Capítulo 8 - Sonhos de Uma Noite de Feriado
O trem deslizava tranquilamente nos trilhos em meio às colinas verdejantes. As paisagens artificiais passavam aos olhos de July Harmond como borrões velozes, mas ela ainda conseguia distinguir detalhes mais distantes em meio a natureza arcade por onde o trem passava. Ela estava no extremo oposto de Newdawn, onde os prédios e o barulho da cidade grande davam espaço para vilas mais simplórias em meio a fazendas, pastos, vastas áreas verdes, bosques, pequenas florestas e grandes plantações, uma tentativa de emular o interior dos países do antigo mundo e seu contato com a natureza. Apesar da perceptível imensidão verde, o interior de Newdawn não ocupava nem dez por cento do território da cidade, todo resto ainda era dominado pela metrópole steampunk.
Junto com ela estavam Ed, sentado à sua frente, e Alexander, sentado ao seu lado, ainda um pouco tímidos um com o outro por causa de eventos anteriores. O trem, uma pequena Maria Fumaça, que também trazia a mesma ideia de conforto e sofisticação dos aeróbus mas numa abordagem mais tradicional, com revestimento interno de madeira e mobília clássica, estava cheio de passageiros. Muitas pessoas se dirigiam para o interior naquele dia, alguns em estradas e outros nas diversas linhas férreas.
O motivo de tanta agitação e deslocamento era o dia da família, um dos poucos feriados comuns entre todas as cidades flutuantes, além do natal e do ano novo. O dia da família, celebrado no dois de março, relembra um dos episódios mais marcantes dos tempos de guerra, o dia em que uma moça chamada Eva morreu envenenada enquanto tentava escoltar sua avó idosa até o foguete que salvou a humanidade, nisso percorrendo mais de três mil quilômetros a pé numa região já devastada pelos bombardeios nucleares e pela radiação. Ao retornarem e estabelecerem as novas cidades, a população escolheu esse fato como forma de estabelecer um sentimento mútuo de fraternidade no novo mundo, a odisseia humana na Terra sobreviveria se todos tivessem a mesma coragem da garota para protegerem uns aos outros.
Apesar desses feriados comuns para todos, cada uma das novas cidades ainda estabeleceu seus feriados próprios. Newdawn possuía o dia do renascimento no vinte e cinco de junho, o dia da inauguração da primeira fábrica de queima de carvão na cidade e também uma folga para os funcionários públicos que trabalhavam incansavelmente. Myth possuía o dia da contemplação arcana no doze de outubro, dia do nascimento do ocultista Aleister Crowley, um dia dedicado à meditação coletiva como forma de renovar sua ligação com a energia arcana da cidade. Senna possui um feriado no dia primeiro de maio como forma de homenagem ao piloto que inspirou o nome da cidade, enquanto Manifesto possuía no dia quinze de agosto um grande festival com shows e apresentações artísticas durante exatas vinte e quatro horas. Cidades menores como Tesla possuíam diversos feriados, no caso da cidade da eletricidade todos eram nas datas de nascimento de cientistas importantes, desde Albert Einstein a Marie Curie, e outras ainda menores nunca divulgaram seus calendários festivos.
July olhou para os seus companheiros de viagem, enquanto Ed, com o queixo apoiado no braço por sua vez apoiado no encosto da janela, contemplava a paisagem e pensava na morte de um filhote bovino, Alexander, distraído, roía suas unhas.
— Eu acho que vai ser menos constrangedor se vocês conversarem um pouco — July disse com um sorrisinho bobo, arrancando a atenção dos rapazes.
— Tipo sobre o que? — Alexander perguntou, encarando a garota por um momento.
— Sei lá, futebol, que tal? — July olha para Ed — O Ed adora futebol.
— Ei Alexander, pra qual time você torce? — Ed pergunta, apoiando seus cotovelos nos joelhos.
— Na verdade eu não gosto de futebol — Alexander responde meio tímido.
— Tem certa que você é de Newdawn? — Ed responde com ironia, abrindo um sorriso, enquanto July bate a palma da mão em sua testa, envergonhada. Alexander apenas fica em silêncio, indiferente.
O trem diminui sua velocidade aos poucos, parando na estação. O trio se levanta e pega suas bagagens, três mochilas e duas bolsas de mão. Ao descerem, eles caminham pela plataforma em meio a multidão de transeuntes e a algazarra habitual das estações de trem, e minutos depois encontram Emily. Ela estava bem diferente do habitual, usava roupas leves e casuais, tinha cortado seu cabelo num modelo chanel bagunçado bem mais curto e volumoso do que a versão anterior, além de reduzido num tom de cor mais claro e vibrante. Também tinha consigo uma bengala, que ela usava para evitar o peso do seu corpo sobre a perna baleada. Perna esta que agora ostentava uma cicatriz profunda e bem feia.
Emily acena para seus amigos e, ao vê-la, July e Alexander correm em direção a ela.
— Emily, eu estava morrendo de saudade de você — Alexander diz alegremente enquanto abraça sua parceira de missões, que cambaleia de leve para trás.
— Calma aí garoto, minha perna ainda dói um pouco — Emily lhe alerta, fazendo Alexander soltá-la com cuidado.
— Nossa, eu não sabia que você tinha voltado para o interior até o Alexander me contar — July comentou.
— Eu quis vir para cá me recuperar — Emily responde, observando sua perna esquerda e a cicatriz que havia ficado devido a operação para retirar a bala — Graças a Jah não foi nada muito grave — Ed se aproxima plácido — Quem é esse rapaz bonito?
— Esse é o Ed — July responde, tentando esconder o seu ciúme. Enquanto isso, a figura em questão acenou amigavelmente.
— Eu te falei dele — Alexander comenta, dando um toquezinho no ombro de Emily — É o moço que desvendou o mistério da menina de Myth.
— Sério?! Como ela tá?! — Emily pergunta, surpresa, mais preocupada com a situação de Ivana do que com o fato de um anônimo ter descoberto tudo sem dificuldades.
— Em casa, isso que importa — Ed evita entrar em mais detalhes.
— Ainda bem — Emily faz um gesto para que os demais lhe sigam e se vira devagar, apoiando-se na bengala — Vamos andando, a casa da minha avó é meio distante mas eu já providenciei uma carona.
***
Após pouco mais de meia hora percorrendo uma estreita estrada de terra falsa cheia de buracos e pedregulhos, um carro vermelho de um modelo bem antigo parou em frente a entrada da fazenda Starsky-Hutch, propriedade da família de Emily. O grupo desce e o carro vai embora, deixando Ed e July encantados com a natureza exuberante do local. O entorno da estrada possuía alguns arbustos dispostos de maneira uniforme na base de uma alta cerca de madeira e arame. Também havia diversas espécies de árvores, todas de grande porte, abrigando uma grande variedade de pássaros. Diante deles havia um pórtico com uma porteira larga logo abaixo. O clima estava relaxante, uma brisa fresca soprava timidamente em meio ao canto dos pássaros e aos ruídos de pequenos animais que corriam pelo matagal quase denso do outro lado da estrada.
Alexander ajudou Emily a abrir a porteira e o grupo adentrou na fazenda, atraindo a atenção de um cachorro vira-lata caramelo que logo veio até eles, pulando e latindo com imensa animação. July acariciou o cachorro, que se chamava Scott, e em seguida olhou em volta. Eles estavam ao pé de uma pequena colina de leve inclinação, recoberta por um tapete de grama curta. A cerca de madeira e arame se estendia por trás deles por quase oitocentos metros antes de desaparecer por trás de uma volumosa mangueira cercada por outras árvores frutíferas, e nos galhos dessa mangueira havia um balanço improvisado, logo abaixo havia troncos caídos e organizados numa roda média.
A casa da fazenda ficava no topo da colina, e um caminho de tijolos enterrados ao solo se estendia através do gramado da casa à porteira. A casa era uma construção bastante grande, com paredes de alvenaria pintadas de amarelo e teto de telhas, também havia um amplo alpendre que contornava todo o entorno. Ali haviam tantas plantas quanto nos seus arredores, onde vasos se confundiam com samambaias penduradas nas paredes ao lado de redes coloridas. Scott correu para debaixo de uma mesa, onde se estirou no chão e começou a roer um osso de carneiro, enquanto Emily e seus amigos entraram. Lá dentro, o ambiente era bastante simples mas ainda agradável, sem grandes adornos ou decorações. A entrada levava para uma sala com uma estante que comportava uma televisão antiga diante de um velho sofá cheio de remendos e duas poltronas giratórias, e diversos retratos pintados de familiares Starsky-Hutch se encontram nas paredes em volta. Dali havia uma passagem sem porta para uma cozinha um pouco menor que a sala, onde havia um fogão e ao lado uma bancada com diversos eletrodomésticos e uma pia na ponta, também haviam prateleiras nas paredes com panelas, utensílios de cozinha e a baixela da residência. Da cozinha havia uma passagem para um corredor que levava em direção aos quartos, banheiros e aos fundos do terreno.
— Vó, já chegamos! — Emily anunciou enquanto se jogava no sofá, e uma senhora idosa, com mechas escuras em meio ao cabelo branco, físico baixinho e rechonchudo, usando óculos redondos e um vestido florido de saia longa, saiu da cozinha.
— Olá, senhora Starsky-Hutch — Alexander a cumprimentou, era nítido que eles já se conheciam.
— Não precisa ser tão cordial, Alexander — A idosa falou — Você sabe muito bem que já faz mais de quinze anos que não sou mais senhora.
— É pura força do hábito — Alexander disse enquanto coçava a parte de trás de sua cabeça.
— Essa é a July e o amigo dela, Ed — Emily disse enquanto July e Ed acenam e a senhorita Starsky-Hutch os cumprimenta — Cadê aquele vagabundo do Archibald?
— Não seja tão rude com o seu irmão — A idosa lhe repreende, em seguida Emily levanta uma das mãos em defensiva — Mandei o Archie ir no mercado comprar peixe, vou preparar um jantar especial para vocês.
— Vocês vão adorar — Alexander comemora, imaginando de olhos fechados as maravilhas culinárias que lhe aguardam mais tarde — A senhorita Starsky-Hutch é uma cozinheira de mão cheia — July e Ed se entreolham cheios de curiosidade.
— Se vocês forem para a praia melhor se aprontarem, o Cajueiro já vai passar — A idosa diz enquanto aponta para eles e em seguida volta para a cozinha.
— Vem July, vou te mostrar o meu quarto — Emily se levantou do sofá com a ajuda de sua bengala. Enquanto isso, Ed correu para o banheiro, deixando sua bagagem na sala.
— Eu já deixei tudo separado, vou só trocar de roupa mas antes vou dar uma volta no terreno — July entregou sua mochila e sua bolsa para Emily.
— Tá bom — Emily olhou para trás, procurando ansiosamente alguma coisa na sala — Alexander! Me ajude aqui!
July caminhou pelo corredor observando os quadros nas paredes e os vários vasos de plantas, deixando para trás um desastrado Alexander carregando três mochilas, duas bolsas e a própria Emily, que não parava de falar sobre o quanto ele era prestativo enquanto se arrastava com a bengala. Mesmo machucada ela ainda era rápida como um raio, e Alexander tinha que ficar lhe alertando sempre que Emily parecia esbarrar em algo acidentalmente.
July atravessou a porta dos fundos e chegou em outra parte do pátio do alpendre, Scott já estava lá, latindo e correndo em volta dela como se quisesse lhe levar em algum lugar. July acariciou o cachorro e o seguiu até o jardim dos fundos, com muito mais flores, orquídeas e plantas ornamentais, além de mais algumas árvores decorativas, e ela imaginou que a humilde estufa de Ed seria assim se fosse a céu aberto. Ao longo do jardim havia um pequeno pátio aberto cercado por um muro baixo ornamentado em semicírculo que atingia a altura do quadril de July, feito com pedregulhos cinzentos recobertos com hera. Ela se apoiou na mureta e olhou para baixo, e então percebeu que aquele espaço no jardim dos fundos na verdade era um mirante. O panorama do horizonte era deslumbrante, dali de cima dava para ter uma bela vista de toda extensão das planícies interioranas e de toda sua riqueza ecológica, com bosques, riachos, vales, campinas e, bem mais distante de tudo, o que parecia ser o mar.
A natureza dançando livremente em torno de July lhe encheu de inspiração, ela fechou os olhos e respirou fundo, sentindo o cheiro de café fresco vir direto da cozinha junto com uma agradável fragrância de terra molhada vindo das beiras dos riachos lá embaixo. O vento soprava em seus cabelos, e ela conseguia ouvir, em meio a orquestra de pássaros e insetos, até mesmo o som das folhas caindo no quintal. Mas foi justamente um som estranho que lhe fez despertar do devaneio. Ela ouviu passos duros e pesados e o barulho de varetas metálicas se colidindo que lhe assustaram e lhe fizeram encarar um túnel estreito ao seu lado direito, bem nos limites do terreno, cercado por árvores maiores e mais próximas entre si, como se fossem uma única muralha viva.
Cautelosamente, July caminhou através do túnel e chegou em outro mirante muito parecido com aquele que ela estava antes. Ela havia chegado na propriedade vizinha, e lá encontrou dois homens vestindo trajes de esgrima e empunhando floretes. Um dos esgrimistas brincava com o florete em sua mão, despreocupado e debochado, com o vocabulário cheio de tabuísmos, enquanto o outro havia largado sua arma e analisava um rasgo no seu traje na altura do abdômen. Junto deles estava uma garota sentada sobre a mureta do mirante, penteando seus cabelos, indiferente a todo resto.
— Ei, é só para encostar e não para machucar! — O homem sem arma dizia, irritado, de forma tão vulgar quanto a do seu companheiro. Ele retira sua máscara e July sente o mais terrível dos medos tomar conta do seu corpo, ele era Max Williams. July ainda pensou em correr, mas já era tarde, o monstro no mirante já havia percebido sua presença — Olha só quem chegou — Max aponta para July, fazendo o outro esgrimista olhar em sua direção e tirar uma máscara, esse era Leonard Roberts. A garota indiferente, obviamente Lollipop, nem sequer se deu ao trabalho de virar o rosto.
July permaneceu calada, com os punhos cerrados e de cara fechada tentando mascarar seu medo. Ela só se permitiu relaxar quando ouviu uma voz familiar surgir através do túnel arborizado.
— July, eu acho que... — Ed veio andando e parou ao lado da garota, seu rosto se encheu de repugnância ao ver seu irmão. Ele cerrou os punhos e começou a apertar com força, sentindo suas unhas se enterrarem nas palmas de suas mãos — Leonard.
— Olá Ed, que milagre, você por aqui? — Leonard disse com ironia, encarando Ed e abrindo um sorriso maligno após suas palavras.
— Tá fazendo o que aqui? — Edmond perguntou seriamente, em alto e bom som.
— Nada demais — Leonard ficava cada vez mais ácido a cada palavra — Não posso mais trazer meu melhor amigo e minha namorada para viajar no interior? — Max o encarou com uma expressão confusa, contraindo as sobrancelhas.
— Vamos embora — July sussurrou para Ed e se voltou em direção ao túnel.
— Eu tô de olho em vocês — Ed disse friamente enquanto apontava para a dupla maligna. Quando Ed e July se afastaram, Leonard e Max entreolharam-se e riram da situação. Lollipop observou alguns pássaros voando no horizonte, naquele dia a única coisa que ela conseguia sentir era tristeza.
***
Momentos mais tarde, o grupo de visitantes havia trocado suas roupas. July usava um maiô listrado com um calção de cordão por cima junto com um grande chapéu de palha e goggles especiais com lentes escuras que refletiam os raios ultravioleta do sol, enquanto Ed e Alexander vestiam camisas de botão e bermudas de tecido fino. Emily continuava com as mesmas roupas de antes, e todos usavam algo que não era tão comum no centro de Newdawn, chinelos. Eles saíram da fazenda, carregando as bolsas de mão, e atravessaram a porteira logo depois que Archibald, um rapaz pálido, magro, de rosto fino e cabelo ondulado na altura dos ombros, e que só anda sem camisa por motivo algum, entrou com sua bicicleta e um saco de compras.
Após uns dez minutos esperando na estrada estreita, três caminhonetes se aproximaram. Nas caçambas dos veículos havia comboios cobertos com lona e com bancos dentro. Emily aproximou-se da primeira caminhonete e um homem negro se inclinou para fora através da janela.
— Esse é o Cajueiro, ele dá uma carona pra galera que quer ir a praia — Emily diz para seus amigos, e em seguida vira-se para o motorista — Tem vaga para quatro?
— Tem sim — O motorista respondeu, apontando para a última caminhonete — Lá atrás.
Emily guiou seu grupo até a traseira da última caminhonete e encontraram uma abertura na lona. Lá dentro havia mais cinco jovens que ajudaram Emily a subir, e os demais embarcaram em seguida. As caminhonetes voltaram a andar, percorrendo a estrada e atravessando uma vila com pequenas casas coloridas. No caminho, Emily comentava com os demais passageiros, todos conhecidos das fazendas próximas, talvez amigos de escola, sobre o tiro que ela havia tomado algumas semanas antes, e ela nem cogitava a possibilidade de tratar isso como uma tragédia, sempre mantinha o bom humor. As caminhonetes pararam em frente a uma grande cabana de madeira com teto de palha, adornadas com estátuas de madeira em estilo havaiano, onde os passageiros desembarcaram.
— Pego vocês aqui às seis da tarde — O Cajueiro disse antes das caminhonetes irem embora.
Agora eles estavam em um calçadão de ladrilhos coloridos paralelo a faixa de areia por onde caminhavam diversas pessoas, a maioria delas usava chapéus de palha, sombreiros, os goggles de lentes escuras e maiôs listrados ou com estampas xadrez, mas ainda dava para encontrar um ou outro turista trajando biquínis de diferentes estilos por aí. O sol forte, a brisa litorânea e a variação da paleta de cores do local deixam no ar uma sensação de agitação.
Emily havia crescido ali, Alexander já conhecia a praia de Newdawn, e com certeza Ed já havia ido a algum lugar parecido em outra cidade flutuante, mas July nunca havia ido para a praia antes. Ela deu uma boa olhada na cabana, e percebeu que era na verdade uma fusão de restaurante, loja e bar, e que haviam várias outras por toda extensão do calçadão. Atrás deles havia as ruas simplórias da vila.
— Ele sempre traz o pessoal para essa barraca por ser a mais famosa, mas eu conheço uma melhor. Sigam-me — Emily os levou até um ponto menos movimentado onde o calçadão era tomado completamente pela areia e pela terra batida. As barracas haviam ficado para trás e a mais próxima ficava a uns oitocentos metros a frente, bem menor do que as outras mas ainda no mesmo estilo. Agora eles estavam no topo de uma falésia com cinco metros de altura, de areia rubra com escarpas profundas, formada por dois paredões e uma rampa íngreme de areia entre eles.
— E agora para descer? — Alexander pergunta.
— Descer é o mais fácil — Cautelosamente, Emily se posicionou na ponta da rampa, se sentou no chão e escorregou até lá embaixo com os joelhos flexionados, nem parecia que estava machucada. Os demais se entreolham e fazem o mesmo em seguida, com July tendo mais dificuldade e precisando se segurar nos paredões para não despencar de uma vez. Lá embaixo eles tinham uma vista privilegiada do mar e das ondas perfeitas quebrando na areia cheia de pequenas pedras. O que mais chamou atenção foi o fato desse mar ter uma coloração azul escura, quase verde e a meio quilômetro mar adentro havia grandes cercas gradeadas como as que separam a extremidade do Calçadão da imensidão celeste em torno da cidade. O grupo continuou caminhando ao pé das falésias, e logo em seguida perceberam que havia uma escada feita de tábuas de madeira ao lado de onde eles haviam escorregado — O que foi? Do meu jeito é mais divertido — Emily disse em defensiva ao perceber que seus amigos lhe encaravam com raiva ao avistarem a escada.
— Eu nem sabia que Newdawn tinha uma praia — July comenta enquanto seu grupo continua a caminhada — Como que o mar chega até aqui?
— Não é o mar de verdade — Emily explica — O interior foi projetado para camuflar uma nova usina subterrânea de tratamento de água depois que a da cidade foi desativada, todos os canais e encanamentos da cidade vem parar aqui através dos "riachos" nas colinas e, depois de tratada e filtrada, a água volta a ser distribuída pela cidade. Logo perceberam que as bombas hidráulicas formavam o efeito de ondas na água empoçada acima da usina e decidiram criar essa praia artificial — Emily aponta para as grades em meio às ondas — Aquela barreira impede que os banhistas se aproximem das bombas e acabem ficando presos nelas.
— Pera aí, então é um mar de merda? — July se contorce de nojo ao imaginar isso.
— Às vezes sim, mas com o tempo investiram muito na limpeza e ocupação dessa represa, ao longo da costa existem até mesmo fazendas dedicadas à engenharia de pesca. Como ninguém nunca soube se os peixes lá embaixo são comestíveis, a melhor opção foi tentar recriar os peixes de antigamente — Emily ri ao ver July com ainda mais nojo. Eles se aproximaram da barraca menor, o que a destacava das demais era o fato dessa ser suspensa dois metros e meio acima da faixa de areia por vigas de madeira maciça. Abaixo da barraca e em seu entorno, várias pessoas relaxavam em cadeiras inclinadas, algumas com guarda-sóis coloridos, ou corriam pela areia em direção ao mar, sendo vigiados por um pequeno grupo de salva-vidas. Enquanto isso, quatro grandes caixas de som no topo da barraca tocavam canções de reggae — Agora vão lá se divertir, deixa que eu vigio as bolsas — Emily disse, sentando-se em um das cadeiras inclinadas à sombra da barraca suspensa e acomodando a perna baleada. Ela retirou sua camisa, revelando um biquini alaranjado, e pegou para si os goggles especiais de July. Em seguida acendeu um charuto.
July jogou seu chapéu de palha sobre Emily e tirou seu calção, ficando apenas com o maiô, mas extremamente tímida ao ver Ed e Alexander desabotoando suas camisas. Ela ainda se admirava com o físico perfeito de Ed, e não esperava que Alexander tivesse um corpo do mesmo nível, apesar de nitidamente um pouco mais gordo. Quando Alexander levantou seus braços para se alongar, July reparou que ele tinha uma tatuagem nas costas, logo abaixo da nuca, um par de asas negras adornadas por estrelas e uma lua minguante logo acima.
De mãos dadas, os três correram em direção ao mar artificial. Apesar do sol forte, a temperatura da água ainda era gelada, num nível agradável. Sentir a água do mar encobrir seus pés enquanto avançava pela areia foi uma sensação verdadeiramente revigorante para July, se ela tinha algum resquício de estresse, ansiedade ou angústia dos eventos anteriores com piratas e com Max Williams, tudo havia ficado para trás, sendo carregado por aquela maré rítmica e constante. Ela permaneceu parada na margem da faixa de areia por um tempo, observando Ed se abaixar sobre a água e realizar uma oração mythidiana enquanto molhava suas mãos e sua testa, e Alexander ia cada vez mais longe mar adentro, mergulhando sempre que uma onda maior se aproximava.
— Jah é maravilhoso — July comentou consigo mesma enquanto sentia a nostalgia relaxante provocada pelo vento batendo suavemente em seu rosto.
— É mesmo, mas é bom tomar cuidado — Um dos salva-vidas lhe disse, se aproximando — Isso aqui tá cheio de buracos. E tem um dos grandes por ali — O salva-vidas apontou para um ponto à esquerda de onde eles estavam.
— Pode deixar — July respondeu e o salva-vidas se afastou após um comprimento.
— O que foi? — Ed perguntou enquanto se aproximava de July.
— Nada demais, só me avisaram para tomar cuidado com a água — Em seguida, Ed e July caminham lentamente através do mar.
Ela ainda estava um pouco amedrontada com a força das ondas, mas continuou prosseguindo ao ser encorajada por Ed. Eles pararam num ponto onde a água batia perto de seus quadris e ficaram brincando na água. Momentos depois, July acaba tropeçando num pequeno buraco na areia e teria caído se Ed não tivesse lhe segurado.
— Tô vendo aí o seu cuidado — Eles riram juntos enquanto Ed ajudava July a se equilibrar.
O mundo se tornou cada vez mais distante quando July percebeu o quanto os olhos castanhos de Ed ficavam ainda mais lindos em contraste com o mar, o sol e o céu. Ed também viu-se fascinado pela pele levemente corada que July apresentava naqueles dias. Esses sentimentos geraram uma vibrante onda de fixação que os embalou como num transe, e ficou ainda mais forte quando eles perceberam estarem perto o suficiente um do outro para repararem em todos os mínimos detalhes de seus corpos, e se aproximavam cada vez mais ao ponto de conseguirem distinguir os seus ritmos cardíacos e respiratórios. E continuaram assim por alguns segundos, sem perceberem que o mar recuava violentamente puxando tudo consigo, até serem interrompidos por um grito de Alexander.
— Cuidado! — Os gritos de Alexander lhes chamaram a atenção, e quando olharam em sua direção, Ed e July viram a maior onda que eles já tinham visto na vida.
Talvez produzida por alguma falha mecânica ou por algum capricho da altitude, a onda devia ter no máximo um pouco mais de dois metros e meio, mas vinha numa velocidade alta o suficiente para assustar os banhistas. Algumas pessoas corriam para fora da água, mas Ed e July não tiveram a mesma sorte, muito menos Alexander, que já vinha sendo carregado pelo paredão líquido há alguns metros. July não viu quando a onda quebrou por cima dela e a imensa massa de água lhe derrubou junto com Ed. A força das águas a arrastou pela areia enquanto ela tentava se agarrar em algo ou alguém, em vão. Enquanto se esforçava para prender a respiração, não engolir água e manter os olhos fechados e livres da areia que insistia em entrar, July viu Ed e Alexander passarem por ela e serem puxados por um fosso submerso, com quase dois metros de profundidade, mas que no auge do desespero aquático parecia ser ainda mais fundo.
As águas se acalmaram e July pôde reorganizar seus pensamentos, eles deviam estar naquele buraco que o salva-vidas lhe alertou antes. Ed e Alexander estavam bem diante dela. Mostrando-se um excelente nadador, Alexander alcançou a superfície nadando de maneira rítmica e ágil, e, ao ver a ação do policial, Ed fez o mesmo. July até tentou lhes acompanhar, mas por algum motivo, falta de ar ou de prática no nado talvez, July nem mesmo saiu do lugar, e continuou afundando. Antes de emergir, Ed olhou para os lados e para baixo em busca de July, e a viu se debatendo perto do fundo daquele buraco submarino. Ele subiu até a superfície, recobrou seu fôlego, viu Alexander correndo em direção aos salva-vidas e mergulhou novamente, impulsionando seu corpo em direção à July. Ed se agarrou na garota e voltou a nadar, mas ela já começava a perder a consciência e seu corpo pesava, lhe arrastando de volta ao fundo do buraco. Ed esticou sua mão em direção a superfície, faltava menos de um palmo para se salvarem, e no último momento, quando tudo parecia perdido, ele sentiu sua mão ser agarrada pelo salva-vidas.
Instantes depois, eles já estavam sãos e salvos na areia. Ed e Alexander conversavam enquanto observavam o salva-vidas ajudar July a se recompor. Ela estava tonta e toda suja de areia, tossia muito devido a água que engolira, havia arranhões em seus joelhos e cotovelos, seus olhos estavam irritados e sua cabeça doía muito.
— Eu bem que avisei — O salva-vidas disse quando July abriu os olhos e se sentou na areia, um pouco desorientada — Se não sabe nadar nem entra na água! — O salva-vidas acena para os rapazes e se afasta.
— Gente! — Emily veio cambaleando, tentando correr, e acabou caindo. Ela já odiava andar na areia, e odiava mais ainda ter que andar na areia com a perna machucada — O que foi aquilo? Vocês estão bem? — Alexander lhe ajudou a se levantar.
— Não foi nada demais, foi só um susto — Ed respondeu, tentando tranquilizar os ânimos.
— Eu nem queria entrar no "mar" mesmo — July resmunga como uma criança, encolhida na areia, escondendo seu rosto entre os joelhos dobrados.
— Deixa de besteira, essas coisas acontecem, e você nunca vai perder o medo do mar se não encarar ele — Emily disse, apoiando-se no ombro esquerdo de Alexander.
— Eu não tenho medo de coisa nenhuma! — July retrucou, irritada.
— Então vamos voltar pra água — Ed faz um gesto de cabeça para Alexander e os rapazes se aproximam de July. Ed segura seus braços enquanto Alexander lhe agarra por trás e lhe levanta, mas no processo acaba esquecendo que Emily ainda estava apoiada nele.
— Ei! — Emily reclama ao cair novamente na areia.
Ed e Alexander arrastam July de volta para a água enquanto ela se esbravejava, mas não de pânico como alguns minutos antes, agora ela ria enquanto gritava para lhe soltar. A brincadeira dos rapazes acaba chamando a atenção do salva-vidas, que os repreendeu com um olhar severo por baixo dos goggles de lentes escuras. Alexander, com um sorriso no rosto, solta July, e ela se agarra a Ed antes de se desequilibrar. As águas do mar avançam novamente sobre seus pés, delicadamente, e July se permite novamente saborear daquela beleza oceânica, agora ainda mais bela estando abraçada com Ed, e tendo ao seu lado um Alexander internamente corroído de ciúme.
— O mar é nosso amigo — Ed dizia — E agora estamos rodeados por muitos amigos — E foi assim até uma bola de areia atingir o quadril de July.
O trio olha para trás e encontram Max e Leonard, também sem camisa e usando bermudas listradas, rindo deles com as mãos cheias de bolotas de areia molhada. Atrás deles estava Lollipop, usando um biquíni preto, e ainda indiferente. July se soltou de Ed com um empurrão, juntou um pouco de areia na mão e jogou com ódio em direção a dupla maligna, acertando Leonard na barriga, que revidou atirando mais uma bola de areia contra o seu rosto, mas que acabou acertando no rosto de Edmond. Em seguida começou um verdadeiro bombardeio praiano, com as duas duplas atirando bolas de areia molhada uns nos outros, a maioria caiu na água, mas uma quantidade suficiente acertou os participantes para lhes sujar por completo. Até Alexander, que nem havia sido atingido ainda, entrou na brincadeira, enquanto Emily, deitada de bruços na areia, ria tanto que se contorcia. Porém, com o avanço do jogo, Ed já começava a se aborrecer. Ele se abaixou por um momento, juntando a maior bola de areia que conseguiu, e depois atirou contra Leonard e Max, que se jogaram na água ao verem uma massa escura e molenga vir em sua direção. O tiro acabou acertando na distraída Lollipop, enchendo seu rosto com uma explosão fétida e melequenta.
— Que nojo! Tem alga no meu cabelo! — Lollipop reclamou enquanto tirava a composição suspeita de seus olhos e boca.
— Ei Lollipop, eu acho que isso não é alga — Max pontuou em meio a uma risada.
— Que inferno! — Lollipop se dirigiu em passos brutos até um banheiro perto da barraca.
Ed pigarreou, chamando a atenção de Leonard e Max. Eles saíram correndo ao verem as mãos de Ed cheias da mesma coisa de antes. Na areia, Emily continuava rindo, como se não risse há muito tempo.
***
Ao fim da tarde, o grupo retornou à fazenda com o Cajueiro. Já estava escuro quando eles chegaram, e a senhora Starsky-Hutch organizou o jantar sobre a mesa. O peixe comprado por Archibald agora estava frito e adornado numa bandeja de prata com salada tropical e batata frita, e estava delicioso. Arroz e moqueca também acompanharam o prato, além de uma porção de iscas de peixe. Enquanto a refeição era devorada acima da mesa, Scott se deliciava com a xepa logo abaixo.
Após o jantar, o grupo se estirou num semicírculo no pátio do alpendre, enrolados em cobertores para se protegerem do frio daquela noite repleta de estrelas. Emily dividia um sofá velho de dois lugares com Alexander, descansando sua cabeça naqueles ombros negros que tanto a apoiaram desde que se conheceram, enquanto July estava deitada em uma rede e Ed no chão, apoiado em travesseiros. Já Archibald brincava no gramado com o travesso Scott, jogando uma bolinha para o cão buscar de volta.
— Então a multidão continuou a ressoar o mesmo hino infernal, e todas as vozes bradaram em uníssono: Mito! Mito! Mito! — Ed narrava enquanto forçava uma entonação fantasmagórica em sua voz. July era a única comovida com a história de terror que ele contava, e se arrepiava a cada palavra, enquanto Emily e Alexander demonstravam estarem apenas entediados — A jovem repórter desligou a televisão e saiu para a rua, encontrando uma noite escura como essa, e ao fim da rua ela viu, vindo em sua direção... Dois caras numa moto! — Ao final da história, July se escondeu embaixo das cobertas que a acompanhavam. Um breve vendaval noturno balançou as árvores.
— Que história horrível! — Emily disse com desprezo.
— Bom, antigamente essas coisas faziam algumas pessoas morrerem de medo — Ed tentou se explicar, um pouco sem jeito, e arrumou os travesseiros embaixo da cabeça.
— Depois dessa eu vou ao banheiro — Alexander se levantou e entrou na casa. Instantes depois ele voltou ao alpendre, trazendo consigo um violão velho — Olha só o que eu achei — Alexander se senta ao lado de Emily e começa a afinar as cordas, tocando alguns acordes.
— Você ainda lembra como se toca aquela canção que a gente gostava? — Emily lhe pergunta.
— Nunca esqueci — Alexander respondeu em meio a um sorriso.
Alexander começou a arriscar alguns acordes até acertar o ritmo e a melodia certa. Em seguida, após alguns instantes de preparação vocal e respiração, Emily começa a cantar a composição, capturando July e Ed com a sua voz poderosa. July já conhecia aquela música sobre os altos e baixos de um relacionamento, ela lembrava o quanto o ritmo era agressivo, mas tudo ficava mais suave na voz angelical de Emily.
— Não era intenção me entregar fácil assim, porque eu prefiro ter paz do que ter razão — Alexander acompanhou Emily durante a repetição da última estrofe como uma voz de fundo — A gente briga, chora, discute mas se ama. Faz parte, faz parte... A vida a dois é um esporte — Scott também parecia acompanhar o refrão com seus uivos.
— Quem te ensinou a cantar assim? — July perguntou, repleta de curiosidade, após o fim da canção.
— Minha mãe — Emily pareceu ficar nostálgica por um momento, com o olhar vago — Ela foi pra cidade grande em busca de emprego enquanto eu crescia aqui com o Archibald e minha avó — Scott percorreu o alpendre e sentou ao seu lado, lhe encarando com seus olhos redondos e curiosos — E com você também, garotão — Emily acariciou o cachorro, que repousou a cabeça em seu colo — De vez em quando visitava a gente, acho que eu só escolhi ser policial na cidade para ficar mais perto dela, mas quando cheguei lá nunca mais a encontrei. E eu nunca conheci meu pai. Às vezes acho que meu pai é o Cajueiro.
— O que!? — Alexander perguntou, meio que com repulsa da suposição — Nada haver!
— Eu não me surpreenderia se fosse — Emily rebateu — Ele me ama.
— Uhum, sei... — Após esse comentário de Alexander, July riu da discussão daquela dupla divertida.
— E você, July? — Emily olhou em direção a garota deitada na rede — Me fala sobre sua família.
— Bom, eu moro com meu pai — July também se sentiu nostálgica, encarando o piso do alpendre — E a minha mãe morreu quando eu ainda era muito nova. Dizem que ela se machucou numa apresentação e não conseguiria mais viver sem dançar. Isso sempre me inspirou a seguir seus passos no balé. Quando eu danço é como se minha mãe também dançasse dentro de mim.
— Isso é maravilhoso — Ed comentou.
— Sua vez, Alexander — July apontou para ele enquanto falava.
— Os meus pais vieram de uma cidade bem pequena chamada Eureka, é uma das menores e menos importantes das cidades flutuantes do novo mundo — Alexander começou sua narrativa — Eu nasci aqui em Newdawn, e eles sempre cuidaram de mim. Eu vivo com eles até hoje e agora é minha vez de cuidar deles — Alexander olhou em direção a Ed — Sua vez.
— O Ed não gosta muito de falar disso... — July disse meio constrangida.
— Não — Ed a interrompeu, apático — Um segredo só é assim tão cruel justamente por ser um segredo. Quando você conta para alguém, tudo fica mais leve. Fica mais fácil carregar o fardo de um destino que eu não posso evitar — Ed encarou Emily e Alexander — Eu sou Edmond Roberts, o herdeiro legítimo do ministério — Os olhos dos policiais se arregalaram com as palavras de Ed, mesmo Alexander já suspeitando disso depois do episódio na casa incendiada, algo que sumiu no tumulto que eram as suas memórias sempre dispersas — Meus pais morreram num acidente com uma locomotiva, o mesmo que custou meu braço, quatro anos atrás. E eu creio que foi tudo premeditado por meu irmão, aquele monstro viciado em poder.
— Aquele cara arrogante de cabelo lambido que tava na praia hoje? — Emily deduziu, e Ed confirmou balançando a cabeça.
— É complicado, mas eu já aprendi a lidar com ele — Ed relaxou seu corpo sobre os travesseiros — Quanto mais longe eu deixar ele do ministério, melhor.
— Se você diz, tudo bem — Emily se levantou da poltrona apoiando-se na bengala — Mas sério, se você precisar de uma segurança particular já sabe como me encontrar.
— E pode contar comigo também — completou Alexander — E sobre aquele dia eu...
— Não precisa falar nada, Alexander, eu que tenho que me desculpar. Confesso que naquele dia eu me exaltei um pouco — Ed endireitou seu corpo — Valeu pessoal, vou retribuir como for possível. Ser um bom companheiro sempre foi mais importante para mim do que qualquer cargo político. É assim que eu quero ser lembrado, como alguém que sempre se importou com os outros por vontade própria, não por obrigação de ofício — Ed se levanta e junta os travesseiros — Agora eu vou indo dormir. Boa noite para vocês.
— Também vou — Emily disse. Após alguns passos rastejantes, Ed oferece seu braço para ela se apoiar. Eles entram na casa, seguidos por Archibald e o cachorro, e as luzes da sala se apagam. July e Alexander, sozinhos no alpendre, se encaram por uns momentos e observam o silêncio do ambiente, muito diferente da agitação cotidiana das noites do Calçadão.
— July, eu preciso te confessar uma coisa — Alexander praticamente cuspiu as palavras, falando meio rápido enquanto enrijece seu corpo na poltrona. A garota lhe encarou, confusa — Eu gosto de você. Gosto muito mesmo, desde a primeira vez que eu te vi naquela festa. Eu gosto de te ter por perto, de conversar com você, e gosto do jeito como você sempre foi legal comigo, como você me entende, e você nem imagina o medo que eu senti naquele dia que eu te salvei, eu pensava que iria te perder pra sempre ali... Enfim, eu gosto muito mesmo de você, July Harmond.
As palavras de Alexander lhe encheram de ansiedade, ele não sabia como ela reagiria, e mesmo atenta a cada palavra, July não transpareceu surpresa, gratidão, ou mesmo algo recíproco em relação aos seus sentimentos. Em menos de um segundo a mente de Alexander se tornou um turbilhão de possibilidades, martelando em seu íntimo tudo que poderia dar certo e tudo que poderia dar errado. Alexander sempre foi intenso, mas sempre em seu interior, algo que lhe sufocava diariamente.
July se sentou na rede e respirou fundo, por fim respondeu.
— Alexander, eu também gosto de você — O turbilhão sentimental na mente do rapaz se transformou numa chuva de fogos de artifício de felicidade — Mas eu amo o Ed — Essa afirmação fez July se sentir como se tirasse um grande peso das costas. Era difícil ser sincero em meio a tantas incertezas mal definidas — E você tem a Emily — Os fogos se apagaram numa explosão de melancolia que o deixou deprimido.
— Eu gosto mesmo da Emily, mas não acho que ela goste de mim da mesma forma — Ele disse, cabisbaixo.
— Como não? Ela gosta de você, precisa de você, e mostra isso do jeito dela. Pode não parecer, mas é a mais pura verdade e você sabe disso — July lhe explicou, sentando ao seu lado no sofá e arrumando a saia sobre os joelhos — Ela me contou sobre o tiro. Ninguém se arrisca para proteger alguém que não lhe importa.
— Você tem razão — Alexander responde. Em seguida, ele encara July enquanto se inclina lentamente em direção a ela. July, por sua vez, lhe afasta delicadamente.
— Desculpa, mas não vai... — July se levanta, sentindo seu corpo ser tomado pela vergonha — Com licença.
Envergonhada, July correu para dentro da casa, seus passos apressados ecoaram no silêncio noturno da fazenda. Sozinho, Alexander observou o gramado em volta da casa e percebeu que não conseguia ver nada além de uma imensidão escura, como se tudo ali fosse um único plano mal elaborado e disfarçado na escuridão. Era assim que Alexander se sentia, solitário, confuso, vago, e vazio, mas acima de tudo, carente. Tudo ao mesmo tempo, e tudo tão intenso de um modo angustiante.
***
No quarto, Emily estava acomodada confortavelmente em sua cama, revisando os conceitos de um livro do código penal sob a luz concentrada de um abajur. Todo seu foco na leitura foi pelos ares quando July entrou apressada no recinto, batendo a porta atrás dela. July se jogou na outra cama, o quarto tinha duas separadas por uma cômoda, e afundou sua cabeça no travesseiro, abafando seus gritos histéricos.
— Você tá bem? — Emily perguntou, fechando o seu livro e estranhando a situação.
— Eu tô muito indignada! Por que tudo tem que ser tão complicado?! — July levantou e começou a andar de um lado para o outro dentro do quarto — Principalmente quando é sobre garotos?
— Garotos? Como assim? — Emily ficou ainda mais confusa.
— O Alexander veio dizer que gosta de mim, mas eu não gosto dele do mesmo jeito. E eu amo o Ed! — Agora sim ela tinha certeza do que sentia, e repetia essa frase com toda convicção possível — Eu amo o Ed! — July se virou em direção a cama que Emily estava — E eu sei que ele gosta de você. Vocês deviam ficar juntos, são perfeitos um para o outro.
— Eu até gosto dele, mas não sei se daria certo. Eu sempre fiz de tudo pra me virar sozinha, não gostaria de ter um príncipe encantado me protegendo toda hora — Emily assumiu de forma lenta, como se suas palavras lhe incomodassem.
— Mas para ser independente a gente não pode ser feliz? Isso se você realmente quiser ter alguém... — A pergunta de July deixou Emily pensativa, fazendo-a ponderar por um momento.
— Tem razão! — Emily jogou o livro sobre a cômoda e se levantou. Ela caminhou até a porta e a abriu. Do outro lado já estava Alexander, balançando a perna ansiosamente.
— July, eu... — Alexander não teve tempo de terminar sua fala. Emily lhe puxou pela camisa e o arrastou pelo quarto, em seguida o jogou na cama e pulou por cima dele, começando a lhe beijar intensamente. Alexander a princípio se assustou, mas logo cedeu aos beijos de Emily e passou a lhe acompanhar.
Surpresa e constrangida com a cena, July saiu do quarto de fininho e fechou a porta.
***
No dia seguinte, era hora de voltar para a cidade e para a boa e velha rotina. July teve que dormir numa rede na sala já que nem Emily, nem Alexander, saíram do quarto depois que ela saiu de lá, e nem morta ela dormiria com Ed. Apesar do frio e do barulho de gatos rosnando no telhado, a noite foi tranquila, e ela acordou bem cedo na manhã seguinte. A senhora Starsky-Hutch havia acordado ainda mais cedo e July ajudou-a a pôr a mesa para o café da manhã caprichado, enquanto os seus amigos sonolentos apareciam pouco a pouco. Ela reparou que Alexander estava com um sorriso bobo no rosto, e logo percebeu que as coisas andavam bem entre ele e Emily, isso a fez suspirar aliviada.
O café foi tomado, as malas foram prontas e as roupas trocadas. Em instantes, o grupo se despediu da senhora Starsky-Hutch e começou a caminhar pela estrada em direção à estação de trem, sendo acompanhados por Archibald e pelo enérgico cachorro Scott. Após alguns minutos de caminhada, a linha férrea logo apareceu, seguindo por uma campina aberta ampla e arejada. Scott corria pela campina, perseguindo ratos cinzentos que se escondiam em grandes arbustos, enquanto os humanos caminhavam ao pé do trilho. Ed até mesmo tentava se equilibrar por cima dos trilhos sem cair.
A tranquilidade da caminhada acabou quando eles ouviram um grito grave os chamando. Ao se virarem, encontraram um zangado Leonard, um risonho Max Williams e a, ainda dispersa, Lollipop se aproximando.
— Bom dia irmãozinho, o dia não está adorável hoje? — Leonard dizia enquanto se aproximava de Edmond, forçando uma voz amigável — Por que não vamos todos juntos rumo à estação?
— Já tenho companhia — Ed respondeu sem vontade. Ao fundo, July sussurrou aos outros para ficarem alerta, ela mal tinha visto Leonard mas já sabia que ele podia ser imprevisível de tanto que Ed falava dele. Só então ela se tocou no quão estranho era encarar alguém que já havia lhe trazido vários problemas sem nunca ter lhe visto antes.
— Espera aí! Somos uma família, não somos? — Ed se virou e voltou a andar, e o Leonard segurou seu braço. Ele logo percebeu que o irmão pretendia lhe tirar do sério, e ele precisava ser racional, mas era impossível se controlar perto de Leonard. Antes de pensar normalmente, Ed já havia sido consumido pela raiva que sentia, e suas sobrancelhas começaram a se contrair.
— Leonard, você sabe muito bem. Me deixa em paz que eu te deixo em paz — Ed disse, tentando controlar sua raiva através da respiração.
— Devia ter pensado em paz antes de jogar um pedaço de bosta na minha namorada — Leonard extravasou sua raiva num soco que acertou o rosto de Ed em cheio quando ele se virou.
O golpe de Leonard derrubou Edmond sobre os trilhos, arrancando risos de Max e assustando Lollipop e os demais. Scott se enrijeceu e começou a latir, enquanto Archibald correu de volta a fazenda. Preocupada, July se aproximou de Ed, mas antes que ela pudesse fazer qualquer coisa, Ed se levantou num pulo e disparou contra Leonard com os punhos cerrados. Leonard segurou os punhos de Ed, que continuou se impulsionando, enquanto lhe encarava com uma tranquilidade assustadoramente fria.
— Você não passa de uma criancinha assustada, que tem medo de tudo! Tem medo do seu poder, tem medo de sua responsabilidade, você não serve para ser líder — Leonard o provocava, olhando bem fundo nos seus olhos.
— Eu não quero ser líder! — Ed proclamou enquanto rangia seus dentes.
— Então me der o seu direito de ministro principal, e eu vou pensar se te deixo vivo para assistir ao meu triunfo.
— Nunca!
Ed se soltou de Leonard com um empurrão e partiu para um soco vingador. Leonard se esquivou do golpe e agarrou Ed por trás. Num movimento rápido, passando suas pernas para trás das pernas de Leonard e forçando seu corpo para trás, Ed consegue se livrar do agarrão e derrubar Leonard nos trilhos. Ed pressiona seu joelho contra o peito de Leonard e começa a esmurrá-lo com vários socos no rosto. Os demais se aglomeram em volta, e Scott continua latindo.
— Ed! Para com isso! Por favor! — July implorava, mas nenhuma palavra conseguia superar a fúria de Edmond.
— Alexander, faz alguma coisa! — Emily ordenou.
— Ei, garota! — Alexander se aproximou de Lollipop com o seu dedo indicador apontado para o rosto da moça alheia, que lhe encarou confusa — Manda o seu namorado parar de balbúrdia agora mesmo!
— Eu não tenho nada haver com isso! Seu... — Lollipop respondeu irritada, também apontando seu indicador para o rosto de Alexander.
— Olha o jeito como fala comigo — Alexander a interrompeu, voltando a lhe apontar o indicador — Eu sou policial e posso te prender por desacato a autoridade.
— Alexander, ela não... — July tenta lhe alertar, mas se irrita ao ver Max agarrando seu braço. Ela arranca a bengala das mãos de Emily e começa a bater em Max com ela — Fica longe de mim seu demônio!
— Ei! — Emily reclama ao cair no chão novamente.
Um verdadeiro sururu se instaurou na campina. A confusão continua enquanto Ed e Leonard prosseguem no seu embate e Scott não para de latir. A algazarra cessa por um momento quando, quase, todos se assustam ao ouvirem um tiro. Olhando para a estrada, o grupo pôde ver Archibald chegando correndo com uma espingarda em mãos.
— O que pensa que está fazendo seu imbecil!? — Emily repreende Archibald quando ele se aproxima e dispara novamente para o alto.
— Sempre funcionou nas festas — Mas a empreitada de Archibald não surtiu nenhum efeito na briga entre os irmãos Roberts. Ed continuava a socar Leonard, que nesse ponto já havia desistido de reagir, mas não transparecia nenhum sinal de dor ou incômodo diante de seu rosto inchado e do sangramento nasal que se formava repentinamente.
— Me dê logo isso aqui! — Emily arranca a espingarda das mãos de Archibald, descarrega a arma e a usa como uma bengala improvisada, já que a sua ainda estava nas mãos de July.
— Ei! — Archibald tentou lhe chamar a atenção para algo, mas Emily estava distraída em seu discurso sobre o quanto ele foi imprudente e que alguém poderia ter se machucado, inclusive ela que já levou tiros o suficiente para uma vida, além de como esses estouros assustam o Scott, que a essa altura já estava despreocupado correndo atrás de um rato pela lama — Ei! — Archibald continuou insistindo — O trem tá vindo!
Archibald apontou para o ponto mais distante do trilho, e a silhueta de uma locomotiva já começava a crescer no horizonte. Nessa mesma hora, o apito soou, fazendo todos pularem para longe dos trilhos num impulso, menos Edmond. Agora todo mundo, até mesmo Lollipop e Max, num breve surto de humanidade, acompanhava o lamento desesperado de July na tentativa de chamar a atenção de Ed, mas ele só tinha ouvidos para o irmão, que imitava o som de um trem de forma infantil.
— Você se lembra? — Leonard perguntou com um sorriso largo no rosto. A ponta do seu nariz e seus lábios e dentes já estavam sujos de sangue, e um dos olhos estava levemente inchado. Ed, ainda mais furioso, agarrou o irmão pelo pescoço e começou a apertar com força — Se lembra do som de um descarrilamento?
As palavras de Leonard deixavam Ed cada vez mais irritado, evocando memórias sombrias guardadas no fundo de sua mente. Um registro psíquico do dia que seus pais morreram e de quando ele seu braço, tudo culpa de Leonard Roberts! Ele continuava apertando suas mãos contra o pescoço de seu irmão, seus amigos continuavam gritando e o trem se aproximava cada vez mais, com seu apito barulhento soando a todo instante. Mas a fúria se dissipou repentinamente e Ed percebeu que já tinha ido longe demais.
Num movimento rápido, Edmond rolou para a frente, ficando longe dos trilhos e agora por baixo de Leonard e, pressionando suas pernas, jogou-o numa pilha de barris à margem da estrada. July e os demais não viram esse golpe, pois foi no exato momento em que o trem passou. Eles só viram Ed, todo sujo de terra, se aproximando ainda irritado.
— Ei, Emily — Ele disse — Leva a gente para algum lugar que der pra pegar um táxi, deixa que eu pago — Ed agora observou a locomotiva se afastando, deixando aquela cena bélica para trás — Eu detesto trens.
— Alexander! Você esqueceu sua bagagem! — July comentou, devolvendo a bengala de Emily. O grupo voltou a caminhar, deixando o trio maligno para trás.
— É que eu não vou voltar com vocês — Alexander respondeu — Vou ficar com a Emily e voltar quando ela se recuperar.
— É, faz bem — July disse, arrancando um sorriso de casal de policiais.
Quando eles se afastaram, Max e Lollipop, retomando sua tristeza mascarada de indiferença, se aproximaram de Leonard, que ainda estava caído no meio dos barris.
— Se machucou? — Max perguntou, ajudando Leonard a se levantar. Leonard desabotoou sua blusa, revelando um colete escuro por baixo.
— Fibra indestrutível de Tesla — Leonard fechou a blusa novamente — Ele não feriu nem o meu orgulho.
— Só o seu rosto — Lollipop comentou, avaliando os machucados no rosto de Leonard.
— Relaxa princesa, aquele desgraçado ainda vai pagar por isso — Max completou, observando o grupo caminhando mais a frente, com Ed um pouco distante dos outros.
— E aqueles dois, quem são? — Leonard perguntou enquanto se alongava.
— Emily e Alexander, policiais, e esses são do tipo que você não vai conseguir comprar — Max respondeu.
— O que importa é que tudo está caminhando como o planejado. Vamos embora, tenho assuntos a tratar na cidade antes de pôr em prática a próxima etapa — Leonard ordenou, tomando a frente de seu grupo e dando alguns passos.
— Leonard, espera! — Lollipop o chamou, ela não tinha dado um passo sequer.
— O que foi agora? — Leonard e Max se viraram para ela.
— Eu não posso voltar — Lollipop disse cabisbaixa — Eu não tenho onde ficar.
— Como assim? — Os meninos perguntaram.
— O meu pai só ficou rico porque ele deu um golpe num cara — Lollipop explicou, se aproximando — Parece que aquela maluca pirata era filha desse cara e ela conseguiu recuperar o dinheiro roubado, a chave do cofre estava no meu relógio esse tempo todo. Eu não sei como, talvez estejam zangados comigo, mas os meus pais sumiram. Acho que fugiram, sei lá... — Lágrimas começaram a surgir no rosto dela — Eu tô perdida, Leonard, eu não sei o que fazer.
— Calma meu amor — Leonard disse, abraçando-a — Eu tenho um lugar onde você pode ficar.
***
Mais tarde, já na cidade, o casal desceu de um carro diante de uma grande mansão. Na frente da habitação havia uma praça alaranjada de tamanho médio, com uma grande fonte de bronze no centro, adornada por um jardim cercado cujas folhagens esbanjavam o tom de laranja vibrante. Toda a fachada da mansão era embelezada com estátuas de deidades mitológicas, seres angelicais e outros enfeites arquitetônicos, como pórticos, varandas e abóbadas, mas o elemento de maior destaque da fachada era uma majestosa placa arredondada com a figura de um tamanduá disposta sobre a porta principal. Aquela era a grandiosa sede da política de Newdawn, o Palácio Ministerial, e residência do ministro principal e de sua família.
Leonard guiou Lollipop através da mansão até um corredor onde havia uma grande porta dupla com dois guardas na frente. Ao verem Leonard, os guardas, mecanicamente, abriram as portas, revelando uma grande sala com um sofá circular marrom, largo e sem encosto, com vários outros bancos menores em volta sobre um carpete vermelho. O cômodo estava todo mobiliado, numa das pontas possuía uma cozinha completa mesclada com sala de jantar, enquanto na outra possuía um banheiro e um vestíbulo improvisado por um biombo floral.
— Você vai ficar aqui — Leonard disse, entrando na sala com Lollipop.
Leonard saiu da sala em silêncio, deixando Lollipop sozinha observando aquele local, que apesar de aconchegante, possuía algo de macabro. Quando Lollipop se virou e tentou sair da sala, os guardas apenas a empurraram de volta para dentro.
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