Capítulo 18 | Submundo
Cidade de Morretes/PR, 21/03/2020, 16:47 - Corte Sul
Malakai Arsov
Seu corpo jazia desacordado e envenenado no banco do carona, enquanto de alguma forma sua consciência continuava alerta junto dela.
Rosie.
A fêmea era cabeça dura e determinada, e depois de decidir que queria dirigir sem a perturbação dele em sua cabeça, Kai simplesmente ficou ali. Parado nas frentes de seus portões mentais, totalmente cativado pelos muros da meia vampira.
Os caules espinhosos e verdes das rosas se entrelaçavam como obras de artes, e se estendiam por uma grande altura. A base toda florida se espalhava por uma distância que seus olhos não conseguiam acompanhar.
E talvez, ele nem quisesse. Somente aquele mar vermelho sangue das rosas com seus caules fosse o suficiente.
E se perguntava como.
Como poderia haver algum muro mental como aquele, que não fosse constituído por tijolos, pedras ou metais. Ou como na mente de Rosie, ele poderia estar tão vivo como nunca se sentira. Ou ainda, como aquela ligação entre um lobisomem e uma meia vampira poderia existir.
Em tantos anos de vida jamais se deparara com mistério tão grande, e seu tempo de academia nunca mencionara tal ligação interespécie. E por mais que a fêmea quisesse se desfazer daquilo , estava claro que intenção de continuar atrelado àquilo tudo não era somente pela mera vontade de levantar suas guardas e proteger todos os conhecimentos de seu povo.
Algo mais, que ainda não sabia identificar, existia também.
Kai desanuviou a mente, agora olhando para o enorme buraco negro embaixo da ponte que ligava Rosie a ele. Um poço sem fundo com ausência de qualquer luz. Somente uma escuridão pungente, e...
O freio súbito do carro capturou a atenção dele. Não tinha como saber o que Rosie via, mas somente como se sentia. E graças à grande mãe, não era o pânico que lhe deixou fora dos eixos como mais cedo.
Agora a fêmea só estava alerta. E sua respiração cadenciada e com forte cheiro de diesel e floresta, indicava que estavam perto da linha de trem. Talvez, ainda em Morretes.
- O que está fazendo? – ousou perguntar mentalmente.
- Indo em direção à nossa ajuda.
Kai franziu o cenho.
- E ele está em Morretes?
- Não, está com A Rebelião.
O alfa acompanhou os sons dela descendo do carro, e indo até ele no banco do carona. Seu corpo retirado com cuidado, sendo levado para o que parecia ser a floresta, de acordo com o barulho sutil da grama a cada passo dela.
- E onde está A Rebelião?!
A meia vampira soltou uma risadinha, os sons da floresta nada mais eram que brisas geladas e piar de pássaros. O sol os cobria com seu manto quente.
- Está em todo lugar.
Seu corpo foi colocado no chão de terra enquanto ela tocava em seus ferimentos. Kai ainda não entendia nada, e os flashes que havia visto quando ocorrera a ligação não lhe dava pistas algumas do que Rosie dizia.
- Você vai entender, Kai. Mas agora... – O sentimento de urgência da fome despontou na meia vampira, fazendo o alfa abrir os olhos languidos subitamente. Ele sabia que os caninos pontudos estavam prontos para morder ele.
- Vai se alimentar ou tentar me matar novamente?! – indagou às pressas através da ligação. Dessa vez, Rosie gargalhou de verdade.
- Claro que não! – ela ainda ria. – Não vou me alimentar ou matar você. Quer dizer, quero. Mas agora que sei que não morre, e se você fica ferido eu também fico... Não sou doida de me machucar. Estou tentando me concentrar para fazer a sucção do acônito que está te envenenando.
Um divertimento repentino passou pela consciência dele.
- É inteligente da sua parte. – Tinha de admitir.
Fora de seu país, longe de tecnologias e antídotos, a sucção do acônito através dos caninos talvez fosse muito eficaz e rápida.
- Você tem que parar de ver os vampiros como assassinos, sabe? Sei que não somos anjos, mas também não somos o diabo.
- São demônios.
- Criaturas da noite. – Rosie o corrigiu. – Demônio é um apelido nada fofo que os primeiros humanos colocaram na minha meia espécie.
- Há controvérsias.
- Que seja, alfa. – Rosie resmungou. – Agora me deixe trabalhar, porque se continuarmos envenenados vai ser impossível prosseguir.
Kai riu intimamente. A meia vampira ficou silenciosa por alguns instantes antes que ele identificasse aquele sentimento latente de sede novamente. Depois, os dedos dela tocaram o ferimento, fazendo seu corpo se mexer.
- Até que o gosto de acônito não é tão ruim. – ela murmurou com o dedo nos lábios. – Sem o veneno na sua corrente sanguínea, você fica bem em quanto tempo?
- Provavelmente em minutos ou segundos. – ele devolveu pelo laço.
- Ótimo, então ainda de noite estaremos na rebelião.
O calor e o cheiro da vampira ficaram mais perto, praticamente debaixo do seu nariz. Foi quando ela o mordeu. O corpo de Kai correspondeu, com uma onda de eletricidade perpassando entre eles junto com mais outra onda de flashes de memórias.
Dessa vez, alguns momentos específicos da promessa de sangue com Dacian Ivanov correram em direção à ele.
O vampiro puro sangue carregado no cinismo e na realeza vampírica, dizia a Rosie sobre a promessa de sangue em troca da liberdade.
A outra alternativa, não aceitar e ser entregue à Damien, o outro gêmeo, era tão repugnante para a meia vampira que o sentimento lhe deu ânsia de vômito.
Então, depois de aceitar e provar o sangue de Dacian para selar a promessa... Rosie se separou dele, cuspindo sangue com acônito:
- A coloração já está alterando.
Por dentro, Kai já podia sentir a cura das células trabalhando gradativamente.
- Será que preciso sugar mais? – ela perguntou, ainda analisando o ferimento.
Kai suspirou profundamente, trazendo oxigênio abundante para o sangue. E finalmente, abriu os olhos.
- Não.
Ajoelhada na terra, Rosie tinha o olhar compenetrado nele. E a cor esverdeada dos olhos estava ainda mais iluminada. A boca, tinha filetes de sangue e acônito descendo-lhe pelo queixo em direção à nuca. Os cabelos avermelhados e bagunçados, dançavam conforme a brisa suave da floresta.
O alfa desviou o olhar, perpassando-o rapidamente pelo cenário de árvores altas e caules robustos. Continuando:
– A quantidade de acônito que as flechas conseguem levar é pequena, ainda que o bastante para ser letal à maioria dos lobisomens.
- E você não morreu porque é invencível. – A meia vampira cantarolou num sorriso sangrento e irônico.
- Na verdade, não. Para matar a maioria dos alfas é preciso de mais acônito. Mas no meu caso... enfim. – ele se sentou com dificuldade, soltando um arquejo. – Você também já se sente melhor?
Rosie levantou num pulo, limpando o sangue do queixo e realinhando a roupa de couro.
- Sim! O gosto do seu sangue é muito bom, aliás.
Kai bufou, sendo ajudado à se levantar com uma das mãos da meia vampira.
– Para onde vamos?
- Tem uma entrada dentro do túnel na linha do trem. – ela murmurou, já caminhando a passos acelerados entre as árvores. O alfa tentou acompanhar, mesmo que seu corpo ainda estivesse lento.
Kai não sabia por quanto tempo vagaram na floresta da Serra do Mar. Mas, pelo últimos raios de sol à oeste, seriam horas.
E eles já tinham atravessado um túnel da ferrovia, que inclusive estava ativa, sendo até surpreendidos por um trem que carregava dúzias de passageiros e turistas de Curitiba à cidade de Morretes.
O ar ainda tinha vestígios contundentes de sangue da batalha confusa de mais cedo. E em alguns lugares, era possível sentir cheiro de lobisomens e vampiros.
Senão chegassem rápido ao destino, a noite com certeza seria longa. Com direito à encontros não desejáveis e mortais para Rosie.
- Estamos ficando sem tempo.
- Paciência! – Rosie murmurou. – Raviel uma vez deixou escapar sobre uma entrada no segundo túnel na linha do trem.
- Calma aí. - Kai se deteve, de repente. – é a primeira vez que você entrará na Rebelião?!
Rosie o olhou de esguelha e meneou a cabeça.
- Não. Já estivesse uma vez nela, mas usei a entrada situada na Argentina.
Kai continuou a caminhar, agora com o cenho franzido.
- Como sabe se existe mesmo uma entrada aqui?!
- Não sei. – ela admitiu. – Mas raramente é mentira algo que Ravi deixa escapar quando está bêbado. E além disso, foram os meios vampiros que construíram essa ferrovia.
Kai pendeu a cabeça, avaliando.
- Não é bem assim que ensinaram essa história.
A ferrovia havia sido construída no século dezenove para ligar Curitiba ao litoral de Paranaguá. A construção, uma cortesia da colonização dos Ivanov, tinha como objetivo fazer aliança com parte do sul brasileiro.
De certo, os Ivanov e muitas Cortes Vampíricas escravizaram meios vampiros, vez que o trabalho braçal deles são mais fortes e ligeiros que os de um ser humano.
Porém, seu pai havia dito que naquela mesma época uma guerra eclodiu numa colônia vampírica do Paraguai, onde o antigo governo da Corte Sul - que teve toda a história destruída - era situado, e tentava se reerguer contra os Ivanov, que já tinham dominado o Brasil, Argentina e Uruguai.
Usando o governo humano destes últimos, os Ivanov formaram uma tripla aliança para combater o Paraguai. Todos os meios vampiros escravizados foram realocados de trabalhos braçais para a batalha.
Foram mais de cento e cinquenta anos de conflitos que o antigo governo vampírico da Corte Sul tentara resistir e reanexar os territórios ao seu domínio. Na história dos humanos, o conflito ficara registrada como Guerra do Paraguai, uma batalha tão intensa e constante que até hoje existem controvérsias.
Rosie soltou um riso de escárnio, tirando-o de suas lembranças, para perguntar:
- O que você sabe sobre a história daqui, Malakai?! Você não é estrangeiro?
- Sim, mas parte da minha história nasceu no Brasil.
Dessa vez, foi Rosie que parou de repente. O alfa quase a atropelou.
- Como assim?!
Kai a contornou, continuando a andar.
- Meu pai esteve no Brasil com nosso clã para tentar conquistar territórios brasileiros. – disse por alto – Você não disse que pesquisou sobre mim?
- Sim, sobre você. - Rosie veio em seu encalço.
- Para conhecer os lobisomens, deve-se estudar o clã à que ele pertence. - Ele murmurou o ensinamento passado de lobisomem a lobisomem.
Porém, foi mais pra si mesmo.
Se Rosie tivesse certa sobre a ferrovia ter sido construída por meios vampiros, seu pai havia mentido ou não sabia daquela informação. A primeira hipótese caia como uma luva para Aleksey, sempre escondido atrás de seus segredos e mentiras.
Mas, se assim fosse, por que omitir uma informação que à princípio era tão irrelevante para os lobisomens?
Rosie ainda parecia contrariada:
- Tá, mas como... – a meia vampira parou ao seu lado quando ele se deteve, identificando um túnel através dos arbusto à alguns metros.
- É esse?
Rosie olhou em volta, desconfiada.
- Vamos entrar para ver.
Em instantes, os dois pisavam na linha do trem dentro do túnel escuro. E nem uma alma ou cheiro diferente do que estavam sentindo há horas, os recebeu.
As paredes, lisas e cimentadas não apresentavam porta alguma. E ele não encontrara nada oco ou diferente que pudesse indicar uma passagem falsa.
- Não há nada aqui.
Rosie, teimosa como sempre, ainda andava de um lado a outro, analisando cada pedra.
- Está aqui em algum lugar. Eu sei.
- Rosalie, não há passagem ou portão. Somente a linha ferroviária! - Kai suspirou – Talvez seu amigo tenha mentido.
Ela levantou os olhos ferozes na direção dele. E nem precisou falar uma palavra para ficar claro que descordava.
- Ok... - Kai tentou de outra forma. - Olha, se foram os meios vampiros que realmente construíram a ferrovia e a entrada para esse lugar que procuramos... Como você poderia identificar? Porque não há para onde ir. Para cima não há nada, e...
- É isso, Kai!
- O quê?!
- Os meios vampiros sempre foram renegados. E desde a guerra meio sangue no século dezessete, quando os vampiros puros ganharam, alguns de nós foram exilados no polo norte, outros se juntaram aos humanos para uma vida mundana...
- Não estou entendendo, Rosalie. – ele desconhecia a guerra da qual ela se referia. E realmente estava sem paciência. – É melhor encontramos um local seguro para passar a noite.
Rosie o ignorou, continuando:
- Raviel disse que a ferrovia foi construída por meios vampiros no mesmo século que os Ivanov colonizaram a corte Sul. Naquela época, os sobreviventes meio sangue foram obrigados à trabalhar para eles em troca de liberdade. - ela murmurou a parte da historia que também havia sido ensinada a ele. - Mas antes, a maioria da minha espécie foi designada para as minas ao longo da América do Sul em busca de riquezas.
Os olhos de Kai brilharam, entendendo:
- Pra baixo!
Os dois usaram da velocidade sobrenatural para percorrer o antigo túnel, inspecionando o chão terroso passo por passo. Foi quando, entre um trilho e outro, uma pegada de Rosie deu um estalo alto e agudo.
Kai logo se juntou a ela, tirando a terra que revestia a tampa da passagem situada no chão. Era redonda como que similar a abertura de esgoto e águas pluviais. Porém o auto relevo daquela dizia "instalações operárias".
Ele segurou a barra de ferro da abertura, e com um acenar de confirmação de Rosie, a abriu. Uma lufada de ar quente e úmido os abraçou. Rosie se agachou observando o escuro sem fim daquele buraco.
- É agora que invadimos? – perguntou, cauteloso. A meia vampira assentiu novamente, os olhos compenetrados no breu infinito.
Se fossem entrar, ele talvez precisasse se transformar para aguçar ainda mais a visão e a audição.
- Eu vou primeiro. – ela murmurou, se levantando para então pular lá dentro.
- Rosalie, espera! Não dá para ver nada, e não...
A meia vampira sumiu na escuridão.
Kai não queria ter sentido nada, ainda que a primeira coisa que fizesse fosse checar o laço para ver se ela não emanava nenhuma emoção que pedisse socorro, mas dizer que seu coração palpitou, foi pouco.
O alfa se debruçou sobre a escuridão do buraco, como se pudesse sentir com mais veemência as batidas do coração de Rosie, que soavam retumbante com uma dose de excitação.
Um segundo depois, uma risadinha ecoou de dentro.
- Vem logo, Kai!
O alfa bufou e começou a transformação, feliz de estar na pele de lobo, onde as emoções e sentimentos ainda que mais primitivos, lhe dariam um sossego para assimilar tudo.
Quando abriu os olhos e os direcionou ao buraco, o breu já não era infinito. Kai saltou para dentro, caindo nas patas da frente, ao lado de Rosie.
Ele fez o reconhecimento do lugar, mirando em volta qualquer ameaça. Mas ali, somente havia mais um túnel largo e úmido de terra, sustentando por toras de madeiras. Talvez desse para um carro viajar tranquilamente pelo subsolo.
- O que é isso? - perguntou mentalmente, Rosie respondeu em voz alta:
-Quilômetros e quilômetros de túneis. - ela encarou os arredores, e com um sorriso de satisfação, explicou - Raviel me disse que os meios vampiros que foram escravizados os criaram como um modo de conseguir a liberdade.
- Para onde levam?
- Muitos lugares. Até outros países.
Sem entender, o lobo grunhiu, perguntando mentalmente:
- Não íamos para a rebelião?
- É aqui. - Rosie sorriu - Mas eu prefiro chamar de Submundo.
Mais um capitulo, minha gente!! O que acharam das informações que temos aqui?
A rebelião, ou o submundo, guarda muitas surpresas! Esses dois aprenderão mais sobre as raças da qual pertencem, compartilharão ensinamentos, e farão muitas descobertas juntos.
Mas, enquanto isso os Ivanov ainda se esforçam para encontrar nossa dupla, e principalmente, Outroso, um não tão novo mundo que a maioria das Cortes e clãs lupinos acreditam ter se perdido para sempre.
aaa, vocês não estão preparados para essas novidades!! Fiquem com esses dois, e descubram muito mais sobre Coração de Sangue, e todas as surpresas e descobertas que essa história promete <3
Não está revisado
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