Capítulo 7 - Memórias na Cidade da Magia
A exaustão de July desapareceu no exato momento que Lollipop abriu-se para ela novamente. Assim, uma amizade infantojuvenil a tanto tempo esquecida ressurgiu novamente como se nada tivesse acontecido. Lollipop recolheu sua mochila, que tinha perdido em algum ponto da rua no meio da confusão e por um milagre ainda estava no mesmo lugar, e junto de July caminhou animada para a boate Closer, os braços entrelaçados uma na outra. No caminho, as garotas trocaram confidências, e conversaram sobre várias coisas, sobre piratas, sobre futebol, sobre moda, e sobre garotos.
Já próximas da boate, Lollipop perguntou:
— O que aconteceu com aquela outra? — Ela estava preocupada, apesar de não demonstrar claramente em meio a sua postura autoconfiante.
— A Roza? Levaram ela para um hospital, naquela hora eu liguei pro namorado dela — A verdade é que July nem mesmo sabia o que havia acontecido com Roza, e ela ainda não acreditava no que seus olhos haviam visto. A imagem de Roza despedaçada iria assombrar seus pesadelos por um bom tempo — Onde estamos? — July perguntou ao perceber que Lollipop havia parado de caminhar. Elas estavam alguns metros distantes da porta dos fundos da boate Closer.
Lollipop entrou na boate e July foi logo atrás, seguindo através de um corredor com luzes vermelhas que levava até uma sala com várias araras de roupas e espelhos. O local estava cheio de mulheres vestindo lingeries, se maquiando diante de espelhos e adornando seus corpos com todo tipo de acessório.
— Eu venho aqui dançar uma coisa que não se ensina na aula de balé — Lollipop sentou diante de um espelho e tirou um estojo de maquiagem da mochila — Chama-se pole dance.
— Você tira a roupa? — July pergunta curiosa, apesar de ser desconfortável imaginar alguém conhecido despido diante de estranhos.
— Claro que não! — Lollipop retruca meio ríspida — Eu só venho me apresentar aqui porquê nunca vou ser tão boa no balé como você... — Lollipop parecia cabisbaixa, mas ela interrompeu July antes que ela pudesse dizer qualquer coisa — Eu tentei mesmo te superar, te odiei por isso, e não consegui. Mas agora eu percebo que sou boa em outro tipo de dança, o público me adora. E tenho certeza que também vão adorar você.
— Você quer que eu dance com você? — July olha em volta — Aqui?
— Aqui não né, no palco — Lollipop responde com o tom de voz carregado de sarcasmo — Vamos, vai ser divertido — Ela se levanta e pega nas mãos de July — Por favor — July acaba cedendo e concorda balançando a cabeça, talvez uma última dança lhe ajude a se acalmar depois daquele dia estressante — Vem cá, deixa eu te maquiar para disfarçar isso — As garotas sentaram-se diante do espelho e Lollipop começou a passar delicadamente diferentes tipos de pó no rosto de July. O local atingido pelo soco de Roza havia se transformado num hematoma escuro, mas nada que Lollipop não pudesse ocultar com um pouco de criatividade.
Em instantes, as garotas estavam prontas. Lollipop vestia um macacão verde disposto de forma justa em seu corpo, usava uma maquiagem da mesma cor no rosto e frutas falsas na cabeça, em torno de um coque. Ao seu lado, July usava trajes de balé diferentes dos que ela estava acostumada, principalmente devido ao contraste das cores azul, dourada e preto, além dos desenhos que imitavam figuras de um baralho. Por baixo do pó de arroz e da maquiagem artística que imitava o aspecto de uma colombina, o rosto de July estava pálido de constrangimento e nervosismo, ao contrário de Lollipop, que se mostrava mais relaxada.
Chegou a hora da apresentação, as luzes se concentraram no palco e uma das músicas favoritas de Lollipop, uma balada romântica em francês, começou a tocar. Lollipop atravessou as cortinas com uma cambalhota, arrancando uma onda de aplausos da sua plateia masculina. Lollipop jogou-se no chão em um espacate, e deslizou ao redor de seu corpo, unindo novamente suas pernas. Ela levantou-se e desfilou até seu poste, onde enrolou seu corpo como uma serpente e começou suas sequências de acrobacias hipnotizantes. A cada movimento, o público gritava em puro êxtase. A música mudou de tom, e Lollipop ficou pendurada no poste enquanto July atravessou as cortinas lentamente, sendo acolhida pelos aplausos da audiência sedenta por novidades.
July posicionou-se e começou sua graciosa performance de balé com giros e saltos encantadores. Lollipop ficou de cabeça para baixo, observando July enquanto ela dançava em torno do poste, fazendo a tensão do espetáculo crescer sem controle. Quando o refrão se tornou mais denso, Lollipop desceu do poste e se postou ao lado de July, e as duas garotas dançaram juntas uma coreografia sincronizada, arrancando do público mais aplausos, assobios, elogios e risadas da perceptível atração entre as danças das duas. Porém, em meio a coreografia, July parou de repente ao perceber que seu pai e o comissário Heathcliff estavam na boate assistindo a sua apresentação. Ela saiu correndo do palco sem pensar duas vezes, atônita, e Lollipop foi atrás dela.
— O show acabou pessoal! — Lollipop anuncia antes de passar pelas cortinas. O público soltou algumas vaias quando as luzes se acenderam novamente. Enquanto isso, no meio do caminho para o camarim estava July, cheia de calafrios, e ainda mais nervosa do que antes — Ei, o que foi?
— Meu pai está aqui, acha que ele me viu? — July perguntou, tentando se acalmar.
— Acredito que não, uma hora dessas todo mundo aqui já tá meio alterado mesmo — Lollipop respondeu do jeito mais tranquilizador possível.
— Desculpa por estragar seu show — July disse, cabisbaixa.
— Não se preocupe com isso, nós fomos ótimas — Lollipop lhe puxou para um abraço. July se sentiu mais tranquila — Vem, vou te deixar em casa.
As garotas voltaram para o camarim, tiraram a maquiagem e trocaram de roupa, em seguida saíram da boate Closer pela mesma porta em que entraram. Lá fora, Lollipop se surpreendeu ao encontrar Leonard encostado em seu carro.
— Leo! — Lollipop correu animada para abraçá-lo. July permaneceu afastada, havia algo familiar naquele rapaz estranho, se eles já se conheciam, ela não conseguia lembrar.
— Onde você estava? Eu fiquei te esperando — Leonard perguntou após um beijo.
— Longa história. E você? Não veio ver minha apresentação hoje...
— Fiquei preso no trânsito — July ouvia a conversa meio distraída, mas essa frase chamou sua atenção e alertou suas desconfianças.
— Ei July, esse é o meu namorado, Leonard Roberts — Lollipop disse se virando para July, essa então percebeu o que estava lhe causando aquela angustiante sensação de reconhecimento duvidoso. O rosto de Leonard, apesar de mais fino, ainda trazia alguns traços semelhantes ao de outra pessoa conhecida. E o sobrenome explicou tudo. Lollipop estava namorando o odioso irmão de Edmond.
— Lollipop, posso conversar com você um instantezinho? — Lollipop se aproximou de July. July, por sua vez, se afasta um pouco de Leonard, ela sabia que precisava alertar a amiga — Você precisa tomar cuidado com esse cara, meu amigo Ed disse...
— Ei! Pera aí! — Lollipop exclamou, nitidamente aborrecida, e começou a falar num tom de voz mais alto que chamou a atenção de Leonard — Eu não vou aceitar você falar baboseiras do meu namorado por causa de algo que o seu namorado disse!
July foi pega de surpresa pela afirmação de Lollipop, e não conseguiu segurar um riso tímido.
— O que? Não! Nada haver! O Ed não é meu namorado! — July tentou se explicar, mas Lollipop havia perdido todo o seu bom humor.
— Eu sabia que não podia confiar em você! Foi um erro pensar que podíamos ser amigas! — Lollipop retomou a sua ordinária postura arrogante.
— Algum problema, meu amor? — Leonard perguntou, se aproximando das garotas e pegando a mão de Lollipop.
— Nada! Vamos embora! — Lollipop e Leonard foram em direção ao carro, deixando July sozinha. July tentou pensar em algo para resolver aquele desentendimento o mais rápido possível, até cogitou a possibilidade de simplesmente gritar tudo o que Ed havia lhe dito sobre o irmão, mas aquela altura já não valia mais a pena.
— Lollipop, espera...
Sem dizer mais nada, Lollipop entrou no veículo e cruzou seus braços. Leonard ainda mirou July com um sorriso falso antes de ir embora. Quando o carro se afastou, July se sentiu extremamente irritada consigo mesma, e frustrada. Já havia passado da meia noite, ela estava cansada, machucada e precisava de um banho, aquele dia horrível havia acabado de piorar o máximo possível e nada poderia ser mais doloroso naquele momento. Sem mais o que fazer, July caminhou sozinha até a sua casa.
***
Pouco depois, no meio da madrugada, Leonard deixou Lollipop em casa e saiu de lá às pressas, alegando precisar se encontrar com alguns amigos para uma confraternização ou algo do tipo. Na verdade, Leonard dirigiu novamente em direção a área além do Subnível, onde parou seu carro em frente a um prédio decadente. Leonard entrou no prédio e subiu até a sacada, passando por papéis de parede mofados, gesso descascado no teto e inquilinos escandalosos. Mesmo estando numa vizinhança marginalizada, Leonard ainda caminhava com o nariz empinado, recoberto por sua ilusão interna de superioridade.
Após alguns minutos no terraço, Leonard vê o balão pirata surgir em meio ao céu noturno. Mesmo de longe já era possível ver o sorriso radiante de Margaret, satisfeita por ter concluído seu grande objetivo. O balão aterriza no terraço e Margaret pula da cesta direto nos braços de Leonard, lhe puxando para uma sequência de beijos e carícias.
— Você tinha razão! Estava mesmo com aquela menina! — Margaret diz em meio aos beijos. Enquanto isso, Leonard lhe agarra pela cintura, deixando seu corpo grudado no dela.
— Conseguiu o diamante? — Ele pergunta enquanto acaricia os cachos loiros de Margaret, fingindo interesse. A capitã pirata tira o diamante do bolso de seu casaco e põe ele diante dos olhos de Leonard, que tenta pegá-lo, mas Margaret afasta o diamante dele antes disso, repleta de ciúmes — Vai fazer o que com isso? Penhorar ou coisa assim.
— Não mesmo, na verdade esse diamante não vale nada — Margaret joga o diamante com força no piso áspero, e a joia preciosa se esfarela como se fosse feita de açúcar. Leonard se impressiona, primeiro porque um diamante não deveria quebrar tão fácil, e segundo porque Margaret não apresentava o menor sinal de remorso ao destruir o epíteto de sua obsessão. Os piratas no balão apresentavam a mesma reação ao ver a cena, ilustrada com um murmurinho — É falso, sempre foi. Agora isso aqui sim vai me ajudar — Ela se abaixa e pega, em meio aos cacos, uma chave pequenina. Leonard solta um suspiro de esclarecimento — Nunca foi sobre o diamante, foi sobre o talismã.
Logo depois desse encontro inusitado, Margaret, Leonard, Clementine e o restante do seu grupo se dirigiram de balão até as proximidades de um banco, um prédio dourado iluminado com refletores e com a arquitetura baseada nos antigos panteões gregos. No caminho, Leonard demonstra alguns resquícios de enjoo devido a altitude e a velocidade do balão, situação esta que, para seu contragosto, arrancou alguns risos de Margaret.
— Rato, qual a situação? — A capitã perguntou para um de seus capangas, que teclava alguns comandos num dispositivo eletrônico.
— Todos os alarmes foram desativados definitivamente — O capanga, um sujeito baixinho, responde.
— Ainda vamos precisar nos livrar daqueles guardas — Clementine comenta, observando os homens postos na entrada do banco — E com certeza vai ter bem mais lá dentro.
— Não se preocupe, eu tive uma ideia — Leonard comentou.
Em instantes, todos já estavam prontos para a invasão. Haviam quatro guardas na entrada do banco, dispostos em duplas e cobrindo os dois sentidos da avenida que havia logo em frente, e todos eles armados. Um pequeno grupo de piratas desceram pelas cordas do balão logo em cima da fachada do banco, alguns metros acima da dupla de guardas do lado esquerdo. Amarrado pela cintura, um dos piratas aproveita a distração de um dos guardas e agarra o outro, para em seguida o puxar para cima e lhe soltar. O vigilante se vira assustado ao ouvir o barulho da queda de seu companheiro, agora desmaiado devido ao impacto, ele se aproxima e o pirata amarrado desce novamente por trás dele, lhe derrubando com uma pancada na nuca.
A outra dupla de guardas fica atenta à movimentação suspeita ao ver os outros desmaiados, e decidem sair dos seus postos e caminhar lentamente, e com as armas em punho, até a posição da dupla derrotada. Um dos guardas pega o comunicador e tenta entrar em contato com os outros guardas do local, mas tudo que ele consegue captar é estática e a sensação de ter algo muito errado acontecendo. Por estar um na frente do outro, o guarda da dianteira não percebe quando seu companheiro é derrubado, e quando se vira também acaba atingido com uma pancada no rosto. Com todos os guardas ali derrotados, Margaret, Leonard, Clementine e parte do grupo de piratas adentra no banco, enquanto os demais piratas revistam os guardas, se apropriando de suas armas e munições.
Lá dentro, os criminosos percorrem o salão principal enquanto vários guardas se aproximam. Clementine toma a dianteira do grupo e joga diversas bombas de fumaça. Um a um, os guardas são derrubados por golpes e disparos certeiros que eles nem ao menos conseguem ver de onde estavam vindo. O grupo continua prosseguindo em direção ao cofre principal, onde havia apenas um guarda que já vinha com a arma empunhada nas mãos trêmulas. Dessa vez é Leonard quem vai na frente, lhe mostrando o distintivo ministerial em sua carteira, o que faz o guarda abaixar a arma, intimidado. Com um movimento de cabelo e o olhar diabólico focado, Leonard faz o guarda sair dali correndo.
— Ei! — Leonard lhe chama. O guarda para de correr e olhar para trás, no exato instante em que Leonard pega uma pistola que ele trazia escondida na camisa e atira, acertando o peito do homem, que cai inerte — Senhorita — Leonard estende o braço em direção ao cofre.
Margaret para diante da imensa porta dourada e observa as diversas engrenagens e mecanismos que compunham as trancas do cofre, formando um complexo e engenhoso quebra-cabeça metálico. Ela pega a chave e a encaixa na fechadura tão pequenina quanto, quase escondida entre a poluição visual do equipamento em volta. Todas as engrenagens e mecanismos começam a girar e se ativar em meio a uma verdadeira orquestra de ritmos metálicos. Pouco a pouco, as trancas se abrem e a porta sobe automaticamente, revelando um amplo cômodo cheio de estantes com malas, cada uma delas trazendo uma etiqueta. Margaret pega uma das malas e lê as informações descritas na etiqueta.
— Virgil Crawford, meu falecido pai — Margaret abre a maleta, lá dentro haviam diversas cédulas de dinheiro — Aqui tem aproximadamente quinhentos niudoláres.
Niudolár era a unidade monetária de Newdawn, cujo valor de um niudolár equivalia a quinze dólares convencionais do antigo mundo. A aparência das cédulas era de pequenos retângulos amarelos com figuras de diversas culturas, as de valores mais altos possuíam retratos de indígenas e guerreiros mongóis, enquanto as de menor valor traziam representações de deidades mitológicas. Também existiam moedas de diferentes valores, cores e tamanhos, todas ilustradas com insetos.
— E quantas dessas tem? — Leonard pergunta ao se aproximar dela.
— Vinte e sete, metade do que ele tinha antes de ser roubado, mas ainda é muita coisa — Margaret pega algumas cédulas, solta a maleta numa prateleira e joga as cédulas para cima, abrindo um sorriso largo de espontânea felicidade ao ver aquele dinheiro voando ao seu redor — Eu nunca teria conseguido sem você, Leonard. Nem sei como te agradecer.
— Eu sei como — Leonard se aproxima ainda mais dela — Seja minha primeira dama, essa cidade será nossa, e você será a pessoa mais importante de Newdawn.
— Seria uma honra — Mais uma vez, Leonard e Margaret se beijam. Após o beijo ela olha em volta, apreciando as maletas — Já estamos aqui, por quê não levar um pouquinho a mais?
— O que você quiser, meu amor — Leonard riu.
***
Memórias. O que são memórias? O fardo de nossos erros e vergonhas, o registro de nossos momentos felizes, ou a mais profunda característica da definição de humanidade. Independente de sua real natureza, Roza também tinha suas memórias, tais memórias que ela não guardava e sim armazenava.
Repentinamente, Roza se encontra revivendo uma de suas memórias mais importantes, o dia em que Cornelius a levou na igreja pela primeira vez. Ela estava tomada por uma estranha ansiedade enquanto adentrava numa sala meio escura, com paredes pretas e refletores no teto que iluminavam um palco improvisado no centro do local. Lá, uma banda cantava louvores acompanhada por um coro de jovens de olhos fechados e mãos levantadas aos céus. Todos os presentes ali cantavam e pulavam, uns sozinhos e outros de mãos dadas ou em meio a abraços, transmitindo uma contagiante sensação de euforia e plenitude. Roza sente as boas vibrações da canção tomarem conta de seu corpo, e ela encontra-se repleta da mais pura felicidade refletida nos olhos de Cornelius.
— O céu começa a se abrir! — Ela ainda consegue ouvir a canção ecoando no fundo da sua mente — Cristo, rei dos reis, veio nos buscar! Leva-nos em tuas mãos pelas portas da cidade! Na nova Jerusalém tua noiva vai entrar!
Roza piscou por um momento, tudo escureceu e a música abaixou seu tom, sumindo gradativamente no vazio. Imagens disformes começaram a transparecer como uma velha televisão com a tela cheia de chuviscos. O rosto de Cornelius aparece novamente diante dela, seguido dos rostos de July e Edmond. Roza estava de volta à realidade, deitada sobre a mesa da sala.
— Cornelius... — Roza balbucia, demonstrando o quanto estava fraca. Quando ela tenta se sentar, Cornelius se aproxima rapidamente, lhe impedindo — O que aconteceu?
— Eu... não sei como te dizer isso — A voz de Cornelius estava repleta de tristeza, e ele evita encarar Roza por um momento — Você não é real.
— Como assim? É claro que eu sou real! — Roza se sente cada vez mais nervosa e confusa a cada palavra. Ela encara July e Edmond, que também estavam cabisbaixos, como que evitando encarar algum detalhe nela — Eu sou real, não sou? — July e Ed apenas balançam a cabeça em negativa.
— O que eu quero dizer... — Cornelius tenta dizer, sufocando de remorso, sentindo suas próprias palavras se agarrarem em sua garganta — Você não é humana.
— Eu... — Roza observa seu próprio corpo estirado naquela mesa. Do pescoço para baixo não existia mais pele, só haviam placas metálicas, engrenagens, fios e sistemas. Ela não conseguia movimentar suas mãos, mas via claramente elas nas mesmas condições, assim como suas pernas. Membros duros e travados de um robô — Não pode ser verdade! Eu até posso ser paranoica mas eu não sou um androide.
— Não dá! — Cornelius diz, ele coloca sua mão direita na nuca de Roza e aciona um dispositivo escondido. O brilho nos seus olhos amarelos desaparece quando ela é desligada — Não consigo suportar isso! — Cornelius cobre seu rosto com a palma de suas mãos.
— Cornelius... — Ed diz ao se aproximar junto com July — O que você tinha na cabeça na hora de inventar uma namorada robô? E como que a gente nunca desconfiou? Uma garota que surgiu do nada para morar com você, sem família, sem histórico...
— Eu comprei tecnologia de Cypher para produzir um assistente mecânico — Cornelius explica enquanto encara o corpo imóvel de Roza — Fazendo alguns testes eu consegui montar ela de uma forma quase perfeita. O único defeito era o fato de ter esquecido de programar sua consciência maquinaria, assim a Roza nasceu acreditando ser humana. Eu devia ter contado o mais rápido possível, mas eu estava tão feliz comigo mesmo, tão feliz em ter a companhia de alguém que também estava feliz em estar comigo, que eu simplesmente decidi não contar nem a ela nem a ninguém. O irmão Cérebro era o único que sabia... — Seus amigos lhe abraçam quando lágrimas surgem em seus olhos.
— Olha, eu não sei se é o melhor momento pra dizer isso — July diz em tom de acalanto — Mas isso só mostra o quanto você é genial. Falhas sempre vão acontecer, eu sei que você pode fazer melhor da próxima vez.
— Tem razão — Cornelius enxuga suas lágrimas — Mas por enquanto a Roza vai continuar assim, desligada.
— Eu tenho uma novidade que, com certeza, vai te animar. Vai animar vocês dois na verdade — Ed se afasta um pouco dos amigos, indo em direção do hall de entrada.
— Qual? — July e Cornelius se viram para ele e perguntam, curiosos. Enquanto isso, Ed abre a porta e olha para fora, avistando um táxi se aproximando da casa. Ele fecha a porta novamente.
— Vocês sabem que eu fiz o possível para salvar a Ivana honestamente.
— Sei sim, sei muito bem — July comenta com desprezo, e consegue arrancar um sorrisinho do deprimido Cornelius.
— Pois bem! — Ed continua sua fala — Quando você está lidando com alguém que joga sujo você precisa jogar mais sujo ainda, portanto eu usei a importância da minha família pra fazer uns trambiques — Ed pega na maçaneta da porta — Senhoras e senhores, com vocês, Ivana Montano.
Ed abriu a porta no exato momento em que Ivana saiu do táxi carregando a caixa com suas coisas, ela ainda usava as mesmas roupas da delegacia e trazia consigo a mesma atmosfera de confusão e desconfiança em sua expressão fria. Cornelius e July ficam radiantes em ver a garota de Myth, e Ed abriu um sorriso, degustando aquela sensação de dever cumprido que pairava em torno de seu semblante. Ao ver Ed, Ivana entra lentamente na casa, ainda um pouco tímida e desnorteada.
— Ed, eu... Obrigada — Ivana acaba sem palavras para agradecer o que Ed havia feito por ela.
— Não precisa me agradecer. Só fiz com que todo mundo tenha certeza daquilo que você sempre foi, inocente — Ed diz enquanto fecha a porta.
— Foi muito virtuoso da sua parte — Ivana olha em volta, analisando com curiosidade todas as engenhocas daquela casa. Uma borboleta mecânica pousa em seu ombro.
— Esses são os meus amigos, July Harmond e Cornelius Albert Dumont — Ed estende o braço em direção aos outros. Discretamente, Cornelius se põe na frente da mesa, escondendo o corpo robótico de Roza. Ivana acena, ainda tímida.
— É uma honra conhecê-la, sempre acreditei que o Ed iria provar a sua inocência — July se aproxima da garota, fazendo Ed se sentir envergonhado e orgulhoso ao ouvir essas palavras.
Aos poucos, em meio aos cumprimentos, Ivana ia ficando cada vez mais relaxada, acolhida nos laços daquela nova amizade. Mas a calmaria precede a tempestade, e o clima volta a pesar quando Johnny surge ali, inesperadamente.
— E aí, galera! — Johnny diz ao seu modo característico enquanto entra na casa e bate a porta com força atrás dele. Cornelius é tomado por aborrecimento, enquanto July sente-se constrangida e tomada por um péssimo pressentimento. Já Ed, discretamente, puxa uma confusa Ivana pelos ombros para longe de Johnny, que a avaliava inteiramente com os olhos carregados de cobiça. Ivana permaneceu em silêncio, como um pássaro estranho num ninho que não lhe pertencia — É o seguinte, vim buscar minha parada e é melhor ter o suficiente.
— Johnny, acho que não é uma boa hora para... — Cornelius fala nitidamente aborrecido. A verdade é que Cornelius não tinha mais medo de Johnny, e acreditando que não havia mais nada a perder, assume uma postura mais sombria.
— Toda hora é uma boa hora para cumprir com meus combinados, velhote — Johnny lhe interrompe, se aproximando do inventor. A figura mecânica deitada na mesa atrás de Cornelius lhe chama a atenção — Ei, o que é isso aqui? — Johnny empurra Cornelius bruscamente, lhe permitindo dar uma boa olhada na desligada Roza. Um sorriso insano surge no rosto do garoto — Bem que eu desconfiava que aquela maluca não era mesmo normal! — Johnny comenta para Cornelius, que lhe encarou com desprezo. Os demais se entreolham, sem saber ao certo o que fazer — Mas sabe o que eu acho mais engraçado? — Johnny solta um riso sarcástico — Que você nunca tem tempo para fazer minhas paradas, mas tem tempo suficiente para construir um robô desses. Você já me encheu a paciência, velhote!
O mundo pareceu ficar em câmera lenta quando Johnny puxou uma pistola velha de dentro das calças frouxas. Os olhos de Cornelius se arregalaram ao verem a arma apontada para ele ser montada. Num impulso, Ed se prepara para avançar sobre Johnny e lhe derrubar, mas Ivana foi mais rápida. Em meio a um grito estridente de desespero, a misteriosa mythidiana corre em direção a Johnny e para alguns passos perto dele, sem saber ao certo o que fazer mas seguindo o instinto da aproximação. Nesse instante, Johnny se assusta ao ver labaredas flamejantes surgirem em pleno ar em volta de Ivana e avançarem contra ele, consumindo seu corpo. July também é tomada por um impulso, e avança sobre Cornelius, lhe empurrando para longe das chamas.
Caídos no chão, July e Cornelius observam o corpo de Johnny ser reduzido a um punhado de cinzas esfareladas sobre o carpete. Nem mesmo a arma sobrou. As chamas desapareceram tão rápido quanto surgiram, deixando para trás uma tontura que faz Ivana cambalear para trás.
— Ivana! Você está bem? — Ed a segura antes que ela possa sair.
— Minha cabeça dói um pouco, mas nada muito grave — Ivana responde enquanto se apoia em Ed e tenta retomar o equilíbrio de seu corpo. Em seguida, ela vê aos seus pés tudo o que restou de Johnny — Aquele garoto...
— Ele não era uma pessoa ruim — Cornelius diz enquanto ajuda July a se levantar. Em meio às cinzas, ele acha o dente dourado que seu incômodo costumava usar. Depois de uma rápida análise, Cornelius guarda o dente no bolso de seu casaco — Mas, pensando bem, acho difícil alguém sentir falta dele.
— Eu não queria, eu nem sei como eu fiz isso... — Ivana fala, recoberta de inseguranças — Eu nem sei como fiz isso.
— Eu sei como — July afirma ao se aproximar de Ivana — Com magia! Essa é a confirmação de que você veio de Myth, ninguém fora de lá consegue fazer algo assim.
— Nós vamos te levar de volta para casa — Ed conclui, acalmando Ivana. Mesmo sem memória, ela sentia que Ed lhe levaria mesmo para sua casa, seja lá onde for. Em seguida, Ed se dirige aos seus amigos — Façam as malas pessoal, amanhã nós vamos para Myth. Só vou precisar do resto do dia para resolver as diretrizes da viagem. E, July, enquanto isso você podia levar a Ivana para conhecer a cidade.
— De prisioneira a turista, que belo avanço — Ivana comenta.
— Antes de irem eu preciso lhes mostrar uma coisa — Cornelius fala ao ver Ed e as garotas se prepararem para irem embora — Eu finalmente terminei de consertar o computador.
Cornelius guiou o grupo até um outro canto da sala, onde o computador estava instalado numa plataforma de vidro. Ele senta-se numa cadeira e liga o aparelho, deixando seus amigos fascinados com a facilidade como ele navegava pelos arquivos do sistema. Apesar de computadores serem comuns em cidades como Tesla e Cypher, além das variações de dispositivos tecnomágicos de Myth, ninguém ali havia visto nada parecido. Cornelius permite-se degustar daquela sensação de satisfação, mas para ingressar na Sociedade da Ciência ele ainda tinha muito trabalho a fazer.
— O que é aquilo? — Ed pergunta enquanto indica um ícone curioso na tela.
— Deve ser um tipo de jogo — Cornelius responde, guiando o mouse do computador até o ícone referido.
De fato era um jogo, deveras simplório. Consistia basicamente em guiar um quadradinho até o final de um labirinto amarelo sem tocar nas paredes, caso tocasse o jogador deveria recomeçar seu trajeto do início da fase. Apesar de simples, o jogo entreteu Cornelius e seus amigos por alguns níveis, até eles serem pegos desprevenidos pelo final surpreendente. Ao chegar ao final do último nível, a imagem de uma garota demoníaca surgia na tela acompanhada de um grito absurdo de alto, fazendo todo mundo se assustar. Cornelius quase pulou da cadeira, e Ed se agarrou em July. Ivana apenas recuou, não deixando transparecer o seu ritmo cardíaco acelerado pelo terror repentino.
— Então é isso que os antigos chamavam de meme? — July comenta, se recuperando do susto.
***
July e Ivana saem da casa de Cornelius e caminham pela cidade, o clima estava agradável naquele dia, mas o fato de todos encararem Ivana por onde elas passavam ainda incomodava bastante. Por um momento, July imaginou que as pessoas poderiam reconhecer Ivana dos jornais ou de outros veículos informativos, mas já fazia tempo que nenhum jornal da cidade falava sobre aquele caso. As pessoas encaravam Ivana pelo simples fato dela parecer uma maltrapilha. Instantes depois, July está em uma loja de roupas fingindo avaliar alguns vestidos coloridos expostos em manequins, no momento roupas esportivas e casacos vitorianos lhe chamavam mais a atenção. Ivana a chama quando sai do provador, agora trajando um vestido em tons de magenta.
— Então, como ficou? — Ivana pergunta enquanto se olha num espelho grande o suficiente para refletir seu corpo inteiro.
— Muito bonito — July responde — A cor combina contigo.
— É, acho que faz o meu estilo.
As garotas saem da loja e pegam o bondinho até a biblioteca pública da cidade, um prédio majestoso e uma das poucas instalações da cidade que traziam a modernidade em seu design, com a fachada de mármore branco e cores fortes e vibrantes dispostas no muro grafitado de seu entorno. Em seu interior, grandes estantes de livros, que quase alcançavam o teto, estavam dispostas lado a lado formando largos corredores em torno de um centro repleto de mesas redondas. Nos fundos do salão havia um balcão onde os bibliotecários faziam os seus serviços, e todas as paredes do local possuíam vidraças cristalinas que mantinham o local iluminado. Como um lembrete de que aquele estabelecimento pertencia a Newdawn, um lustre em estilo clássico pendia no centro do salão, e cada mesa possuía uma luminária estilizada como um lampião, mas trocando o querosene por uma lâmpada comum.
July deixou Ivana em uma mesa e se dirigiu até uma das estantes no lado esquerdo do salão. Ivana observava tudo com interesse, fascinada com a quantidade de volumes presentes na biblioteca. De fato, estimava-se que a biblioteca pública de Newdawn possuía mais de dez mil livros, de todos os assuntos possíveis, e sempre chegavam livros novos vindos das outras cidades flutuantes. Em seguida, July retorna trazendo consigo alguns livros sobre Myth e seus conhecimentos arcanos. A ideia era que Ivana talvez pudesse lembrar de algo caso entrasse em contato com o conhecimento de sua cidade natal, algo que ela estava supostamente acostumada a ter em seu dia a dia. Mas, mesmo diante de teorias místicas, figuras rúnicas e símbolos de invocação elemental, sua mente continuava como uma tábula rasa.
— Desculpa July, mas acho que não vai funcionar — Ivana diz enquanto balança a cabeça em negativa.
— Não tem problema — July levanta e pega os livros — Vem, tem mais uma coisa que quero te mostrar. É o mais próximo que tem de magia por aqui.
Nisso, as garotas se dirigem para um local onde a magia acontece mesmo nos lugares onde ela não existe, e até mesmo para aqueles que não acreditam. O único lugar que transporta os sonhos para o estado físico da matéria, convertendo ideias em imagens, sons e atuações. July e Ivana vão ao cinema.
Poucas sensações se comparam a empolgação tão imersiva de ver uma bela história projetada numa tela gigante. E July amava o cinema, amava tanto ao ponto de imaginar ângulos de câmeras e enquadramentos nas cenas de seus livros durante suas leituras. Lhe encantavam as animações da Disney, os musicais românticos, as lendas de heróis corajosos como Indiana Jones, a ação de Tarantino e os suspenses de Hitchcock, assim como as produções de um tal de Netflix que ela nunca tinha ouvido falar sobre.
E como tudo em Newdawn, o cinema também era estilizado, geralmente trazendo os clássicos hollywoodianos, e as produções mais recentes traziam todos os artifícios técnicos da era dos grandes estúdios. Alguns filmes em cores eram convertidos em preto e branco nas suas exibições durante essa nova fase do mundo, mas isso não incomodava July, ela conseguia facilmente achar fitas VHS com a coloração original, e às vezes a fotografia em preto e branco deixava tudo mais bonito.
Ivana também havia gostado da experiência, se ela já tivesse ido ao cinema antes essa memória havia se perdido em meia a sua amnésia, e isso fez July pensar sobre o valor de redescobrir seus prazeres intrínsecos, Newdawn havia oferecido muitas dores e angústias para Ivana, mas agora ela tinha pelo menos uma boa recordação para nunca mais esquecer. Já era noite quando a sessão matinê de Cidadão Kane terminou, e as garotas comentaram cada cena com empolgação no caminho da casa de Cornelius, onde Ivana dormiria. Mais tarde, ao chegar em casa, July encontrou seu pai no escritório, lendo atentamente alguns documentos com seus óculos de leitura, de lentes redondas e armação dourada e fina.
— Pai, eu posso ir para Myth amanhã com o Ed? — July perguntou se pondo diante do pai, do outro lado da escrivaninha. O escritório estava tão organizado como de costume, ninguém suspeitaria que havia tido uma luta ali alguns dias antes.
— Não — Ernest Harmond respondeu sem tirar os olhos dos documentos, o que deixou July surpresa, se perguntando se havia chegado em uma má hora — Nós podemos ir juntos — Ernest encara a filha com um sorriso no rosto — Acho que vai me fazer bem aproveitar o dia de folga com uma viagem.
***
No dia seguinte, exatamente ao meio dia, um aeróbus partia do porto aéreo de Newdawn. Voos comerciais levando passageiros de uma cidade para outra eram bem comuns, mas caso você tivesse pressa, ou qualquer outro motivo plausível para se deslocar entre as cidades flutuantes, bastava alugar os serviços de um aventureiro que tivesse alguma dessas naves avantajadas disponível.
Wes Jeffords pilotava o aeróbus com atenção e precisão, e o veículo, apesar de extenso, era leve e possuía o formato aerodinâmico adequado, semelhante a um híbrido futurista de ônibus urbano e projétil, para viajar com velocidade notável e com o mínimo de ruído possível. O interior da aeronave havia sido projetado para ser o mais confortável possível, com largos bancos acolchoados e mesas retráteis. O céu naquele dia estava carregado de nuvens espessas, espalhadas além do horizonte, mas não havia nenhuma tempestade pela frente, e nada que pudesse atrapalhar o retorno da filha pródiga de Myth para sua casa.
Além de Wes e Ivana, July e Ernest Harmond, Edmond Roberts e Cornelius A. Dumont também estavam embarcados naquele estranho ônibus voador, e todos seguiam uma das mais antigas tradições newdanianas, se vestir com a cor favorita da cidade que visitariam, no caso o vermelho. Ed até mesmo tinha uma faixa vermelha amarrada em torno de sua cabeça.
A viagem seria rápida, mais ou menos vinte quilômetros separavam Newdawn da cidade da magia. Durante as duas horas em que a viagem transcorreu, cada passageiro se distraiu como podia, menos Wes, cuja função exigia tamanha concentração, assim como o jogo de xadrez que Ernest estava perdendo para Ed, e o qual Cornelius analisava as jogadas silenciosamente. Esse trio parecia externamente tranquilo, diferente de July que havia sido tomada por uma absurda inquietação. Ela andava de um lado para o outro, tentando distinguir qualquer forma que não seja uma nuvem no céu imenso, e não parava de comentar o quanto estava animada para conhecer Myth. Ivana havia sido possuída pela ansiedade de July, mas de uma maneira mais contida, ela sentia que também deveria estar nervosa, mas algo em seu interior lhe dizia que ela já conhecia aquele lugar, e obviamente ela não se lembrava.
Mais ou menos cinquenta minutos após a decolagem já era possível avistar o porto de Myth, e os passageiros já podiam sentir a energia arcana vibrar no fundo de suas almas. Ivana estava mais tranquila agora, como um viajante que volta para casa depois de muito tempo, o que de fato era. O grupo desembarcou numa plataforma, e logo perceberam que o porto de Myth não era muito diferente do porto de Newdawn. Os salões largos, as esteiras de locomoção no piso liso e as lâmpadas retangulares pareciam todos iguais. O que havia de diferente mesmo eram as pessoas nativas daquela cidade, rostos pálidos vestidos com túnicas vermelhas e adornados com tatuagens negras de símbolos místicos, normalmente carregando grimórios de diferentes tamanhos para onde quer que fossem.
Do lado de fora daquele porto sem graça, as edificações de Myth eram tão fascinantes quanto os seus habitantes. O grupo estava num amplo espaço aberto diante de uma avenida, com duas faixas de cada sentido, algo semelhante a uma versão rústica e aprimorada do Calçadão de Newdawn. Dali era possível ter uma bela visibilidade do resto da cidade, que se estendia em um conglomerado circular de extensas plataformas retas com diversos níveis. As casas de pedras possuíam o aspecto de antigos castelos medievais, mesmo aspecto fantástico aplicado na arquitetura neogótica das escolas, igrejas, prédios públicos e demais edificações importantes. Também era possível ver diversos monólitos dispostos nas praças e no entorno das principais avenidas, cujo nas pedras haviam gravadas inscrições arcanas. Myth mais parecia uma versão romantizada de alguma cidade milenar dos contos de Lovecraft, só faltava alguma feroz criatura tentacular gigantesca e maligna surgir em meio às nuvens sugando as almas de todos.
E a magia se via em toda parte, as vibrações azuladas da energia arcana denunciavam sua presença e a prática da adaptação tecnológica da cidade. Os carros tradicionais vindos de Senna corriam pela rua, mas os carros adaptados voavam pelos céus com seus motores a base de energia arcana, enquanto os postes elétricos vindos de Tesla brilhavam com cristais formados por pura energia, que projetavam uma luz azulada. Myth podia se considerar uma cidade autossustentável, a energia arcana oferecia tudo que os habitantes precisavam, e poderia ser uma cidade muito mais importante comercialmente se as demais cidades não fossem tão ignorantes diante de seus métodos.
Wes praticava seu ofício de guia turístico casual enquanto comandava uma caminhada que descia a avenida em direção a um dos principais pontos turísticos da cidade, a Academia de Magia, uma grande escola onde os fundamentos básicos do arcano eram difundidos diariamente, e também onde o estudo avançado de suas funcionalidades era aprofundado. A imensidão do prédio fascinava tanto os visitantes quanto os residentes, o local era semelhante a uma titânica mansão de arquitetura clássica, seu exterior possuía imensas paredes de pedra rústica adornadas por plantas trepadeiras nos níveis mais baixos enquanto bandeiras e faixas rubras, estampadas com símbolos esotéricos, ocupavam os níveis mais altos. O interior daquela formidável escola possuía salas de aula, bibliotecas, laboratórios, salões e diversos outros compartimentos dedicados a atender as necessidades do estudo, prático e teórico, dos ensinamentos ancestrais que basearam a infraestrutura daquela cidade.
Os turistas atravessaram um pórtico e adentraram no jardim murado da Academia de Magia, uma ampla área verde onde haviam várias estátuas de seres mitológicos. Muitos estudantes estavam presentes no local, reunidos em grupos risonhos sentados sobre a grama ou estudando à sombra do paredão da escola, uma certa garota até mesmo flutuava em meio a uma sessão de meditação, todos eles trajavam um manto negro que os padronizava. Não era muito difícil ingressar naquela escola, que inclusive trazia cotas para estudantes estrangeiros interessados na magia de Myth e na qualidade de seu ensino, Edmond inclusive foi um deles durante algum tempo, mas a concorrência era realmente ampla, sorte que haviam muitas outras escolas com a mesma qualidade naquela cidade.
— Myth é realmente uma cidade maravilhosa, mas vocês ainda precisam ver a beleza de minha amada Senna, não há nada mais belo do que sua arquitetura dourada e suas pistas de corrida que circundam toda a cidade como os glamurosos anéis de Saturno — Wes falava orgulhoso em meio ao seu relato sobre a história da fundação da Academia de Magia.
Ernest tirava fotos de July e Ed junto das estátuas de uma lâmia e uma sereia. Enquanto isso, Ivana observa tudo à sua volta ainda tomada por aquela curiosa sensação de familiaridade, por vezes comentando sobre memórias vagas que surgiam e sumiam em sua nebulosa consciência. Às vezes ela via uma garota correndo pelo gramado, outras vezes via objetos flutuando numa sala de aula, e também conseguia ver uma forma reptiliana voar pela cidade, mas absolutamente nada disso fazia sentido.
— Muitos acreditam tomar total controle de suas mentes — Cornelius diz, tentando tranquilizar a garota — Mas ainda existem particularidades na personalidade de cada um que desafiam até o mais submersível psicólogo. Os limites da mente humana sempre serão um mistério.
Poucos minutos depois, dois homens caminharam pelo jardim em direção ao grupo, ambos vestidos com o manto negro escolar. O primeiro era mais baixo e musculoso, era careca e tinha sobrancelhas grossas em contraste com seu nariz afinado, inscrições árabes e um olho cuja íris era uma espiral residiam tatuadas em suas mãos, seu manto também possuía um capuz num tom de roxo bem escuro, e ele usava um grosso cordão vermelho com um amuleto de pedra rúnica, onde havia um pentagrama incrustado. O segundo era bem mais jovem, mais alto e magro, tinha os mesmos olhos escuros que o outro, e seu cabelo também era escuro, curto e encaracolado, assim como os fiapos do bigode e da barbicha que pendia de seu queixo fino, as tatuagens de símbolos egípcios em seus braços e peito pareciam cintilar em sua pele levemente bronzeada, e haviam muitas outras ao longo do seu corpo oculto sob o manto, uma pequena adaga pendia do brinco fixado no lóbulo de sua orelha direita.
— Ivana! — O mais novo gritou e veio correndo em direção a garota junto do outro, seus mantos balançavam ao vento como as asas de um morcego demoníaco. A garota os encarou por um momento, confusa e assustada, e se escondeu discretamente atrás de seus companheiros, que tentavam lhe tranquilizar.
— Mestre — Ed disse se pondo a frente de seu grupo. Quando os homens se aproximaram, ele fez uma reverência ao mais velho. Era Waldo Montano, pai de Ivana e diretor da Academia de Magia de Myth. Waldo retribuiu sua reverência — Ignis — Ed cumprimentou o mais novo, Ignis Montano, professor e irmão de Ivana, que retribuiu o cumprimento com um aperto de mão. Ivana, em outros tempos, também chegou a ser professora na Academia de Magia.
— Edmond, meu querido, você trouxe minha filha de volta — Waldo dizia segurando os ombros de Ed, seus olhos se encheram de lágrimas a cada palavra — Nem sei como...
— Pai — Ignis o interrompeu — Acho que ela ainda não voltou — Eles observaram a garota, que tentava se esconder atrás de Cornelius enquanto July segurava sua mão com confiança. Ivana evitava falar, como saber o que dizer quando você não sabe quem se é ou onde deveria está e o que deveria está fazendo lá?
— O Bruxão tem razão, ela perdeu a memória de alguma forma — Ed explica, deixando Ignis sem graça por ter tido seu apelido revelado, mas ele nada falou para evitar desvirtuar o assunto — Acho que deve ser um bloqueio psíquico, pensei que vocês pudessem resolver — Waldo e Ignis se entreolham e vão conversar em particular por um momento, afastados de Ed e seus amigos. Em meio a isso, Ed também faz alguns gestos para July e Cornelius, informando que resolveria tudo em alguns minutos. Em seguida, Waldo e Ignis se aproximam novamente — E então?
— Podemos tentar uma coisa, mas não é certeza — Waldo informa — Vamos precisar de um pouco de fé.
— Fé é algo que nunca me faltou, senhor Montano — Ed disse de uma forma espirituosa.
Waldo e Ignis se voltam em direção ao interior da Academia de Magia. Ed se virou para seus amigos e fez um leve aceno de cabeça enquanto sorria, eles comemoram e o seguem, segurando as mãos de Ivana. Logo atrás vinham Wes e Ernest, deslocados do assunto. O lado de dentro do prédio era tão fantástico quanto o seu interior, substituindo o aspecto rústico por paredes lisas de cor clara e piso de madeira refinada. O grupo caminhou por um longo corredor, onde as paredes possuíam diversos quadros de diferentes tamanhos, retratando antigos magos, paisagens sobrenaturais e cenas de batalha, junto a eles haviam pilares médios com vasos de flores com cores brilhantes e bustos esculpidos em pedra branca. Ernest continuava tirando fotografias de tudo.
Alguns estudantes cumprimentaram Waldo ao passarem por ele, mas o diretor tinha pressa para chegar em um lugar específico do prédio. O grupo entrou num salão e subiram uma escada larga em espiral com corrimão de madeira, já no corredor de cima se dirigiram até o escritório de Waldo, nos fundos do prédio. O escritório era uma grande sala com paredes levemente azuladas e várias linhas e círculos pintados de tinta branca, um conjunto de bancos de espuma estava organizado em torno de uma tapeçaria redonda no centro do local, também havia uma mesa, uma poltrona e grandes estantes com vários livros sobre magia que atiçaram a curiosidade de July Harmond. Enquanto isso, no teto do escritório, uma pintura simulava um redemoinho de estrelas em torno da luz branca de uma lâmpada oval. E havia um leve odor de incenso adocicado no ambiente.
Ignis fechou todas as cortinas enquanto Waldo afastava os bancos da tapeçaria e arrumava algumas almofadas no centro do local. Ivana se deitou nas almofadas, desconfiando de tudo em seu silêncio rotineiro, e Ignis apagou as luzes. Os turistas ficaram impressionados ao perceberem que os desenhos nas paredes brilhavam num tom de azul celeste no escuro, e a pintura no teto, além de brilhar, também girava lenta e constantemente como um verdadeiro turbilhão. Waldo e Ignis acenderam velas em torno de Ivana, se posicionaram um paralelo ao lado do outro, estenderam suas mãos esquerdas em direção a ela e começaram a girar em sentido anti-horário.
Waldo recitava palavras indescritíveis numa língua milenar desconhecida enquanto Ignis proferia o encantamento de liberação de memória. Ivana, aconselhada a ficar relaxada, fechou os olhos e se deixou levar pelos sons e vibrações, adormecendo num misterioso transe. A energia arcana começou a correr pelo ar, girando em torno do redemoinho no teto e descendo ao redor da família Montano, deixando seu rastro azul por onde passava. Os demais observavam tudo com atenção e fascínio, também sentindo a energia arcana penetrar no fundo de seus corpos.
— Isso é magnífico! — July comentou, fechando os olhos por um momento — É incrível pensar como essa energia envolve tudo por aqui.
— Por mais que digam que a magia de Myth é profana, ainda vai levar centenas de anos até que a ciência supere seu ceticismo e entenda a relação dessas pessoas com a energia arcana — Cornelius relatou em meio a um devaneio teórico, concentrado no rastro de luz azulada que girava pela sala.
— A ciência não explica tudo, amigo Cornelius — Ed disse — Algumas coisas não se precisa entender, só se permitir sentir.
— Senhores ocultos do universo, peço que liberem a mim as forças arcanas dos elementos naturais — Ignis clamava com a voz alta e firme, fazendo o feixe de energia arcana girar mais rápido e brilhar mais forte — Águas impetuosas do oceano, poeira sagaz das grandes montanhas, calor do fogo consumidor, relâmpagos das tempestades infinitas — O feixe começa a piscar cada vez mais forte, e o corpo de Ivana treme lentamente — Eu os peço que resgatem a memória de Ivana Montano, eu os ordeno que resgatem a memória de minha irmã e vossa serva.
A energia arcana gira cada vez mais rápido, deixando seu rastro formar uma bolha uniforme em torno de Ivana. As velas à sua volta trocam suas fagulhas avermelhadas por um brilho pálido e azulado. Esse mesmo brilho surge no subconsciente de Ivana na forma de flashes luminosos que se aglomeram como bolhas de tinta, e sua mente começa a clarear como um dragão luminoso que voa pelos céus. Ela se lembra de um local escuro e vermelho, mas aconchegante e confortável, e lembra-se de chorar ao começar a distinguir rostos e formas, percebendo que logo sairia dali para algo maior. Ela lembra de andar pela primeira vez, de sua primeira palavra, dos adoráveis olhos de sua mãe, da risada contagiante de seu irmão, de ver seu pai estudando e ensinando na Academia de Magia. Ela lembra de como é crescer e mudar, lembra de monstros terríveis e das dores prazerosas de fazer suas tatuagens, e lembra até de assuntos que ela nunca quis esquecer. O choque de ter tantas lembranças ressurgindo em sua mente afeta seu corpo, que assume um brilho esbranquiçado e começa a se transmutar em um ser alado e reptiliano. Ed levantou de onde estava e caminhou até ela, cauteloso para não interromper o ritual, e seu toque acolhedor na testa de Ivana a trouxe de volta para a forma de menina. Então, a energia arcana desaparece e as velas se apagam quando Ivana abre os olhos repletos de emoção ao reconhecer aquele teto pintado de estrelas. Aquela garota assustada e silenciosa havia ficado para trás, porque a verdadeira Ivana Montano estava de volta.
— Eu me lembro... — Exaltada, rapidamente, Ivana se senta, observando tudo à sua volta. Waldo e Ignis ajoelham-se diante dela — Pai! Ignis! Bruxão! — Eles se abraçam, emocionados, enquanto lágrimas escorrem de seus olhos. July, Ed, que havia voltado para próximo dos amigos, e Cornelius comemoram com um abraço, e até mesmo Wes e Ernest se emocionam com a cena.
— Filha, nós sentimos tanto a sua falta, ficamos tão preocupados com você — Waldo dizia enquanto acariciava os cabelos de Ivana. Ignis nem falar conseguia de tão emocionado que estava. A mente de Ivana clareou ainda mais quando ela viu que Ed estava ali.
— Ed! — Ivana levanta e vai até ele — Eu lembro de tudo agora! Eu lembro de tudo o que aconteceu naquele dia! — Ela repetia essas palavras exaltadas, como se estivesse revivendo o mais diabólico de todos os terrores de seu passado.
***
O corpo de Ivana estava deitado sobre o assoalho da sala da pensão. Mesmo adormecida ela ainda conseguia ver o que acontecia à sua volta, como em uma projeção astral, mas não conseguia mover um músculo sequer. De pé ao seu redor estavam três homens, o primeiro era Leonard Roberts, com uma arma na mão, o segundo era o dono da pensão, e o último um mythidiano que veio acompanhar Ivana em sua viagem para Newdawn.
O mythidiano passa sua mão alguns centímetros acima do corpo de Ivana. A energia arcana envolve o corpo da garota.
— Esse manto mágico vai manter ela protegida — O mythidiano dizia — Também terminei o bloqueio mental.
— Certeza que ela não vai lembrar de nada? — Leonard pergunta. O mythidiano confirma balançando a cabeça, assustado em ver uma arma apontada em sua direção — Muito bem — Leonard abaixa a arma.
— Então, se você quiser me pagar logo eu... — Num movimento rápido, Leonard atira no peito do mythidiano, o matando. O corpo morto dele cai ao lado do corpo adormecido de Ivana.
— Que droga cara! — O dono da pensão reclama indignado enquanto encarava o cadáver sujando o piso de sangue — Nós tínhamos um trato! Eu te entrego a garota e você me passa a grana, não tinha mortes nem feitiços envolvidos!
— Você devia me agradecer, agora não precisa dividir a grana com ninguém — Leonard encara o dono da pensão com desprezo, que lhe estende a mão — Antes de te pagar preciso que você faça mais uma coisa.
— O que?
Leonard atira no aquecedor. O aparelho explode e sai voando deixando para trás um rastro de chamas, caindo em cima de uma cadeira, que se quebra com o impacto. Assustado, o dono da pensão se jogou no chão ao ver o aquecedor caindo quase em cima dele. O antigo lugar do aquecedor começa a pegar fogo, e as chamas se espalham lentamente pela parede.
— Seu maníaco — O dono da pensão diz enquanto se levanta — Eu vou chamar a polícia.
O dono da pensão caminha em direção a uma cômoda, onde havia um comunicador logo em cima. Leonard atira novamente, deixando um buraco no assoalho bem na frente do dono da pensão. A bala passou raspando em seu calçado. Leonard aponta a arma quando o dono da pensão lhe encara, e o desprezo em seu olhar se converte em medo e intimidação.
— A próxima vai ser direto na cabeça — Leonard ameaçou firmemente — Agora pega a porcaria desse aquecedor e coloca dentro do cofre.
O dono da pensão o faz com muito esforço devido ao peso do aparelho, sentindo as palmas de suas mãos queimando ao entrarem em contato com o ferro quente. O fogo continuava se espalhando, esquentando o ambiente, e fazendo todos ali começarem a suar e sentirem os efeitos da falta de oxigênio. Antes que possa fechar o cofre, o dono da pensão ouve mais um disparo e sente uma bala perfurar sua coluna, o fazendo cair ao lado de Ivana, e do lado oposto ao que estava o falecido feiticeiro.
— Seu desgraçado — O dono da pensão dizia em meio a gemidos de dor enquanto encarava Leonard, que se aproximava e para bem diante dele, ainda com a arma em mãos.
— Eu disse que a próxima seria na cabeça — Leonard atira novamente, e o dono da pensão morre quando a bala atravessa a sua testa.
Leonard joga a arma no cofre, fecha a tampa e coloca a moldura de volta em seu lugar, enquanto começa a tossir por conta da fumaça que infesta o ambiente. Ele sai da pensão rumo às sombras da noite, limpa o suor de sua testa com um lenço, entra em seu carro e vai embora, deixando uma casa em chamas para trás.
***
— Sempre soube que meu irmão estava por trás de tudo — Ed dizia para Ivana. Agora eles estavam de volta ao jardim murado em frente a Academia, um pouco afastado do resto do grupo, que se reunia no centro do jardim. A inclinação do sol naquele horário já enchia aquela área verde de sombras e reflexos da penumbra — Acho que ele queria causar alguma crise diplomática baseado no preconceito que os mythidianos sofrem. Mas não precisa se preocupar, ele não vai mais te incomodar. Como você se sente?
— Como se algo dentro de mim, uma chama, tivesse se apagado e agora voltasse mais forte do que nunca. Consumindo o meu corpo — Ela respondeu com o olhar vago e distante — Eu ainda não sei como te agradecer, Ed — Ivana falou, agora bem mais calma, e feliz em está finalmente em casa, de corpo, alma e mente — Mas se algum dia precisar de qualquer coisa, já sabe como me encontrar — Ela sorri enquanto dar um toquezinho na lateral de sua testa, mas logo depois um semblante sombrio toma conta de suas feições — Você precisa tomar muito cuidado, eu vejo uma nuvem negra terrível em seu futuro.
— Eu faço o meu próprio futuro — Ed disse com um sorriso repleto de confiança.
— Ei, vocês dois! — July os chama — Anda logo, vamos tirar mais uma fotografia.
Ed e Ivana se aproximam do resto do grupo e um dos estudantes tira uma foto deles com a câmera de Ernest. Os momentos seguintes foram preenchidos com abraços e despedidas. A viagem estava chegando ao fim, eram exatamente cinco horas da tarde, hora de ir para casa.
O retorno foi tão tranquilo quanto a vinda. Dali de cima o pôr do sol tingia o céu com tons de amarelo quase alaranjado, como uma folha de ouro, e Wes atravessava esse contraste com a mais perfeita combinação de velocidade e agilidade nas manobras. Abaixo só havia o oceano e suas ondas tranquilas e ritmadas. No caminho, Ernest foi esclarecido sobre toda a história de Ivana, e ficou extremamente orgulhoso de saber que sua filha era tão próxima de alguém que podia se considerar um herói, alguém cujo coração, mesmo diante de todas as dificuldades do mundo, nunca deixaria de pensar no próximo.
Após o desembarque, o grupo caminha distraído em direção ao gigantesco hall de entrada do porto. Ed tropeçou na hora de descer das esteiras, e teria caído se Cornelius e July não o tivessem segurado. Assim, eles se permitem parar um pouco para gastar umas risadas, sem perceber que um homem careca, com um nariz grande e pontudo, se aproximava. Ele era alto e esguio, e andava apressado em passos travados como os de um autônomo, vestindo um traje académico com um jaleco azul turquesa claro. Alfinetado ao jaleco estava um broche dourado com a gravura de um ser redondo e cheio de tentáculos.
— Cornelius! — O homem o chama. A expressão de Cornelius se enche de felicidade ao rever seu irmão após tanto tempo.
— Oi, irmão Cérebro! — Cornelius se aproxima de Cérebro com o intuito de lhe abraçar, mas Cérebro o impede com a palma da mão — Você tá bem? — Cornelius pergunta ao perceber algumas coisas estranhas em seu irmão. A sua expressão estava séria e um tanto quanto rude, a camisa estava amassada e com alguns botões abertos. Em seguida, ele percebeu alguns arranhões na palma de sua mão e um corte feio na altura da sobrancelha. Além disso, de certa forma, Cérebro parecia assustado, com a cara inchada como se tivesse levado uma surra — O que aconteceu com você?
— Eu... — Cérebro engasga com as próprias palavras — Eu caí de uma escada. Onde você estava? Eu te procurei por toda parte — Cérebro falava de um jeito apressado e tão mecânico quanto o seu andar, como se cada palavra fosse friamente calculada antes de ser dita. Ed e July já conheciam Cérebro de fotos e projeções no drone, mas quiseram permanecer afastados. Algo, talvez a postura de Cérebro, os dizia que o assunto era sério.
— Eu fui para Myth — Cornelius responde — Acho que esqueci o comunicador em casa.
— Não importa, mas você precisa ir comigo para Tesla agora — Cérebro dizia, roubando a atenção de todos e os enchendo de curiosidade — O comitê da Sociedade da Ciência quer ver o seu projeto.
Cornelius não se coube da alegria e encheu-se de empolgação com aquela notícia, a oportunidade que ele esperava há tanto tempo. Animado, Cornelius abraça Cérebro, lhe arrancando um sorriso em meio a postura tensa. Em seguida, Cornelius se vira para os amigos e grita com todas as suas forças.
— Vocês ouviram isso!? Eu vou para Tesla! Eu vou para a Sociedade da Ciência!
July e Ed se abraçam, embalados pela mais plena felicidade. Tudo estava perfeitamente bem naquele dia. A calmaria antes da tempestade, a pior de todas.
***
Acomodada no banco do táxi, July olhava cada detalhe da fotografia tirada horas antes. Aquela foto sempre traria boas recordações, e ela achou que ficaria muito mais bonita se fosse colorida em vez de ter tons amarelados devido ao envelhecimento artificial, mas esse padrão vintage de Newdawn sempre dava às coisas uma beleza peculiar. O seu mundo era algo novo fabricado para se parecer velho, mas não com o mesmo aspecto de desgaste.
Já era noite quando o táxi se aproximou do Calçadão, e o trânsito corria livre e ágil, algo incomum pois o entorno daquela região sempre tinha engarrafamentos corriqueiros naquele horário. July tirou os olhos da foto e olhou pela janela do carro, observando as luzes da cidade e como tudo parecia mais belo após um dia prazeroso. Ao seu lado, Ernest lhe fala:
— Sabe, eu te vi na boate Closer um dia desses — Essas palavras inesperadas assustaram July Harmond, lhe fazendo encarar o pai repleta de surpresa e constrangimento.
— Eu... fui com a Lollipop — July respondeu, envergonhada — Ela me pediu para ajudar ela com uma apresentação de dança. Mas foi só dessa vez, eu juro!
— Não gosto mesmo que você ande por esses lugares esquisitos — Ernest se acomoda no banco — Mas vocês foram ótimas. Então, voltaram a andar juntas?
— Na verdade não — July pareceu cabisbaixa nessa resposta, e encarou novamente a foto em suas mãos — É complicado...
— Entendo — Ernest trocou sua habitual compreensão por uma seriedade mórbida em seguida — Preciso te dizer uma coisa, e deixar algo bem claro agora. Você vai ter que se casar com o Maxwell Williams.
— Mas... pai! — July protestava, repleta de indignação — Ele tentou me matar naquele dia, eu não suporto nem pensar nesse garoto...
— Nada de "mas" — Ernest a interrompeu — negócios são negócios — Ele evitava encarar July, lá no fundo ele sabia que Max não era uma boa opção, mas vários motivos lhe faziam ser incapaz de recusar essa possibilidade. Esse assunto havia se transformado num perturbador beco sem saída.
— Pelo menos me conta que dívida tão absurda é essa que você tem com o Heathcliff e que eu tenho que pagar! — July exigiu com semblante rígido. Ernest pareceu cabisbaixo por um momento, e finalmente conseguiu achar a coragem para olhar bem fundo nos olhos de July e desabafar.
— Quando nós estávamos na faculdade decidimos investir num negócio próprio, um loja de artigos esportivos — Ernest narrou sem pressa, mas com extrema pressão e seriedade em suas palavras — Nós até abrimos uma conta conjunta para juntar dinheiro para a loja, mas o Heathcliff começou a extraviar as verbas do projeto. Quando eu fui atrás ele já tinha gasto quase tudo que tínhamos nessa conta com festas, bebedeiras e mulheres, e isso me deixou quebrado. Desde então eu venho exigindo que ele me pague cada centavo do que gastou, já que depois disso a loja nunca saiu do papel. Mas esse desgraçado, mesmo sendo rico, nunca esteve disposto a quitar a dívida. Quando ele sugeriu que nossos filhos se casassem, e assim você tivesse acesso a parte das posses da família Williams, eu tive que aceitar, já que nunca verei esse dinheiro na minha vida.
— Heathcliff é um otário mesmo — July cruzou os braços, aborrecida. Em seguida, um sorriso de animação surge em meio a sua irritação — Tive uma ideia! Por que o senhor não se casa com a Natasha? Você precisa de uma esposa e ela precisa de um bom marido, e assim ambos se livram do Heathcliff.
— Não seria uma má ideia, mas é complicado...
— Deve ser mesmo! — July desceu apressada do carro quando o táxi chegou ao casarão, sem nem se preocupar em pegar sua bagagem.
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