Capítulo 9 - A Sociedade da Ciência
Cornelius viu-se num lugar incógnito, em meio a uma imensidão nebulosa, sem cor, sem som, sem vida. Ele caminhava sobre uma plataforma de grandes ladrilhos transparentes, com um estranho mar invisível abaixo deles, ondulando suas águas sob os seus passos. Nem mesmo seu intelecto foi capaz de explicar racionalmente onde ele estava, ou o que deveria fazer ali, e suas tentativas de chamar por alguém eram respondidas por apenas um eco proveniente da acústica improvável daquela dimensão obscura.
E então, Cornelius andou sem direção, apenas pela necessidade de sair do lugar, mas sempre estranhando o fato de, apesar de tanto andar, nunca parecer conseguir isso. Ele sentia um frio melancólico que arrepiava cada vértebra de sua espinha, como se sua vida não tivesse valor ou razão alguma, e estivesse condenado a vagar eternamente naquele deserto intangível. Mas aos poucos, Cornelius foi capaz de distinguir formas translúcidas em meio a escuridão. Havia um casarão velho diante dele, com as paredes tão transparentes quanto os ladrilhos do piso.
Mesmo tendo parado de andar, o espaço continuava se deslocando em torno de Cornelius. O casarão translúcido parecia cada vez maior, prestes a engoli-lo como um buraco negro carregado com um vendaval que puxava tudo para dentro. Cornelius deu meia volta e tentou fugir, mas em instantes as paredes do casarão fantasma já haviam lhe cercado. Paredes estas carregadas com vozes familiares, que berravam frases do passado.
— Eu não quero saber dessas blasfêmias científicas na minha casa! — A voz opressora de um homem retorcido gritava.
— Desculpem meus filhos, mas vai ser melhor assim — Uma mulher disse em meio a um choro carregado de amargura.
— Quem iria gostar de um esquisitão como você? — Uma menina o ofendeu em tom jocoso, seguida pela risada maligna de várias crianças.
— Sua bolsa de estudos foi negada — Agora as vozes agêneras se confundiam entre si sem nenhum critério aparente — Eu preciso ir embora. Você não serve para nossa instituição. O fulano morreu. Seu viadinho! — Mas, entre todas elas, uma falava ainda mais alto, a voz de Johnny — Velhote!
Cornelius foi derrubado pelo impacto daqueles lamentos ecoando na sua mente. Ele fechou os olhos, agarrou seus cabelos e gritou o mais alto que podia, como se usasse sua própria voz para esconder os ruídos sombrios do universo, mas estes ficavam cada vez mais altos a cada segundo que passava. De repente, a voz de Roza surgiu chamando o seu nome brevemente, como um cântico angelical, e tudo retornou a seu estado silencioso inicial.
Cornelius pôde abrir seus olhos, se levantar com cuidado e olhar em volta. O casarão havia sumido, e a única movimentação perceptível vinha da ondulação do mar num certo ponto. Aquelas vibrações inesperadas aumentaram e se tornaram cada vez mais violentas, até que o vidro dos ladrilhos se rompeu num buraco redondo, de onde um gigantesco tentáculo alienígena emergiu bem diante de seus olhos.
Então, Cornelius acordou. Ele estava são e salvo a bordo de um aeróbus da Sociedade da Ciência, rumo a Tesla.
***
Mal houve tempo de se despedir de seus amigos, Cornelius teve que correr para casa junto com Cérebro. Aquela estranha residência continuava bagunçada como sempre esteve, mas agora sem a presença de Roza, o que anteriormente fazia aquele lugar ser acolhedor.
Por sorte, Cornelius já havia deixado tudo pronto, e os poucos ajustes finais que faltavam em seu projeto poderiam ser feitos no caminho, ou mesmo assim que chegasse à Tesla. Ajudado por seu irmão, Cornelius arrumou algumas roupas numa mala junto de uma pasta com documentos importantes e colocou diversas peças de maquinário e ferramentas numa caixa. Antes de saírem, Cornelius percebeu o corpo robótico de Roza ainda estendido sobre a mesa e o cobriu com uma manta velha. Cérebro lhe encarou com uma expressão que misturava sermão com curiosidade, mas Cornelius apenas balançou a cabeça em negativa.
De volta ao porto, os irmãos Dumont percorreram o quadrante rumo a uma plataforma exclusiva, onde estava o aeróbus da Sociedade da Ciência. As naves teslianos se destacavam dos demais modelos de veículos comerciais em vários aspectos, um deles era o fato de funcionarem a base de eletricidade, e poderem armazenar energia suficiente para sustentar uma cidade do tamanho de Newdawn. Além disso, possuíam um design exclusivo, tendo metade do tamanho de um aeróbus tradicional e sendo mais estreitos, semelhantes a um lápis futurista com asas e motores. Por dentro, os aeróbus teslianos se assemelhavam aos antigos jatinhos particulares, com bebidas, jogos e outros utensílios idealizados para o máximo conforto dos viajantes.
Durante a viagem, Cornelius tentava relaxar enquanto ensaiava mentalmente o que deveria dizer durante sua apresentação, mas ele acabou cochilando debruçado sobre uma mesa, e acordou sobressaltado após um estranho pesadelo. Diante dele, Cérebro interrompeu a leitura que fazia de um periódico científico para encará-lo, mesmo que parecesse igualmente ansioso. Havia algo errado em Cérebro, e Cornelius ainda não sabia explicar, mas preferiu acreditar que ele só estava nervoso diante da oportunidade que seu irmão tanto almejou. Eles não podiam perder tempo com suposições agora.
Cornelius levantou-se de seu assento e caminhou até o toalete privativo nos fundos da aeronave. Banheiros de aeróbus sempre foram apertados, independente do modelo, mas pelo menos havia espaço suficiente para ponderar por alguns momentos. Cornelius avaliou sua imagem refletida num espelho, sua aparência não era das melhores, ele tinha olheiras marcadas abaixo de seus olhos e também precisava se barbear, ele até tentou arrumar seus cabelos rebeldes que insistiam em ficar espetados como a pelagem de um porco espinho. Por fim, fixou sua atenção num cordão improvisado pendurado em seu pescoço, onde pendia o dente dourado que outrora pertencia ao finado Johnny.
O que estava feito não poderia mais ser desfeito, era algo que Cornelius nunca conseguiria evitar. Mas não era hora de remoer o passado, e sim de encarar o futuro.
No instante em que o último raio de sol brilhou no horizonte, o aeróbus já sobrevoava a pequena cidade de Tesla, e suas edificações majoritariamente brancas e azuladas conectadas entre si e aos postes por emaranhados de cabos de energia, além de suas grandes torres metálicas com anéis em volta. Tesla se estendia de maneira circular em torno de uma plataforma elevada cercada por grandes escadas, como uma acrópole. No alto do monte, o pináculo da cidade, estava a Casa das Ideias, a sede da Sociedade da Ciência, um conjunto de prédios cilíndricos azulados com domos em seus topos. Cada aspecto arquitetônico daquela cidade refletia a modernidade, o progresso, e principalmente a inteligência, e tudo isso era reforçado pelas luzes fluorescentes que iluminavam a cidade naquele crepúsculo. Além disso, Tesla podia se definir como uma cidade econômica, nada ali era desperdiçado, tudo se aproveitava no sustento local movido a eletricidade.
O aeróbus aterrissou num porto privativo na base do monte, e os irmãos inventores se preparam para descer, recolhendo documentos e materiais espalhados sobre a mesa. Cérebro vestiu um jaleco cinza claro adornado com penas metálicas nos ombros e com o emblema lovecraftiano bordado nas costas, aquele era o uniforme padrão da Sociedade da Ciência, e todos os membros usavam quando presentes nas dependências da instituição, e, se tudo der certo, Cornelius logo teria um desses para chamar de seu. Eles desceram da aeronave e foram recebidos por um grupo de membros da Sociedade da Ciência, todos usando o mesmo uniforme cinzento, e traziam consigo medalhões dourados com seus nomes cravados. Ao reparar nesse detalhe, Cérebro enfiou a mão num bolso do jaleco e tirou seu medalhão, que em seguida colocou em torno de seu pescoço.
Os membros da Sociedade da Ciência se cumprimentaram entre si com um cumprimento característico, batendo com o pulso direito fechado no lado esquerdo do peito e inclinando seus corpos para frente. Cornelius, um pouco desastrado, fez o mesmo na tentativa de se enturmar e arrancou risos dos demais, inclusive de Cérebro.
— Ei cara, esse é só para membros oficiais — Um rapaz de pele parda e jovial, de cabelo bagunçado, disse, deixando Cornelius envergonhado. Ele possuía um corpo levemente musculoso, mas ainda magro e com uma barriga discretamente proeminente. Seus olhos eram esverdeados e estampavam em seu rosto um certo ar de atrevimento junto das sobrancelhas arqueadas, era simpático, mas ainda um pouco irritante — Esse é o seu irmão? — O mesmo rapaz perguntou enquanto encarava Cérebro.
— Sim, esse é o irmão Cornelius — Cérebro respondeu quando o rapaz estendeu a mão para Cornelius — Ele vai fazer o teste amanhã.
— Prazer em conhecê-lo, eu me chamo Afrânio Whateley — Eles apertaram as mãos e Cornelius reagiu ao cumprimento com um sorriso — Mas todo mundo me chama de Frankie. E eu espero que você consiga mesmo ingressar em nossa sociedade. Já sabe o que vai apresentar?
— Eu tenho um projeto de... — Cornelius começou a narrar, empolgado com suas criações.
— Acho melhor guardar essa informação para depois — Cérebro o interrompeu — O Frankie é do comitê avaliativo. E ele tem essa mania de querer se adiantar com as coisas.
— Eu gosto de me preparar, mas entendo que os possíveis membros gostam de manter a surpresa — Afrânio pousou sua mão no ombro de Cornelius — De qualquer forma, boa sorte amanhã.
— Obrigado — Cornelius respondeu, ainda sem jeito, desconectado do novo cenário.
Cérebro chamou Cornelius e juntos caminharam pela pista até o porto, enquanto Frankie e os demais membros caminhavam em direção ao avião. Agora o céu era uma imensidão escura sem nuvens ou estrelas, só com uma aurora translúcida provocada pelas luzes da cidade.
— Você já deve saber como funciona — Cérebro disse enquanto uma brisa balançava o seu jaleco — Na Sociedade da Ciência os próprios membros se responsabilizam...
— Pela limpeza e manutenção das dependências da Casa das Ideias — Cornelius lhe interrompeu — É o meu sonho desde que a gente tinha nove anos, claro que eu sei como funciona — Eles entram no porto, cheio de luzes e cartazes, mas Cornelius só conseguia olhar para o piso cinzento.
— O que foi? — Cérebro perguntou.
— Eu ainda não consigo acreditar... — Cornelius o encara com seus olhos marejados — Eu sempre quis está aqui.
— Você ainda não viu nada — Cérebro, finalmente, sorrir — Vamos andando.
Saindo do porto, eles caminham por uma rua pavimentada com pedregulhos cinzentos e começam a subir as escadas de mármore em direção à acrópole. À medida que subiam, a silhueta dos prédios cilíndricos começavam a surgir. Havia uma edificação maior no centro de um conjunto de outras menores formando um conjunto hexagonal, e Cornelius percebeu que elas eram bem mais robustas e mais bonitas do que pareciam ser nas fotografias e propagandas de televisão. Em volta, a cidade se mostrava como um aglomerado de luzes cintilantes.
Diante da entrada do prédio central, Cérebro guiou Cornelius por uma passagem na lateral esquerda e eles caminharam por um corredor azulado adornado com uma cobertura elétrica brilhante. Em cada lado do corredor havia entradas para dormitórios com portas de vidro separados por um muro baixo. Acompanhado por Cornelius, Cérebro caminhou até o seu dormitório, o terceiro do lado esquerdo, e no caminho foi cumprimentado pelos membros que saíam dos aposentos rumo a suas atividades noturnas.
Ao entrarem no dormitório, Cornelius percebeu que eles eram como pequenas casas de paredes azuis escuras, onde quarto, cozinha e escritório se misturavam no mesmo cômodo. Havia uma grande cama king-size no centro do cubículo, com um armário ao lado direito e uma mesa larga no lado oposto sob uma janela com persianas, à frente havia uma grande televisão de tela plana, o que chamou a atenção de Cornelius já que todas as telas em Newdawn eram pequenas e curvadas. Sobre a mesa havia uma luminária, um estojo com alguns lápis e uma pasta com folhas de ofício, além de diversos cadernos, agendas e utensílios de papelaria. Ao lado havia uma estante suspensa com livros, uma bancada abaixo com utensílios de cozinha e um frigobar. Por fim, ao lado da cama, havia uma passagem para um banheiro particular.
— Eu tenho um saco de dormir guardado — Cérebro disse enquanto arrumava a bagagem de Cornelius num canto do dormitório — Desculpa não ter preparado nada, me avisaram para ir te buscar de última hora.
— Sem problemas — Cornelius respondeu, colocando a caixa de maquinários sobre a mesa — Posso usar sua mesa de trabalho para revisar o meu projeto?
— Claro que pode, e quem sabe amanhã uma hora dessas você já tenha um desses — Cérebro olhou em volta.
— Bem aconchegante mesmo — Cornelius apoiou-se na mesa e olhou para o irmão — Acha que eu consigo?
— É claro, seus projetos são ótimos. Aquele da namorada robô era melhor mas... — Cornelius lhe repreendeu com um olhar sério — Olha só — Cérebro pegou uma folha e um lápis e fez um desenho de sete círculos organizados um ao lado do outro em um semicírculo — O comitê avaliativo é formado por sete membros, se você conseguir a aprovação de pelo menos quatro você já passa. Mas é esse que importa — Cérebro apontou o lápis para o círculo central — Éon Epistími, o Supremo, o mais alto patamar da Sociedade da Ciência. Ninguém discorda do Supremo. Se conquistar ele sua vaga já estará garantida.
— Obrigado por me deixar mais nervoso — Cornelius comentou, arrancando mais um sorriso de Cérebro, que pôs a mão em seu ombro.
— Não se preocupe, sei que vai conseguir — Cérebro se virou e caminhou em direção a cama, quando Cornelius lhe chamou.
— Aquele cara, o Frankie, o que ele trouxe na apresentação? — Havia uma sutil curiosidade nas palavras de Cornelius, um repentino interesse estava surgindo.
— Não sei ao certo, ele já tava aqui quando eu entrei — Cérebro pensou um pouco por um momento — Às vezes ele cita um tipo de radar antiaéreo, mas nunca entendi o que ele quis dizer com isso, e ninguém nunca viu algo parecido.
— Entendi...
Cérebro retirou o jaleco e o medalhão e se acomodou na cama, disposto a continuar sua leitura do periódico e tentar relaxar um pouco, já que ele ainda parecia tenso. Enquanto isso, Cornelius sentou-se à mesa de trabalho, pôs seus goggles e começou a desempacotar os instrumentos mecânicos, analisando cada um deles e fazendo anotações. Se não estivesse tão distraído com o trabalho, Cornelius teria percebido que seu irmão lhe encarava com um pesar inexplicável.
***
Ao abrir as persianas e permitir a entrada da luz natural no dormitório, Cérebro encontrou Cornelius dormindo com a cabeça caída na mesa. Ele havia trabalhado a noite toda e agora roncava de maneira rítmica.
— Cornelius — Cérebro o chamou enquanto balançava seus ombros — Acorda cara, assim você vai se atrasar.
— Só mais cinco minutos — Cornelius respondeu sonolento, sem abrir os olhos, e acomodou a cabeça sobre a poça de saliva que se formara em meio ao seu sono — A apresentação é só às nove.
— Tudo bem então — Cérebro se afastou, recolhendo seu jaleco disposto num cabideiro — Mas já são dez e meia.
— O que!?!? — Cornelius despertou com o seu próprio grito, assustado por ter se planejado tanto e mesmo assim tendo se atrasado.
***
Após um banho e um café da manhã tomados às pressas, Cornelius caminhou tão rápido em direção ao salão do comitê avaliativo que nem percebeu a grande estátua representando Nikola Tesla que havia no saguão principal da Casa das Ideias. Seus cabelos despenteados estavam tão espetados quanto o normal, seus óculos estavam embaçando pela transpiração e a tentativa de se arrumar acabou gerando uma blusa mal abotoada e sapatos desamarrados. A única coisa em ordem era a grande maleta cor de vinho que ele carregava, apesar de parecer pesada, com uma certa facilidade.
Meio que de instinto, Cornelius chegou no corredor que funcionava como antecâmara do salão do comitê avaliativo, e espantou-se com a boa quantidade de outros jovens inventores, com aparências igualmente excêntricas, que também buscavam a aprovação da Sociedade da Ciência, organizados em fila, na qual Cornelius era o último, e carregando todo tipo de caixas, máquinas e folhas de projetos. Cérebro chegou logo depois, trazendo consigo um copo de plástico com café e um carrinho de bagagem com duas grandes caixas de papelão.
— Será que vai dar tempo? — Cornelius comentou enquanto coçava seu couro cabeludo, tomado pela ansiedade.
— Vai sim, metade desses caras não vai ficar nem dez minutos lá dentro — Cérebro comentou, e em seguida entregou o copo para Cornelius — Tome mais um pouco de café, e tente se acalmar — Cornelius engoliu o líquido efervescente num fôlego só, sentindo o gosto amargo tomar conta de sua boca. Aparentemente os teslianos tem alguma coisa contra açúcar — Eu preciso ir agora.
— Não vai assistir minha apresentação? — Cornelius encarou o irmão, amassando o copo de plástico — E se eu não conseguir passar?
— Eu tenho muito trabalho a fazer hoje — Cérebro afundou as mãos nos bolsos do jaleco — Você vai conseguir, e mesmo se não conseguir a gente se encontra no saguão após o almoço.
— Tudo bem.
— Boa sorte.
Os irmãos Dummont se abraçaram e Cérebro foi embora, deixando Cornelius sozinho com uma pilha de material e uma fila de concorrentes. Respirando profundamente na tentativa de se acalmar, Cornelius se permite perceber os detalhes à sua volta. O piso era uma simulação de rocha polida e brilhante, todas as paredes tinham a cor de azul marinho padrão, não muito diferente do corredor dos dormitórios. Haviam diversas lâmpadas elétricas dispostas de maneira organizada e alinhada ao longo das paredes do corredor, e todas adornadas com revestimentos transparentes de acrílico como pequenos abajures. Apesar do formato arredondado presente no lado externo do prédio, o teto daquele corredor e das demais salas que ele dava acesso era geometricamente quadriculado, sem abóbada, o que denunciava a presença de algum compartimento sob o domo no topo da construção.
Em seguida, Cornelius observou os demais inventores presentes na fila. Eles tinham as mais variadas características, Cornelius logo reconheceu as tatuagens mythidianas nas mãos de um, o penteado classudo de um sennita, e até mesmo chapéus e relógios steampunks de outros newdianos. Eles vinham de todo lugar do mundo, trazendo consigo vários tipos de ideias diferentes, o clima de competição era nítido, mas alguns ainda mantinham a camaradagem puxando conversa uns com os outros.
Cérebro tinha razão, Cornelius só teve tempo de amarrar os sapatos e tentar arrumar a blusa antes da fila começar a andar. Dava para perceber quando alguém era aprovado ou rejeitado pelo comitê avaliativo, não só pela expressão de satisfação, vergonha, alívio, tristeza ou de raiva estampada nos rostos, mas também pelo fato dos aprovados saírem acompanhados por um membro veterano da Sociedade da Ciência. E quando um manifestino de cabelo rastafari saiu apressado carregando um vaso com uma estranha fusão de girassol com planta carnívora, chegou a vez de Cornelius se apresentar.
Ele respirou fundo e adentrou no salão do comitê avaliativo. O local possuía formato circular, com um amplo espaço aberto no centro e uma arquibancada elevada ao redor. No topo esbranquiçado, o teto abobadado dava a impressão de semiesfera no cômodo, e em seu centro havia um lustre dourado com diversos padrões geométricos azulados em volta, enquanto no lado oposto o padrão uniforme do piso externo era substituído por um conjunto quadriculado de cerâmicas brancas e pretas que se alternavam entre si como um grande tabuleiro de xadrez.
Cornelius caminhou até as mesas de vidro dispostas no espaço central, empurrando o carrinho de bagagem e mantendo o olhar fixo no que estava bem à sua frente, o comitê avaliativo. Os sete homens estavam dispostos numa bancada elevada nos fundos do salão, todos usando seus jalecos padronizados e com seus medalhões pendendo de seus pescoços. O comitê ainda se organizava na bancada por um tipo de hierarquia, com três de cada lado, sendo Frankie quem ocupava a ponta do lado direito, e com Éon Epistími ao centro. Por ter seu assento mais elevado que os demais, Éon ficava assustadoramente alto, podendo observar tudo de cima em qualquer lugar daquele recinto, e em vez de jaleco usava uma longa túnica da cor azul turquesa, ressaltando sua posição de liderança na Sociedade da Ciência. Seus olhos verdes e penetrantes estavam ocultos pelas lentes redondas de seus óculos, e todo contorno de seu rosto era preenchido por uma barba prateada e brilhante, em contraste com os cabelos brancos e alinhados com precisão. Até o seu medalhão era diferente dos demais, com uma reprodução dourada do brasão lovecraftiano cravejado com pedras vermelhas brilhantes, e com quatro padrões menores em volta, representando os quatro elementos naturais. Um verdadeiro mago Merlim pós-moderno.
Cornelius engoliu em seco, sentindo-se intimidado por aquela figura imponente. A expressão de Éon Epistími era tão séria e robusta que transparecia ser tão convencível quanto uma estátua de mármore, mas Cornelius ainda se lembrava do que Cérebro disse. Ele precisava conquistar Éon de qualquer forma, nada mais. Assim, sem pressa, Cornelius começou a arrumar suas coisas sobre as mesas de vidro. Os membros do comitê avaliativo continuavam suas atividades rotineiras enquanto o participante se preparava para começar sua apresentação, alguns conversavam entre si sobre assuntos banais com um vocabulário técnico que ultrapassava qualquer limite da formalidade, quem ouvisse pensaria tudo mas não imaginaria que o assunto era futebol. Já Frankie, em especial, observava Cornelius com uma certa animação e um sorriso caricato na face. Porém, por sua vez, Éon não demonstrou a menor alteração em seu semblante, mantendo-se na mesma posição, com os braços apoiando na bancada e seus dedos cruzados. De fato, uma estátua conseguiria ser bem mais expressiva.
Após colocar sua maleta numa mesa, um laptop quebrado e dois sacos de compras cheios de frutas na outra, uma caixa de ferramentas e diversas peças mecânicas em outra e dois aparadores acolchoados no chão, Cornelius começou sua apresentação dirigindo-se ao centro do salão e fazendo novamente o cumprimento dos membros, o que arrancou risos do comitê avaliativo. A risada parou quando Éon os repreendeu com um único olhar penetrante, e após Frankie cochichar algo para seus companheiros.
— Pode começar quando quiser — Frankie disse em meio a um sorriso bobo após alguns minutos de silêncio.
— Eu me chamo Cornelius Albert Dumont, de Newdawn, e vim apresentar o meu projeto — Cornelius disse, e logo em seguida percebeu o quanto essa fala foi redundante — Eu me baseei na forma como as pessoas do antigo mundo se relacionavam com as possibilidades da computação, algo que hoje em dia só vemos na complexa engenharia de programação de Cypher — Cornelius continuou sua narrativa enquanto aproximava-se da mesa com a maleta, parando diante dela, e sempre balançando o indicador da mão direita enquanto falava — Então, eu planejei uma alternativa para essa programação complexa, não só com o intuito de deixá-la mais simples e acessível como também de integrá-la novamente em nossa sociedade em todas as suas diversas vertentes — Cornelius abriu a maleta, revelando um drone arredondado com hélices laterais e o que pareciam ser ganchos retráteis embaixo. Cornelius ligou o aparelho e o drone começou a planar ao seu lado — Por isso eu criei um novo modelo de drone computadorizado. Ele ainda utiliza a tecnologia de engrenagens padrão de Newdawn, mas todo o resto é automatizado a partir da programação contida em disquetes — Cornelius abre a parte de cima do drone, revelando o aparato inserido num encaixe. Em seguida, Cornelius aproxima-se do espaço entre as mesas com as compras e a caixa de ferramentas — No caso, eu programei esse disquete de forma a me auxiliar nessa apresentação e mostrar todas as suas funcionalidades. Por exemplo, o drone pode me auxiliar na montagem de qualquer tipo de mecanismo — Com um comando, o drone voa em direção a caixa de ferramentas, abre e pega os itens necessários para montar as peças mecânicas. Em instantes e com exímia rapidez e precisão, as peças são convertidas num carrinho de brinquedo — Além de evitar acidentes e me ajudar com serviços domésticos — Cornelius caminha até a outra mesa, pega o laptop e lhe solta. O drone dispara, conseguindo aparar o laptop com seus ganchos antes que ele alcance o chão. Em seguida, Cornelius pega os sacos de compras, um com cada braço, mostrando o quanto eles estão pesados, e o drone usa seus ganchos para pegá-los pelas alças e levá-los até a mesa com a maleta. Cornelius estava com um sorriso de satisfação estampado no rosto, tudo estava saindo como o planejado. O comitê avaliativo, em especial Éon e Frankie, lhe ouvia atentamente, por vezes fazendo breves anotações e comentários entre si — Ele pode até mesmo me acompanhar em atividades físicas — Cornelius se posicionou à frente das mesas e se pôs em base de muay thai. O drone soltou seus ganchos, revelando braços mecânicos articulados, e pegou os aparadores acolchoados, ficando diante de Cornelius. Em seguida, provando que Ed havia ensinado as noções básicas de muay thai para todos os seus amigos, Cornelius disparou um jab, um direto, um cruzado de esquerda e um chute circular de direita, com todos os movimentos sendo acompanhados e defendidos corretamente pelo drone — Como podem ver, meus drones automatizados podem fazer qualquer coisa, só precisa ter o disquete com a programação necessária, e você ainda pode deixar programações pré-instaladas em drive para as funções de uso frequente. A minha ideia é popularizar o ensino de programação nas escolas, principalmente para crianças e jovens mais pobres, isso facilitaria a fabricação dos drones e de todo tipo de disquete pré-programado, e poderia gerar uma nova perspectiva de vida para a população menos favorecida, talvez até criar novas oportunidades de emprego ou coisa parecida. Tudo isso em alguns megabytes — Cornelius terminou sua apresentação com um sorriso na tentativa de esconder o nervosismo, mas por pouco tempo.
O silêncio voltou a tomar conta do ambiente. Cornelius parecia ter relaxado mais ao longo da sua apresentação, mas agora voltou a se sentir nervoso. O único som que ele conseguia ouvir era o leve ruído das hélices do drone girando e mantendo ele no ar, e isso o fez se sentir ainda mais ansioso, buscando alguma palavra de aprovação, algum aplauso clichê ou qualquer demonstração facial possível que indicasse o seu êxito. Mas as feições do comitê avaliativo continuavam tomadas pela perturbadora placidez, menos a de Frankie, que não parava de rir discretamente como se tivesse possuído pelo impulso interno do consumo da carne de um arlequim.
— Os senhores têm alguma consideração sobre a apresentação de Cornelius Albert Dumont? — A voz grave de Éon Epistími se fez ouvir. Agora ele se permitia movimentar-se, observando Cornelius e seus companheiros de banca.
— Acredito que nossas considerações possam ser esclarecidas ao longo da votação — Frankie sugeriu de modo intuitivo, e os demais membros do comitê avaliativo concordaram, alguns verbalmente e outros com movimentos de cabeça.
— Não perderemos tempo então — Éon pontuou, escondendo suas mãos — Os senhores podem votar.
Assim Cornelius viu-se encarando o momento mais tenso de sua vida, até agora. Diante dele, fez-se um silêncio arrebatador em meio àqueles titãs do conhecimento. Eles coçavam seus queixos enquanto se entreolharam, esperando que alguém tomasse a iniciativa de demonstrar sua função avaliativa. A cada instante que passava, Cornelius ficava ainda mais ansioso, sentindo seu coração palpitar como uma bomba prestes a explodir e destruir tudo, enquanto sua testa era tomada por uma tsunami de suor. Suas pernas lutavam para sustentar seu corpo em meio aos tremeliques agitados. A única certeza era sair daquela sala, seja como aprovado, seja como rejeitado, ou como um corpo desfalecido que não suportou tamanha angústia promovida pela situação atual.
— Meu voto é não — Disse o avaliador à esquerda de Éon, sem tirar os olhos de suas anotações e fazendo um sinal de desacordo com o polegar da mão direita virado para baixo — Os drones de fato podem fazer de tudo, não há dúvidas sobre isso, mas algumas atividades podem necessitar de um material mais robusto e isso pode elevar os custos da fabricação caso todos os drones forem fabricados com o mesmo modelo. Por enquanto, não vejo outra saída.
— Pois meu voto é sim — O avaliador no lado oposto, no centro de seu trio, rebateu, fazendo um gesto de aprovação com o polegar — Você mesmo disse, "por enquanto" — Ele ressaltou — Não dar para esperar noções de material de um protótipo.
O primeiro voto fez o coração de Cornelius disparar, e se acalmar em seguida ao ver o voto de aprovação. Outros dois avaliadores responderam aos seus votos em silêncio, com o gesto de desaprovação. Mesmo com três votos contra, aquele já era um ótimo começo e concentrou sua visão no polegar levantado, arrebatado naquele pequeno alívio. A expressão de Éon continuava a mais neutra possível. E só depois de um bom tempo Cornelius percebeu que os avaliadores pareciam dirigir seus votos e considerações mais entre si do que para com ele, talvez fosse um procedimento padrão do protocolo avaliativo, mas pouco importava naquele momento. O próximo a votar foi Afrânio Whateley.
— Meu voto é sim — Frankie levantou o polegar — O projeto de Cornelius tem muito potencial, mesmo que os custos de fabricação dos drones sejam caros, imagina o quanto eles poderiam baratear e facilitar outros serviços, como a construção civil. Seria burrice desperdiçar uma ideia tão promissora. E sua causa social também é deveras admirável — Frankie sorriu discretamente, encarando Cornelius, que retribuiu da mesma forma.
Mais um avaliador fez seu voto positivo, contagiado pelas palavras de Frankie. Os votos estavam empatados, três a favor e três contra. Cornelius tentava manter o controle de suas ansiedades, mas elas estavam mais atiçadas do que nunca. Seus cabelos estavam ouriçados e suas mãos tremiam. Saber que agora tudo que ele planejou, tudo que ele sempre sonhou, dependia da aprovação de alguém tão inalcançável como Éon Epistími não era nem um pouco tranquilizador. Até o drone, que ainda planava ao seu lado, pareceu se afetar pela intensidade do momento, fraquejando por um instante e perdendo altitude. Por fim, quando Cornelius parecia não suportar mais o peso da dúvida, Éon, a autoridade suprema da Sociedade da Ciência, fez o seu voto.
Cornelius abafou um grito com as mãos enquanto seus olhos enchiam-se de lágrimas. Ele mal conseguia respirar agora, queria gritar, queria chorar como nunca se permitiu chorar antes. Era como se todo o peso de uma vida de pobreza e desastres tivesse caído de uma vez sobre os seus ombros enfraquecidos pela fadiga emocional e lhe esmagado como um inseto frágil e incapacitado na derrota, mas Cornelius sabia que era mais do que isso, ele era, sobretudo, um sobrevivente. Diante dele, o polegar de Éon Epistími estava virado para cima! Seus joelhos fraquejaram e seu corpo caiu curvado sobre eles ao ser embalado pelo som dos aplausos do comitê avaliativo.
— Obrigado! Muito obrigado! — Cornelius tentava dizer em meio ao seu choro. Seu corpo levantou-se, fazendo o cumprimento repetidas vezes enquanto continuava seus agradecimentos emocionados — Obrigado! Muito obrigado!
— Meus parabéns — Frankie se aproximou de Cornelius, trazendo consigo um medalhão e um jaleco estilizado que serviu perfeitamente no corpo magro de Cornelius. Ele mal podia acreditar, finalmente, depois de tanto esforço, de tanto azar e tantos desastres pessoais, ele tinha um jaleco da Sociedade da Ciência para chamar de seu. Os demais membros desceram da bancada e ficaram ao seu redor. Após lhe ajudar a vestir o jaleco, Frankie segurou o rosto de Cornelius e enxugou suas lágrimas com os polegares enquanto lhe encarava profundamente com um sorriso animado — Agora põe um sorriso no rosto e ajeita essa postura, tá na hora do seu batismo.
Cornelius foi tomado pela curiosidade ao se deparar com Éon vindo em sua direção, trazendo consigo um prato fundo onde havia um líquido esverdeado e borbulhante. Ele nunca tinha ouvido falar sobre uma cerimônia de batismo na Sociedade da Ciência, mas não chegou a se preocupar com isso, estava feliz demais para se importar com qualquer outra coisa.
— O que é isso? — Cornelius perguntou ao receber o prato das mãos de Éon.
— Beba, e será um de nós — As palavras de Éon saíram de forma acolhedora. Agora ele trazia um sorriso amigável no rosto, muito diferente do semblante inexpressivo de antes.
Assim, Cornelius bebeu o líquido direto do prato, virando-o num gole apressado. O gosto é indescritível de tão estranho, como uma mistura proibida do azedo com o amargo, mas ainda com sutis traços adocicados. O líquido, que além de tudo era gelado, fluiu facilmente pela garganta de Cornelius, como uma vitamina fina e mal batida. Ao terminar, Cornelius sente-se tonto e cambaleia para trás, sendo segurado por Frankie.
— Vai com calma, isso é pesado — Frankie disse, ajudando Cornelius a se equilibrar.
Cornelius sentia a bebida fluir através de seu corpo e embaralhar seus sentidos, fazendo-o perder a noção de tempo e espaço, e de qualquer outra força dimensional aplicada sobre sua existência. Onde ele estava, e quem estava com ele, não sabia explicar. Além das pessoas ao seu redor, que agora se ajoelharam, o pavimento quadriculado era a única forma perceptível. A arquibancada desapareceu em meio a uma ilusória nuvem de fumaça lilás, e as paredes do salão se expandiram, alcançando o tamanho dantesco adequado para comportar todo alcance da psique humana. O teto agora era uma imensidão celeste e nebulosa, composta por estrelas reluzentes que voavam diante dos seus olhos, brilhando em todos os tons do espectro cromático. O universo agora estava ao alcance de suas mãos, e a gravidade torna-se mais pesada, impedindo Cornelius de viajar sem rumo naqueles mundos além de sua imaginação.
— Esse é o segredo da criação, Cornelius — Éon relatou, observando o céu estrelado em torno deles. Até mesmo sua voz parecia distorcida agora, provocando um arrepiante efeito de acústica — Aquele que nos iluminou já foi chamado de vários nomes. Jeová, Deus, Rá, Odin, Tupã, Olorum...
— Jah... — Cornelius complementou, repleto de fascinação.
— Mas seu verdadeiro nome... — Éon continuou seu relato de palavras fantasmagóricas que ecoavam no profundo subconsciente de Cornelius — É Belliscientia.
As palavras escaparam do raciocínio de Cornelius, toda a sua atenção fora roubada pelas maravilhas cósmicas que dançavam em torno do seu corpo. Como reagir àquele espetáculo cósmico que revelava sua mera insignificância diante das coisas de fora do plano físico? Cornelius não sabia a resposta, e limitou-se a estampar um resplandecente sorriso em seu rosto, apenas mais um ponto brilhante naquela infinita constelação de orbes luminosas. Não existem palavras capazes de definir a sensação de contemplar o universo de forma tão íntima, tudo se resumia a pura poesia. Será que foi assim que Manuel Bandeira se sentiu quando chegou a Pasárgada? Será que essa era a lenda de uma paixão que faz sorrir ou faz chorar? Será que assim todas as crianças com sapatos caros correriam mais rápido que suas balas? Será que foi assim que Shinji Ikari sentiu-se ao sair do mar de LCL e reconquistar sua humanidade diante do evangelho de uma nova gênesis? Ou foi assim quando Abdul Alhazred assinou a última linha de seus escritos demoníacos no lendário Necronomicon? Ninguém sabia, e ninguém nunca saberia.
Seu próprio corpo parecia se distorcer como uma regravação aesthetic retrofuturista de uma melodia clássica tocando ao fundo de uma batalha épica num desenho animado japonês antigo, e seus olhos encontraram uma estrela cadente que cruzou aquele firmamento como um foguete supersônico. Mesmo com sua constituição física confinada naquele tabuleiro de xadrez feito de mármore, Cornelius sentia como se seu espírito se libertasse e acompanhasse a estrela em outros ângulos impossíveis para o olho humano. Tendo sua perspectiva aproximada do aerólito, as luzes ofuscantes que permeiam aquele astro param de incomodar e Cornelius consegue distinguir a silhueta de um homem alado cruzando o céu como um raio, como se tivesse sido empurrado ao invés de ter o total controle de seu voo, e junto com ele, no infinito espaço de um minuto, Cornelius assiste à toda a história do mundo.
A velocidade do projétil incandescente aumenta cada vez mais, incendiando aquele corpo humanoide e incinerando suas asas. Mesmo encarnado numa bola de fogo disforme, nada é capaz de lhe desacelerar, e a aceleração ininterrupta do astro chega ao ponto de dobrar a realidade em seu entorno. Em instantes, o cosmo policromático é substituído por um túnel ondulado formado por pura energia, com uma esfera escura no seu extremo mais distante.
A figura flamejante dispara contra a esfera como um espermatozoide atraído por um óvulo sedento pela germinação. Quando a semente é plantada, a mais milagrosa das transformações ocorre, eis então que surge a vida. O sólido redondo obscurecido tem seu tamanho multiplicado por milhares de vezes, se tornando um planeta de tamanho considerável que se aproxima cada vez mais, engolindo o observador em sua atmosfera venenosa ainda em formação. Voando pelos céus, foi possível ver a superfície rochosa ser infestada por um manto florestal composto por todos os tipos existentes de plantas e flores, e essa vegetação foi, aos poucos, tomada pela presença dos primeiros animais e de suas futuras evoluções, desde os répteis assassinos que rastejam pela terra até às inofensivas células marítimas. As águas também brotaram dos confins do planeta, inundando territórios hostis com seus vastos e profundos oceanos. A Terra era um verdadeiro paraíso imaculado, e tudo mudou com o advento do ser humano.
Aprisionado na sua posição de telespectador, Cornelius assistiu o florescer de uma árvore monumental, e no auge de sua magnificência o brotar de frutos indescritíveis. Bastou uma mordida do produto inenarrável para a humanidade cair numa pecaminosa depressão, de onde surgiram a violência, o desprezo, a brutalidade, a cobiça, a inveja, a vaidade e toda espécie de sentimento desprezível, e, acima de todos eles, a morte. O desejo carnal proibido aos seres alados que eles cultivaram pelas mulheres terrenas povoou as primeiras nações com a ira dos gigantes afogados no dilúvio destruidor de demônios. A partir daí, as imagens fluem como flashes sonoros de uma batida ritmada que se torna cada vez mais envolvente e delirante. Cornelius assiste ao surgimento e a queda de grandes civilizações, impérios fossilizados descobertos pelo milagre da arqueologia. Enquanto isso, homens de boa fé mastigam suas mensagens de esperança para multidões brutas que os torturam nas cruzes da ignorância, enquanto outros homens malignos ganham seguidores através da disseminação de suas mentiras e discursos de ódio. Incentivadas por desilusões paternais advindas de mentores sem a menor instrução, crianças clamavam pelo aprisionamento de pessoas que nunca conheceram.
A humanidade progride em retrocesso, sustentando suas decepções em discursos religiosos sem fundamentos, tecendo teorias insensatas para dar vida a deuses invisíveis encarnados em ídolos de pedra, madeira, metal e falas. Homens são subjugados pelo tamanho de seus falos e tem suas masculinidades feridas, usando o patriarcado como forma de impedir uma futura igualdade de gêneros. As cidades crescem, horizontal e verticalmente, quando a revolução industrial muda o estilo de vida da população, e a tecnologia evolui desde a invenção da roda e a descoberta do fogo até a adaptação das máquinas para corresponder às interações humanas, capturando consumidores em suas telas com tudo sendo manipulado por um seleto grupo de personas de poderio monetário, cujos conflitos ideológicos beiram o Armagedom da insanidade social. Porém, a cólera da guerra sempre esteve presente, apresentando o inferno para homens inocentes sob a desculpa de defender um país que não se importa com nada além de sua própria bandeira, e às vezes nem isso. As táticas bélicas evoluem, aumentando a quantidade de mortos nas trincheiras à medida que as bombas caem, obliterando qualquer resquício de esperança ainda existente no coração dos combatentes. E foi assim que tudo terminou, quando os explosivos nucleares ressurgiram nos céus daquele planeta castigado, e a multidão ignorante clamou aos seus deuses insignificantes no seu último pandemônio. O anjo caído andou pelas cinzas daquele mundo arruinado, satisfeito com a devastação provocada pela sua influência.
Toda essa trajetória foi assistida sob o ponto de vista de diversas pessoas através das diferentes eras. Demorou uma fração de segundos para Cornelius entender que aquelas pessoas eram seus antepassados, e o propósito daquela experiência era chegar nele e no epicentro de sua existência mundana. No caminho, ele encarnou numa sacerdotisa celta decapitada por mercenários inimigos, num comerciante romano vítima de lepra, num trovador francês que pereceu na peste negra, numa princesa inglesa assassinada pelo próprio amante, numa atriz de cinema norte americana morta numa tentativa de latrocínio, num jogador de futebol brasileiro que morreu de HIV após uma noite de farra, num escravo no antigo Egito afogado no rio Nilo, numa oceanógrafa australiana devorada por um tubarão, num garoto de programa alemão morto num acidente de avião, numa digital influencer sul-coreana esfaqueada por um serial killer, num fazendeiro irlandês vítima de câncer, numa bruxa mexicana queimada na fogueira, num professor chileno fuzilado por guerrilheiros, num ditador russo envenenado, numa criança vietnamita que morreu atropelada por um motorista embriagado que também morreu no mesmo acidente, e até mesmo num astronauta indiano explodido em órbita, e em dezenas de milhares de soldados de todas as nacionalidades, raças, etnias e orientações sexuais possíveis, que pereceram no campo de batalha das formas mais grotescas e inimagináveis, muitos deles sem a menor chance de lutarem pela própria sobrevivência.
Como uma fênix planetária, a vida ressurgiu do clarão mortal, densificando sua atmosfera, desertificando seus solos, convertendo suas águas em ácido, e afastando os últimos humanos sobreviventes do massacre das suas derradeiras riquezas naturais. Em meio aquele cenário decadente, grandes blocos de rochas ascendem no manto celeste, afetados por algum truque gravitacional, se comprimindo e esticando, fundindo suas armações de aço puro e transmutando suas formas no que viriam a ser as cidades flutuantes. E na maior de todas as novas cidades, aquela erguida nos céus pelo carvão que um dia fora a vida terrena, cinquenta e nove anos após o início da nova era, num hospital da parte pobre de Newdawn e durante um blackout, Cornelius nasceu.
Foi estranho rever todas as desgraças que resumiram sua vida, seus batimentos cardíacos aceleraram tanto que quase pareciam o motor de um jato Maverick. Cornelius, em condições normais, teria entrado em pânico ao presenciar uma reprodução perfeita do dia que sua mãe o abandonou junto de Cérebro no orfanato, de sua infância nas ruas, sua quase derrota na luta contra o alcoolismo, suas dúvidas em relação a sua sexualidade e a morte de seu mestre, nem mesmo as coisas boas, como o dia em que seu talento para a engenharia foi descoberto por um cientista aposentado ou o dia em que conheceu Ed e July, pareciam acalmar seu êxtase silencioso. Se não estivesse dopado, Cornelius teria um infarto e cairia morto ali mesmo, naquele salão distorcido pela suprema matéria do universo.
Então, tudo terminou onde começou, naquele tabuleiro preto e branco perdido no espaço. Cornelius pensou que a sua viagem polidimensional já havia acabado, mas sua perspectiva extracorpórea começou a se afastar novamente, reduzindo todo o universo a uma proporção menor do que a de uma molécula. Agora comprimida na forma de uma esfera, a existência é apanhada pelas garras ásperas de uma criatura inexplicável, seu corpo era uma silhueta esguia, escura, gigantesca, e humanoide, possuindo quatro braços longos com dedos pontudos e dezenas de tentáculos repulsivos saindo das protuberâncias de seu torso, cada membro agarrando o maior número possível de universos e realidades. A cabeça daquela entidade se assemelhava ao que parecia ser uma ostra mutante escondendo uma diminuta pérola em sua abertura apoiada na vertical, um crosta rochosa servindo de carapaça para um conjunto de tecidos esponjosos, os únicos órgãos distinguível eram os seus olhos, dezenas deles agrupados ao longo de sua face, representados por órbitas luminosas. O lado de trás de seu crânio se estendia como uma cauda colossal que se enrolava em torno de um agrupamento de universos. A outra extremidade de seu corpo estava invisível, oculta mas profundezas de um buraco negro, e talvez fossem melhor assim, ninguém suportaria encarar aquele monstro cósmico por completo. A única certeza que Cornelius teve sobre aquele ser colecionador de mundos era a convicção de que nenhum humano deveria ver aquela aparição alheia à realidade.
Cornelius retornou a sua posição inicial e sentiu como se sua mente se acomodasse em seu corpo, o que lhe resgatou do sufoco de escapar novamente naquela dimensão onírica. Porém, diante dele, o manto estrelado foi bruscamente substituído pela imagem da criatura tentacular. As orbes luminosas sinalizaram que o ser lovecraftiano encarava o inventor, uma mosca quando comparado a sua grandiosidade.
— Nascido nos limites do tempo — Éon dizia com sua voz assumindo uma força inesperada. Agora, apenas ele e Cornelius estavam de pé, o comitê avaliativo estava ajoelhado em volta deles, repetindo palavras estrambóticas numa língua obscura — Belliscientia é aquele que criou todo o universo e fez a vida evoluir na Terra. Se nós existimos é graças a ele, e essa é nossa missão, exaltar Belliscientia através do avanço da ciência e tecnologia para sermos recompensados por seu panteão invisível de maravilhas. Enquanto a Sociedade da Ciência existir, Belliscientia existirá, e moldará nosso mundo com suas vontades e desejos. E você, Cornelius Albert Dumont, agora é um de nossos irmãos.
— É maravilhoso... — Foi tudo que Cornelius conseguiu falar, mas nenhuma palavra existente poderia expressar seus sentimentos diante daquela aparição. Ele já tinha tido contato com a magia mythidiana, sabia bem como a energia arcana funcionava, mas Belliscientia era completamente diferente, estava além da feitiçaria e da tecnologia. As orbes luminosas que serviam de olhos transmitiam uma certa sensação de medo, e por mais contraditório que parecia, ao mesmo tempo era tranquilizador ser notado por aquele que tudo sabe e tudo ver. Aquele manto estrelado agora envolvia os olhos de Cornelius enquanto ele admirava a magnificência daquela presença divina que envolvia seu corpo com seus tentáculos.
***
Tão repentino quanto começou, aquela experiência onírica acabou. Num piscar de olhos, Cornelius estava de volta ao salão, com a mesma arquibancada vazia à sua volta e com o comitê avaliativo lhe parabenizando com aplausos. Seus olhos piscavam sem parar, tentando se acostumar novamente com a luminosidade do mundo real e uma enxaqueca tomou posse de seu crânio durante a curta confusão mental que ele sentiu em seguida. O tempo não parecia ter passado, tudo estava como deveria está.
— Vamos, vou te mostrar o resto da Casa das Ideias — Frankie disse, lhe conduzindo para fora do salão enquanto os demais membros começaram a recolher o material de Cornelius — Vão fazer o seu cadastro até o fim do dia.
Frankie levou Cornelius através da antessala para o saguão principal do prédio. Seguindo o padrão da edificação, o saguão também apresentava um formato circular com paredes azuis e piso cinzento, mas o que mais chamava atenção ali era a fabulosa estátua de Nikola Tesla disposta no centro do cômodo e com os demais andares panorâmicos a sua volta. O monumento possuía uns dez ou doze metros e apoiava-se num pódio de quase dois metros e meio de altura, tinha cores acobreadas, seu braço direito estava levantado segurando um cajado de onde brilhavam descargas elétricas reluzentes que iluminavam todo o ambiente junto às lâmpadas locais. Não dava para saber ao certo com qual material aquele ídolo havia sido fabricado, mas Cornelius teorizou por um momento sobre as propriedades que permitiam aqueles raios existirem de forma controlada e contínua.
Em torno da estátua abriam-se passagens largas para os corredores com as diversas áreas da construção, em sua maioria laboratórios. Num deles, eles encontraram Cérebro, que se permitiu chorar de emoção ao ver Cornelius vestindo o jaleco da Sociedade da Ciência e tendo certeza de que seu sonho tinha se realizado. A alegria do comovente momento não se cabia aos irmãos Dumont, e acabou arrancando alguns suspiros de Frankie.
— Agora vamos ao meu lugar favorito daqui — Frankie disse enquanto subia a grande escada de mármore do saguão principal, disposta atrás da estátua de Tesla e conectando todos os três andares. Junto de Cornelius, eles subiram rumo a uma passagem acima do último andar — Esse é o nosso jardim.
Cornelius atravessou a passagem e seus olhos brilharam ao se deparar com o lugar mais peculiar que ele já havia visto na vida. O jardim era um amplo espaço coberto por uma redoma, e fazia a horta de Ed parecer medíocre comparado com aquele parque sintético exageradamente maior. O local possuía um pavimento de paralelepípedo cinzento que se dividia entre trechos planos e declives acentuados que se enchiam de água esverdeada de musgo e serviam como viveiro para grandes carpas brancas e laranjas. Em alguns pontos o pavimento dava espaço para canteiros redondos em torno de árvores altas de tronco fino e folhas esparsas e pontiagudas, onde um sistema de aspersores mecânicos regava as plantas e enchia os viveiros das carpas, posteriormente drenando o excesso. Também havia alguns bancos e mesas de pedra coberta com azulejos no local, que mais parecia uma praça da parte pobre de Newdawn, só que mais conservada, rebuscada e anticlimática. No geral, aquele lugar era estranho e moroso, a vegetação possui um tom de verde escuro quase cinza e o sistema de ventilação deixava o clima frio ali, até as carpas pareciam sem vida, alternando costumeiramente entre a inércia e o nado apressado em busca de alimento.
— Gosto de vir aqui para relaxar e pensar um pouco na vida — Frankie comentou. Ele se agachou próximo de um declive e brincou um pouco com as carpas, mergulhando sua mão na água gelada e fazendo movimentos circulares.
Cornelius observou aquele lugar esquisito e a grande redoma cuja cor se assemelhava com a aglomeração de nuvens de chuva. As árvores balançavam vagarosas no Éden quase morto, alguns membros conversavam sentados nos bancos, enquanto outros caminhavam ou alimentavam as carpas. Ele sentou-se no chão ao lado de Frankie e respirou fundo, sentindo seus pulmões se encherem da tranquilidade que ele só sentia em meio às plantações de Ed no quintal de sua casa, muito diferente daquele viridário artificial. Aquilo o deixou tranquilo, e era bom relaxar depois de tantas emoções. Cornelius chegou a conclusão de que todos os seus dramas do passado e as tragédias da sua vida foram apenas testes para o real desafio, e ele já tinha vencido a maior de todas as aprovações. Sua vida começava agora, naquele jardim cinzento, e seria maravilhosa.
***
Os dias passaram ligeiramente, sem Cornelius perceber o quão rápido o tempo havia passado. A vida em Tesla era muito próxima da definição de algo perfeito. Não havia dificuldades ou grandes esforços, tudo era automatizado pelas maravilhas elétricas da cidade, indo desde a climatização dos ambientes até serviços domésticos, como cozinhar e lavar roupas. Cornelius recebeu um dormitório próprio, com um novo guarda-roupa completo e designado de acordo com seus gostos pessoais, além do acesso ilimitado aos arquivos da Casa das Ideias e as bibliotecas da cidade, e todo o material necessário para os seus projetos. O único lugar que ele não podia acessar se localizava atrás da estátua de Tesla, com grandes portas onde lia-se "acesso restrito".
Todo dia, Cornelius acordava cedo e tomava café no refeitório da Casa das Ideias, onde recolhia sua refeição nas máquinas de comida, em seguida estudava num dos laboratórios com outros membros que ingressaram com projetos parecidos, muitos ficaram empolgados com as inúmeras possibilidades apresentadas pelos seus drones. Ao meio dia, Cornelius se reunia com Cérebro e alguns amigos novamente no refeitório para o almoço, onde eles viam as notícias do dia pela televisão e debatiam os assuntos entre si. Cornelius sentia-se bastante a vontade no clube, tendo estabelecido relações de camaradagem com vários outros membros, mas em especial com um manifestino negro que projetava veículos marítimos e um sennita corpulento que estudava a possibilidade de explorar o espaço com naves projetadas a partir dos automóveis tradicionais de sua cidade. Após o almoço, Cornelius subia para o jardim, onde encontrava Frankie e eles conversavam sentados nos bancos de pedra enquanto as carpas nadavam aos seus pés. O resto da tarde era dedicado a leituras, palestras, estudos e experimentos, além de serviço comunitário na manutenção das dependências da instituição, e a noite Cornelius às vezes ficava em seu dormitório vendo filmes e lendo livros de ficção científica, ou saía para a cidade com seus colegas para se divertirem em danceterias durante as madrugadas. Em meio a tudo isso, Cornelius ainda tinha tempo para se exercitar e correr numa praça próxima da Casa das Ideias. E nunca mais havia visto Éon Epistími após o seu exame de admissão.
Tudo parecia perfeito, mas Cornelius ainda se sentia solitário. Às vezes, durante a noite, ele se revirava na cama enquanto remoía em seu íntimo sentimentos carnais que ele não podia aceitar tê-los, principalmente quando esses sentimentos vem direcionados a pessoas inesperadas. Por algum motivo, quando sentia que as borboletas rasgariam as paredes de seu estômago, ele lembrava de Johnny e de seu sorriso maníaco, e imaginava uma realidade paralela onde tudo teria dado certo, a vida de Johnny não teria se perdido pelas suas imprudências e sobraria mais dele além daquele dente, o qual Cornelius carregava pendurado em seu pescoço como um amuleto da sorte, como um talismã. Talvez essa realidade até existisse no multiverso dominado por Belliscientia. Conformado com aquela tragédia do passado, seus sentimentos idealistas se instalaram num novo alvo, Frankie. O coração de Cornelius batia apaixonado toda vez que eles se encontravam, ele suava frio e as palavras sumiam de sua boca. Havia algo de especial em Frankie que provocava essas reações, nem toda inteligência do mundo seria capaz de elaborar uma teoria que explicasse aquela combinação de sentimentos indecifráveis que só se acalmaram quando seus olhos verdes eram avistados. Cornelius tentou dormir para escapar de tudo, mas sempre que fechava os olhos ele via o pesadelo que se repetia desde que chegara ali, com o chão de vidro, a casa fantasma e o tentáculo abissal, além de resquícios da sua experiência extrassensorial cujo significado ainda lhe era um mistério.
Certa noite, após mais uma experiência delirante, Cornelius abre seus olhos com pressa e observa sua respiração ofegante. A chuva que caía pesadamente arrastava uma ventania fria para dentro do dormitório escurecido, mas apesar da sensação térmica gélida, ele ainda sentia o calor do medo e da dúvida. Cornelius afastou suas cobertas, apreciando o frio tomar conta de seu corpo, e se acomodou na cama, mas algo chama a sua atenção e tira por completo o seu sono. Ao olhar em direção a porta, um relampejo azulado pôde ser visto através das frestas.
Cornelius levantou-se, calçou suas pantufas e vestiu um robe verde-escuro por cima do seu pijama. Ao sair do dormitório, ele se surpreendeu com o que viu. A cobertura daquele corredor estava tomada por ondulações elétricas que brilhavam num tom de azul intenso, quase branco. Parecia o movimento de um oceano elétrico e fulgurante. As correntes elétricas corriam por aquele material eletrolítico, liberando além da luz um sutil som de estática. Mesmo em meio a tanta eletricidade, não havia riscos, já que tudo era conduzido por um sistema de fiação até às baterias centrais da cidade, pelo menos era isso que Cornelius lembrava de ter ouvido Cérebro comentar certa vez. Nisso, ele imaginou que os membros da Sociedade da Ciência deviam ser grandes sonhadores para dormirem em meio aquele espetáculo visual.
Uma figura apareceu no final do corredor indo em direção ao saguão principal. Tomado por sua curiosidade naturalmente científica, Cornelius a segue com receio, mas encontra ainda mais beleza em seu caminho. Agora no meio da noite, a única fonte de luz do saguão eram os raios disparados pela estátua, que pareciam se alimentar da tempestade e aumentar de intensidade, rompendo a escuridão com suas rajadas luminosas. E foi graças ao clarão provocado pelos raios trovejantes que Cornelius reencontrou a figura misteriosa, agora subindo as escadas rumo ao jardim. Ele a seguiu, encontrando uma cena que ressalta ainda mais a beleza mórbida do local artificial. Agora a redoma estava tomada pelas ondulações elétricas fulgurantes, e os declives alagados brilhavam ao refletirem aquela luz em flashes ritmados. Cornelius abriu um largo sorriso iluminado por aquele espetáculo elétrico, e não percebeu a figura misteriosa se aproximando dele.
— Bonito, né? — A figura revelou-se em meio a pergunta. Era Frankie, também calçando pantufas e enrolado num robe. Cornelius não sabia o que esperar quando o seguiu até ali, mas sentiu-se feliz ao encontrar Frankie e poder compartilhar com ele aquela experiência única — Eu gosto de observar esses raios quando chove, me ajuda a relaxar.
— São lindos mesmo. Mas, o que é isso? — Cornelius encara Frankie, observando a luz azulada contornar seu rosto — Como acontece?
— É assim que a cidade se recarrega — Frankie se aproximou da redoma e estendeu sua mão, encontrando um painel camuflado nas placas que formam a semiesfera. Com um comando manual, a redoma e as ondulações fulgurantes desaparecem, tornando-se invisíveis, e revelam a vista da paisagem urbana noturna durante a tempestade. Diversos raios e relâmpagos cortavam as nuvens de chuva, sendo atraídos pelas torres metálicas, que Cornelius logo reconheceu como para-raios. Tais aparatos vibravam enquanto absorviam as correntes elétricas — Tesla foi construída acima de uma montanha com a peculiaridade de atrair descargas elétricas e formar constantes tempestades. E tem esses para-raios espalhados por toda cidade, quando tem uma tempestade dessas eles atraem os raios e armazenam a energia nas baterias centrais, já a água da chuva é encaminhada para as estações de tratamento e para os tanques de armazenamento, o excesso, menos de cinco por cento do volume total coletado, é levado pela tubulação para ser despejado na montanha. E assim nunca falta água e energia elétrica em Tesla — Frankie encara Cornelius — Agora, adivinha quem criou esse sistema, ainda nos tempos pós-guerra.
— Éon Epistími — Cornelius respondeu com certeza.
— Exatamente, ele é um verdadeiro gênio, e é como um pai para mim — Frankie trouxe de volta os movimentos sinuosos da eletricidade na redoma. Depois voltou para perto de Cornelius, parou ao seu lado e pegou sua mão, entrelaçando seus dedos com os dele — Tá gostando da sua experiência aqui?
— Poxa, nem sei como definir — Cornelius se encheu de vergonha ao sentir as mãos macias de Frankie em contato com as suas. Ele tentou esconder o rosto encarando o pavimento e coçando a cabeça com a mão livre — Tem sido incrível.
— Você é incrível, Cornelius — Ele ficou ainda mais bobo de vergonha quando Frankie beijou sua bochecha. E eles continuaram ali, em silêncio, observando a eletricidade se derramando ao redor deles como as águas do céu naquela noite tempestuosa.
Naquela noite, Cornelius e Frankie se beijaram pela primeira vez.
***
Ainda na mesma semana, iniciou-se mais um período de apresentações para os possíveis novos membros da Sociedade da Ciência. Temendo interferências nos votos do comitê avaliativo, os demais membros não eram estimulados a acompanhar as apresentações, mas com um convite adequado qualquer um poderia comparecer ao evento. E Frankie não demorou muito para convidar seu interesse romântico.
Cornelius estava sentado no lado direito da arquibancada, um pouco mais elevado que a posição da banca de jurados. Em outro momento ele ficaria um tempo ponderando sobre como sua posição naquela sala mudou em tão pouco tempo, mas hoje ele estava ali com uma missão, entender o que realmente aconteceu após o seu batismo. Junto dele estavam seus colegas e alguns outros membros, que acessam o salão por uma entrada alternativa aos fundos que ele não tinha reparado antes. As apresentações transcorreram sem pressa, e naquela posição de audiência Cornelius não reparava nada de incomum nas aprovações. O aprovado bebia o líquido verdial, vestia seu jaleco e recebia seu medalhão, era parabenizado pelo comitê avaliativo e se retirava da sala acompanhado por um guia. Em seguida, o material era recolhido por uma equipe de apoio e o próximo candidato se apresentava. Tudo acontecia em menos de um minuto e isso alimentou suas suspeitas, seria impossível ter visto toda a trajetória do universo, e toda a sua vida, em sessenta segundos.
Com o tempo, a plateia começa a se dispersar, e Cornelius fica sozinho na arquibancada. O último candidato começou a se preparar para a sua apresentação. Cornelius não reconheceu suas vestimentas e os materiais que ele trazia consigo, mas ouviu Frankie comentar com seus companheiros que o rapaz veio de uma das menores, e mais recentes, cidades flutuantes. Isso chamou a sua atenção, já que a Sociedade da Ciência quase nunca chamava alguém de fora do eixo tradicional, o que já levantou críticas e acusações de elitismo.
O garoto parecia tímido e sem jeito durante sua apresentação. Porém, sua ideia era deveras interessante, um tipo de colete que, quando atingido por um certo impacto e deslocado, envolvia o usuário numa bolha plástica que só se desmontava quando estivesse imóvel novamente. Era, de fato, uma proposta promissora, em especial quando aplicada em relação aos acidentes de trânsito ou com aeróbus, poderia até ser um item indispensável para os tripulantes. Mesmo assim, o garoto só recebeu dois votos positivos, os demais alegaram que ele deveria amadurecer seu projeto e tentar novamente em breve.
Cornelius foi tomado pela indignação diante daquela idiotice sem fundamentos. Aquela bolha plástica salvaria vidas, não tinha nenhuma explicação lógica para ser facilmente descartado. Enquanto isso, outros projetos como dardos que se ajustam a posição do alvo, lentes ópticas que se limpam sozinhas e malhas antirradiação foram aprovados sem receberem nenhum voto negativo. Havia algo muito errado acontecendo ali, e não dava para ter certeza se era sobre a dinâmica da aprovação ou sobre os critérios individuais dos membros do comitê avaliativo, era preciso ir mais a fundo para obter o esclarecimento.
Assim, no horário costumeiro, Cornelius sobe para o jardim, onde encontra Frankie sentado num banco observando as carpas. O local parecia tão monótono quanto sempre foi. Normalmente era reconfortante estar ali, ouvir e ser ouvido, mas agora Cornelius se sentia tão confuso que suas emoções estampavam sua face com a expressão da perturbação. Ele se aproximou de Frankie com passos trêmulos e apressados, e foi recebido com um sorriso simpático não correspondido.
— Oi, Cornelius, eu te vi hoje na... — Frankie parecia distraído enquanto falava, até ser interrompido.
— Eu preciso falar contigo. Te perguntar uma coisa importante — Cornelius engoliu em seco e sentou-se ao lado de Frankie, mesmo se sentindo incapaz de lhe encarar naquele momento — Eu percebi algo muito estranho hoje cedo. Aquele garoto da bolha de plástico — Frankie balançava a cabeça, afirmando que entendia o que Cornelius queria dizer mesmo quando se perdia em meio às palavras. Cornelius finalmente olhou bem fundo nos olhos de Frankie — O projeto dele era perfeito. Por que ele não passou? Por que todos vocês votaram contra?
— É que... — Frankie procurou as palavras certas, mas elas não se organizavam de nenhuma maneira. Ele até balançou a cabeça, olhou para um horizonte que só ele via, apertou as mãos sobre os joelhos, acreditando que tudo isso melhoraria seu raciocínio, mas nada adiantou — Vem comigo!
Frankie levantou-se de súbito e agarrou Cornelius pela mão, o arrastando para fora do jardim. Eles desceram as escadas em direção as portas atrás da estátua. Posicionado diante delas, Frankie ergueu seu medalhão em direção a um aparelho parecido com uma câmera. Após um instante escaneando o artefato, as portas se destrancaram, e a passagem se abriu para Cornelius e Frankie.
A medida que avançavam por um corredor retilíneo, com piso de azulejos brancos e paredes verdes iluminadas por luzes elétricas horripilantes, um conjunto de sons metálicos ecoava cada vez mais nítido no ar, e o calor sentia-se cada vez mais ardente, arrancando respingos de suor das testas pálidas dos inventores.
Quando uma interseção surgiu, Frankie guiou Cornelius por um corredor paralelo onde, ao fim, a parede concreta era substituída por um vidro cristalino e resistente. Através desse escudo invisível, Cornelius presenciou uma visão apavorante. Abaixo da Casa das Ideias havia uma fábrica, onde grandes maquinários montavam armas, bombas e mísseis automaticamente em suas esteiras, enquanto expeliam fumaça através de canos curvos. Diversas categorias de armas de fogo, desde os pequenos disparadores portáteis até os complexos lançadores de granadas, eram sistematicamente organizadas em prateleiras e embaladas em caixotes de madeira, enquanto ganchos robóticos carregavam grandes explosivos do tamanho de um carneiro. Cada mecanismo dos armamentos era fabricado com a perícia que apenas as máquinas eram capazes de reproduzir. E esse processo se repetia por vezes inimagináveis através dos amplos setores daquela maternidade de recursos bélicos.
Cornelius encostou sua testa no vidro e encarou aqueles monstros de aço, forçando as mãos na tentativa de afastar a visão daquela realidade inesperada. Ele estava incrédulo, e o som dos metais se chocando em meio ao processo industrial atormentava seus pensamentos e arrepiava todos os seus nervos.
— Mas... Que porra é essa, Afrânio!? — Assustado, Cornelius perguntou quando finalmente conseguiu arrancar os olhos das máquinas e encarar o companheiro.
— É o necessário — As palavras de Frankie saiam tranquilas e precisas, como um tiro que acerta em cheio o seu alvo, porém, sobretudo, elas estavam cheias de orgulho — Desde os tempos antigos, a guerra sempre promoveu o avanço da ciência. Você deve saber como o mundo mudou depois da segunda guerra mundial, e todo o impacto que surgiu na vida cotidiana. Foi assim que surgiu a Sociedade da Ciência, desde aquele tempo nós damos o empurrão necessário para a tecnologia evoluir, e ela sempre depende do conflito — Frankie se aproximou do vidro e abriu seus braços diante das máquinas — E somos nós quem secretamente promovemos esse conflito.
— Mas... Isso é horrível! — Cornelius alternava seu foco entre encarar as máquinas e encarar Frankie, sem saber ao certo o que lhe incomodava mais, a observação ou as palavras — Essas armas... E os tratados de paz? Não existe conflito nas cidades flutuantes!
— Algumas cidades pagam milhões por essas coisas, você não imagina o quão intenso é o desejo de dominação, de ser superior. Sempre vai ter alguém querendo ser mais do que os outros, e buscando isso em formas rápidas e ilegais — Um sorriso surgiu em meio aos lábios de Frankie — As cidades flutuantes só existem devido ao conflito, e de onde você acha que veio a bomba que devastou o mundo? A Sociedade da Ciência criou a luz que recomeçou a história, que bagunçou os rumos da civilização, que redefiniu o que é sobreviver. O mundo era muito chato Cornelius, graças a nós, e ao nosso mestre Belliscientia, tudo é mais divertido — Frankie proclamou a última sentença mirando o alto.
Essa revelação atingiu Cornelius como um raio. Então o seu maior sonho, a única coisa que fazia a sua vida ter algum sentido, alimentava os velhos sentimentos que destruíram o mundo antes, e além disso fornecia os meios de dominação e destruição. Aquilo era demais para ele, não tinha como aceitar e lidar com isso, tudo estava desmoronando ao seu redor. O pior de tudo era ver o semblante cheio de orgulho de Frankie, admirando aqueles ideais malignos a seu modo enlouquecido. A paixão idealista foi lentamente substituída pelo mais profundo medo. Debruçado sobre aquele vidro, Cornelius estava sem palavras e sem reação além do óbvio espanto, e a primeira coisa que ele fez foi correr para bem longe daquele covil macabro.
— Cornelius!? Onde você vai!? — Frankie perguntou em vão, já que Cornelius nada mais ouvia.
Por algum motivo, Cornelius correu através das escadas em direção ao jardim. O espaço estava deserto, e lá Cornelius pôde remoer as novas informações que bombardeiam sua consciência. Ele se ajoelhou sobre o pavimento umedecido e se arrastou rumo ao ponto mais extremo do jardim, empurrando seu corpo sobre a sujeira provinda das folhas mortas que caíam sobre as atividades das carpas.
Ao fim de seu percurso tortuoso, Cornelius se deitou, observando a redoma acima dela e sua magnificência mórbida. Ele gritava, puxando os lamentos engasgados no fundo da garganta enquanto lágrimas fugiam de seus olhos. Ele ainda não entendia como sua vida tinha dado uma virada tão brusca, e nem teve tempo de tentar entender, pois um rugido sobrenatural ecoou pelo local.
Cornelius se levantou de um pulo, tomado pelo pavor de encontrar uma mudança no ambiente. Agora, as árvores haviam dobrado de tamanho, apresentando troncos esguios e enegrecidos que se contorcem como tentáculos diabólicos, enquanto os declives se inundavam com o líquido verde e borbulhante que o batizou dias atrás, e dessas fossas poluídas se arrastavam monstros humanoides com características písceas. O clima sob a redoma também foi afetado, sendo tomado por uma congelante brisa gélida. Acima desse inferno frívolo, os raios novamente tomaram conta da cobertura, dessa vez muito mais agressivos e amedrontadores.
O mais assustador eram esses monstros escamosos que possuíam o corpo baixo e robusto, e rugiam com suas bocas largas e carnudas. Suas peles eram levemente esverdeadas e cobertas pela armadura natural de sua forma subaquática anterior. Os olhos jaziam esbugalhados em ângulos improváveis, sendo divididos por protuberâncias que faziam papel de narinas e expeliam um fedor lúgubre. Possuíam membros musculosos com membranas pegajosas entre as garras que serviam de dedos, tanto nas mãos quanto nos pés, e suas costas possuíam barbatanas duras e afiadas como as serras de um lenhador. Saber que essas criaturas vinham em sua direção era mil vezes mais aterrorizante do que apenas presenciar seu coro horripilante de urros.
Cornelius fechou seus olhos tomado pelo pavor, e encolheu-se diante da redoma, desejando profundamente que aqueles demônios marítimos desapareçam e o deixem em paz. Mas nada parecia ser capaz de arrancá-lo daquele cenário abominável.
— Velhote! — A voz de Johnny surgiu em sua mente de alguma forma inexplicável, o despertando daquele pesadelo. Ao abrir os olhos, Cornelius encontrou o jardim como sempre foi, artificial, imóvel, e desinteressante. As árvores haviam abandonado seus movimentos sinuosos, o clima havia esquentado novamente, e os monstros retornaram às aparências de carpas inofensivas. Ele se levantou e fugiu dali, ainda tomado pelos horrores inexplicáveis ocultos no fundo dos declives alagados. O medo se aprofundava na alma de Cornelius, e não importava para onde olhasse, tudo que ele via exalava perigo.
***
Na escuridão de um laboratório, Cérebro explicava teorias mecânicas a respeito do funcionamento de um pequeno robô que desfilava mecanicamente sobre uma mesa. Todos os detalhes do aparato eletrônico eram exibidos numa parede branca através de um projetor que tomava conta do ambiente com sua luz azulada, e absorvidos pela atenção do considerável grupo de membros que assistiam a exibição, enquanto anotavam o que mais lhes chamava atenção em suas agendas de trabalho, pequenas cadernetas de capa azul e folhas pautadas.
A concentração da reunião foi quebrada quando Cornelius entrou apressado, empurrando a porta do laboratório com o peso do próprio corpo e acendendo a luz, o que arrancou uma onda de protestos da audiência.
— Irmão Cérebro... — Cornelius disse, encarando o irmão e ignorando aqueles que reclamavam de sua interrupção.
Cérebro anunciou sua saída, deixando com seu assistente cypherino a obrigação de continuar os procedimentos da demonstração. Cornelius guiou seu irmão até seu dormitório com ansiedade e nervosismo, o que encheu Cérebro de questionamentos sobre aquela mudança repentina no comportamento do irmão, seguidas pelo fato observado de que Cornelius estava todo sujo de folhas secas, poeira, e também parecia ter se molhado. Assim que se encontraram trancados no recinto, Cornelius descreveu as suas descobertas do dia, atingindo Cérebro com a flecha do esclarecimento.
— Você sabia esse tempo todo, não sabia? — Cornelius o encarou com um misto de cólera e desapontamento — Por que você nunca me contou? Você nunca escondeu nada de mim!
— Irmão Cornelius, eu não podia te contar — Cérebro aproximou-se do irmão com os braços estendidos numa postura acolhedora, mas Cornelius recusou o afeto fraterno, dividido entre a recusa, a indignação e o acolhimento — Isso era o seu sonho. Era esse propósito de chegar até aqui que fazia sua vida ter sentido. Eu não queria tirar isso de você.
— E acha mesmo que seria melhor para mim ser cúmplice de uma matança!? — A fúria reprimida de Cornelius disparou através de suas palavras.
— Mas é assim que funciona. O que nós podemos fazer? — Cérebro tentou se explicar, avaliando internamente a linha de raciocinar do irmão e percebendo que ele, lá no fundo, por baixo da impulsividade colérica, tinha razão — A Sociedade da Ciência faz seus trabalhos filantrópicos e humanitários para camuflar a venda de armamento bélico no mercado clandestino. Todos os projetos aprovados pelo comitê avaliativo são convertidos em ferramentas que beneficiem esse ideal. Os inventores só ficam sabendo meses depois, quando já estão habituados com todas as regalias. A maioria daqui era como nós, não tinham nem onde caírem mortos. Qualquer um aceitaria qualquer coisa só pela oportunidade de ter uma vida melhor.
— Eu não consigo — Cornelius balança sua cabeça de um lado para o outro, frenético — Eu não consigo viver assim, é como se eu tivesse vendido a minha alma — Cornelius começa a respirar fundo, roubando à força todo oxigênio para dentro dos seus pulmões frágeis. Enquanto isso, Cérebro abafa seus soluços no pulso, olhando em volta de cabeça baixa, evitando os olhares desiludidos do irmão — Você disse que todos os projetos são convertidos, eu não quero me orgulhar de ter criado uma arma em forma de drone.
— Não existe escolha, Cornelius — Cérebro o encarou após seus momentos evasivos — Tudo na Sociedade da Ciência serve esse propósito, sem exceção.
Cornelius continuava inquieto, não havia saída para esse dilema. Agora ele estava coberto pela própria vergonha, só queria sumir, fingir que nada aconteceu. Talvez fosse o melhor a ser feito, mas ele sempre carregaria o fardo de suas descobertas. Irônico perceber que na residência do conhecimento, Cornelius aprendeu que, às vezes, a ignorância é a maior de todas as virtudes.
— Eu vou embora! — Cornelius abriu seu armário com força e puxou sua mala, onde começou a colocar de forma desajeitada as roupas e pertences que ele havia trazido consigo inicialmente — Vem comigo! — Cornelius agarra os braços do irmão — A gente pode se virar em Newdawn, a gente sempre se virou. O Ed pode ajudar a gente, e também tem a July e o Wes. Eles nunca nos negariam nada...
— Não é tão simples assim. Mas se precisar de mim, estarei no meu apartamento em Cypher — Cérebro arqueia as sobrancelhas como se tivesse lembrado de algo que quase havia esquecido — Já volto! — Quando Cérebro saiu do dormitório, Cornelius aproveitou para terminar de empacotar sua bagagem. Ele tirou seu jaleco e o largou sobre a cama, aquilo que antes representava suas ambições agora não passava do envelope de suas vergonhas. Lá no fundo ele sabia que não tinha como saber que daria errado, mas esse não era o momento de olhar o lado bom das coisas, pois Cornelius também sabia que ele não nasceu pra vencer. Seu destino estava fadado ao fracasso, sempre foi assim e sempre seria. Em seguida, Cornelius encontrou seu medalhão ainda pendurado em seu pescoço, e o arrancou, mantendo como ornamento a última lembrança de Johnny. Cérebro retornou logo depois, trazendo consigo uma caixa perfeitamente quadrada — Isso é para você, mas só pode abrir quando chegar em casa e num momento de maior necessidade.
Cornelius pegou a caixa, analisando seu entorno e observando suas dimensões. A caixa era tão leve que parecia estar vazia, mesmo com um remelexo sutil que denunciava a presença de conteúdo. Cornelius tentou abrir uma fresta na caixa e espiar o que havia dentro, mas foi repreendido pelo irmão. Cornelius fechou a caixa com pressa e quase a derrubou, arrancando risadas da dupla. Por fim, os irmãos Dumont se abraçaram, e Cornelius partiu, levando consigo a mala, a caixa, e o peso de abandonar aquilo que mais desejou pelo fato de ter feito uma descoberta que nunca devia ter se revelado.
Assim que Cornelius saiu, Cérebro pegou seu comunicador e discou uma ligação, sendo atendido por uma voz áspera e macabra.
— Eu já entreguei — Cérebro soltou, apressado, após engolir em seco em busca de coragem — Quando vou receber a cura?
— Você acha mesmo que existe uma cura? — A voz o respondeu com sarcasmo, seguido de uma risada macabra.
Cérebro abafou com a mão os gritos que surgiam selvagens em sua garganta, e lágrimas ferozes e incontroláveis escorreram de seus olhos tomados pelo mais profundo desespero.
***
Do outro lado da linha, em Newdawn, Leonard guardou seu comunicador no casaco e observou a estranha residência na qual havia entrado. Ele, junto com Max, estava na antiga casa de Cornelius, buscando alguma coisa em meio a bagunça inventiva do local.
— Tudo vai como o planejado — Leonard disse para Max, em meio a um sorriso de satisfação.
— Podemos ir embora agora? — Max perguntou com desprezo enquanto arremessava pequenas engrenagens contra os insetos mecânicos que voavam vagarosos — Odeio lugares apertados e bagunçados.
— Acho que sim, já encontramos o que viemos procurar — Leonard se aproximou de uma mesa e arrancou a manta velha que havia sobre ela.
***
Cornelius se encaminhou de imediato para o porto de Tesla, onde embarcaria de volta a Newdawn. Ele ainda não havia digerido todos os ocorridos daquele dia, mas já sentia como se tirasse um fardo das costas e os únicos pesos que carregasse fosse o da sua bagagem. Com o tempo tudo passaria, pelo menos agora ele estava na direção que julgava ser mais certa. Antes de embarcar, Frankie surgiu repentinamente no porto e o chamou, com ares de preocupação, mas Cornelius nem se deu ao trabalho de o encarar, apenas virou o rosto de lado e o fitou com o canto dos olhos, e, após um instante de descaso, adentrou no aeróbus.
Impassível, Frankie observou o aeróbus levando embora seu improvável romance.
Tudo ficou para trás quando a aeronave decolou. Algum tempo depois, Cornelius aterrissa em Newdawn, feliz por estar em casa. A primeira coisa que veio a sua mente enquanto atravessava o pátio do porto da sua cidade natal foi a imensa saudade que ele tinha de seus amigos, e mal podia esperar para revê-los. Mas ao sair pela porta de acesso do porto, a mala e a caixa despencaram de suas mãos enquanto seu semblante foi tomado por um espanto maior do que o expressado na revelação da Sociedade da Ciência.
Tudo havia mudado. A bandeira da família ministerial estava estampada em grandes faixas penduradas nos prédios, soldados marchavam sincronizados pelas ruas carregando fuzis e submetralhadoras, acompanhados por carros-fortes-fortes. E o pior de tudo, a voz de Leonard ecoava pelos alto-falantes que flutuavam pela cidade. Parecia que o maior pesadelo cultivado por Ed havia se tornado realidade, Leonard Roberts agora estava no poder.
— O que aconteceu aqui? — Cornelius perguntou-se em meio a um suspiro, sentindo-se dominado pela atmosfera opressora emanada pela cor vermelha que contornava o tamanduá nas bandeiras.
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