzentos continuaram os mesmos, porém ainda mais brilhantes, enxergando a noite em sua totalidade.
A liberdade de sentir sua própria natureza o fez sacudir a pelagem antes de sair da casa. O cheiro da floresta preencheu as narinas dele, numa mistura doce, campestre, e...picante? Kai levantou a cabeça, pondo o focinho na corrente gelada do vento.
Poderia ser tacos com molho picante, ou talvez pimenta numa genuína plantação. Mas não era. Parecia um perfume, encorpado, sensual e feminino. Na verdade...hormônios sobrenaturais. Ele balançou a cabeça, sentindo as narinas coçarem.
Tão logo farejou, um vulto perpassou na escuridão à frente. Os olhos cinzentos do lobo miraram a linha do trem, na direção da breve aparição. Ele podia jurar que havia alguém ali, alguém burro o suficiente para perturbá-lo na lua negra - nos três dias que antecipavam a lua nova -, onde a energia lunar o atingia intensamente, acentuando a instabilidade emocional.
Kai soltou um grunhido de irritação e trotou até o arbusto mais próximo, renovando a demarcação de território através da urina. Se fosse um vampiro, aquilo seria um aviso claro, se fosse um lobisomem, seria uma invasão.
Depois, seguiu rápido pela linha do trem, com destino à Cachoeira Véu de Noiva. Quanto mais perto chegava, mais os ruídos de risada e água soavam altos e discerníveis, bem como o cheiro de álcool e erva.
Adolescentes, aventureiros e nóias gostavam de acampar no parque estadual. Mas aquele não era mais um parque qualquer, era o espaço dele. E antes que a lua e as alucinações com o irmão o deixasse a ponto de dilacerar tudo - incluindo corpos humanos - ele foi até o alto da cachoeira.
O lobo grande e cinzento afugentava qualquer animal noturno e nativo que estivesse pelo caminho. Afinal, ele era uma espécie importada e predadora, e para tristeza da comunidade animal dali, não estava nem um pouco perto de ir embora.
A pata dianteira de Kai se equilibrou na pedra escorregadia ao lado da queda da cachoeira. Ele levantou o focinho farejando a brisa noturna, e preparou a garganta, soltando do âmago das entranhas o uivo. Um som estridente e rouco que irrompeu de sua garganta, eriçando todos os pelos do corpo lupino.
Embaixo da cachoeira as risadas cessaram, dando lugar a silêncio, e depois, a burburinhos e gritos. Um uivo causava uma bela inspiração para imaginação perturbada dos drogados e embriagados.
Outro dia, ele precisara assustar um cara drogado que tentava convencer os amigos que se jogar da queda da cachoeira era a única chance de fugir do lobisomem. O que na verdade era uma ótima forma de perder a vida, já que a queda alta e pedregosa indicava uma morte certeira para humanos.
E na realidade, nem um lobisomem comum Kai era. Herdara uma benção da linhagem do pai: a transformação completa. O que permitia que se transformasse completamente em lobo por pura vontade e necessidade, sem se tornar escravo da lua cheia como um lobisomem.
Ele uivou mais uma vez, para que os humanos céticos se convencessem que ali havia um lobo. Após isso, Kai deitou na pedra, observando alguns correrem, desmontando barracas às pressas. Ou simplesmente indo embora, guiados pelo pânico.
Agora era esperar o tempo necessário da evacuação e descer, só para ter certeza que nenhum humano restara. A cabeça do lobo descansou sobre as patas, fechando os olhos ligeiramente.
Ele não sentia nenhuma saudade de casa, ou do frio cortante da Bulgária. Estava cansado de viver nas florestas congeladas, e rogar por qualquer coelho que não estivesse magro o bastante para obrigá-lo a caçar outros três.
Ali, era o único predador. E tinha comida, silêncio e paz em abundância. Pelo menos até agora...
- CRACK! – uma galho seco se partiu.
A orelha do lobo se ergueu, escutando com paciência e atenção os movimentos do invasor. Era uma fêmea humana, e estava perto o bastante, exalando um odor fétido de medo e chiclete de menta. Ele podia ouvir as batidas do coração dela, tão rápido quanto o coração lupino dele.
Seu dorso queimava com o peso do olhar da humana. O cessar repentino do barulho indicava que ela ainda estava ali. Certamente calculando qual seria a melhor saída: gritar, correr...ou os dois. Um sorriso brincou no íntimo de Kai quando ele levantou a cabeça, ousando observa-la.
Mas Kai não estava preparado para a mulher de cabelos brilhantes e sedosos, vestida com couro e coturno, que por mais que exalasse aquele cheiro, tinha nos olhos tudo, menos medo.
Naquele momento em que uma eternidade pareceu residir, a brisa noturna soprou através dela, espalhando seus cabelos castanhos avermelhados ao ar, trazendo até ele a mesma fragrância picante e sobrenatural sentida anteriormente.
Ali estava sua invasora. Mas o quê exatamente ela era?
Sawenhill:¹ torneio de lutas no qual o ganhador se torna o alfa dos alfas.
Opa que saiu mais um cap, minha gente!! Aqui temos a apresentação de Kai, obstinado a viver como um alfa solitário ainda que possa ter que matar todos para ser deixado em paz.
A organização dos nossos lobos pode ter ficado um pouco nebulosa, mas será mais explicada e esmiuçada no desenrolar da história.
Imagino que vocês já tenham percebido quem é essa invasora, não? hahah O prox cap guarda muitas novidades... vocês sabem né, o encontro desses dois promete!!
Espero que tenham gostado do nosso alfa <3
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