Capítulo 4 - Uma Vitoriosa


     July adormeceu sob os livros, e acordou logo cedo na manhã seguinte, ouvindo alguma coisa zunindo do lado de fora de sua casa. Ela levanta da cama, preguiçosa, e se arrasta para abrir a janela, levando um susto ao ver um drone movido a engrenagens flutuando no lado de fora. O drone também tinha um gancho na parte de baixo, no qual segurava um envelope do que parecia ser uma carta.

     — Cornelius... — July diz enquanto esfrega os olhos, depois ela pega a carta — ... Espera... é do Ed.

     O drone vai embora voando, até se colidir com um pombo e sair rodopiando pelo ar, acabando preso em uma árvore. July abre o envelope e encontra uma folha de papel pautada onde havia escrito:

"Querida July,

     Lá no fundo você tinha razão, e eu fui um grande idiota. Não espero que você me desculpe, mas se decidir me desculpar, por favor me encontre nesse endereço hoje a tarde. Vá de tênis e roupas leves.

Ass: Edmond Roberts.

PS: Se o drone não voltar sozinho você pode trazer ele de volta?"

     No verso da folha havia um endereço, e só pela descrição July já pôde deduzir que lugar era aquele: uma academia.

***

     Wes Jeffords também acordou bem cedo naquela manhã. Na verdade, ele nem conseguiu dormir depois do incidente com os piratas. Agora estava colando cartazes nos arredores do museu, qualquer informação dos piratas seria bem recompensada. Emily e Alexander estavam de patrulha, e se aproximam ao verem aquela situação engraçada: Wes, desajeitado, martelando um cartaz numa cerca de madeira.

     — Ai! Essa doeu! — Wes grita consigo mesmo ao martelar o próprio dedo por acidente — Porcaria!

     — Wes, você tá bem? — Emily lhe pergunta, observando as olheiras profundas no rosto de Wes, além do cabelo loiro despenteado e a blusa abotoada errado — Você tá com uma cara péssima.

     — Porque eu tô mesmo péssimo! — Wes recolhe suas coisas e sai andando em direção ao museu — Venham, vocês precisam ver isso.

     Wes leva Emily e Alexander para o saguão do museu, onde lhes conta o ocorrido da noite anterior e mostra o que sobrou da cúpula de vitrais. Ele havia varrido o chão momentos antes, mas ainda dava pra ver alguns cacos de vidro perdidos por aí. A mesa onde o vaso ficava agora era apenas um cubículo vazio. Alexander ficou pensativo por um momento, enquanto Emily se distraiu vendo os objetos expostos, entre eles utensílios indígenas, uma cópia quase intacta do livro de mórmon e o osso de dinossauro presente na festa.

     — Estranho, esse não é o primeiro relato de piratas procurando diamantes — Alexander comenta, ele puxa um cachimbo do bolso e começa a fumar enquanto anota algumas palavras chaves num bloquinho — O que acha que significa?

     — Parece um tipo de padrão, mas ainda não faz sentido. Mesmo nos lugares que tinham diamantes eles não levaram nada. É como se procurassem um diamante específico. Me empresta isso — Emily arranca o cachimbo da boca de Alexander e puxa um trago profundo, em seguida vira para Wes — Já fez o boletim de ocorrência?

     — Não sei se vale a pena fazer, vocês sabem como a polícia aqui é meio chata com os estrangeiros — Wes diz, encarando a luz do sol que entrava no saguão através do buraco no teto. Por um momento ele teve medo das condições climáticas acabarem estragando suas obras de arte e itens arqueológicos presentes ali — Já tive problemas antes, e nunca me ajudaram só porque eu vim de Senna. E olha que Senna é uma vizinhança prestigiada pros newdianos.

     — Bom, para toda regra tem sua exceção — Alexander pousa o braço no ombro de Emily, que lhe encara desconfortável ainda com o cachimbo na boca — Estamos aqui para o que precisar.

     — Muito obrigado de verdade, mas no momento eu preciso dar um jeito nisso — Wes aponta para o teto — Acho que essa reforma vai custar caro.

     — Não sem antes tomar café — Alexander aponta para Wes enquanto dá uma piscadinha. Emily concorda com um sorriso.

***

     No horário combinado, July sai de casa. Mais uma vez ela não faz sua acrobacia padrão, mas ainda teve que se aventurar subindo na árvore para recuperar o drone. Ela estava vestida do jeito que Ed havia lhe sugerido na carta, junto do cabelo amarrado numa trança, e além do drone também trazia consigo uma garrafinha de água. Assim, ela segue pelo Calçadão como sempre fazia, mas após dobrar a esquina, em vez de atravessar a rua para a parada do bonde, ela continua seguindo em frente até a próxima esquina. Lá, ela encontra Ed na frente de uma academia, como já imaginava. Ele usava trajes parecidos com os dela, uma blusa sem mangas e um calção bem mais curto do que os outros que ela via os meninos usando nos dias mais quentes, com aberturas laterais. Ed também trazia consigo uma garrafinha de água, uma mochila nas costas e um saco preto.

     Por um momento, July se viu perdida, encarando as coxas musculosas de Ed em contraste com suas canelas finas, mas sem dúvida fortes e ágeis.

     — July, que bom que você veio — Ed disse, feliz em lhe ver — E ainda trouxe o drone.

     — É, mas acho que esse troço não vai voar de novo — Ela entrega o drone. Ed percebeu que algumas engrenagens haviam se soltado e uma das hélices havia sumido.

     — Ainda dá pra consertar, não se preocupe — Ed aponta para a academia. Acima da entrada havia uma placa com a figura de um homem musculoso carregando um planeta nas costas — Vamos entrar.

     July e Ed atravessam as catracas na entrada da academia. O local era um galpão largo e alto, de um único andar, projetado para dar a impressão de que era um grande contêiner de ferro puro. Havia algumas pessoas lá, correndo em esteiras mecânicas e levantando pesos. Ed cumprimenta Atlas, um homem musculoso de barba farta que vestia um macacão listrado, e guia July através dos aparelhos de musculação até os fundos da academia, onde grades de ringue isolavam um tatame com sacos de pancada pendurados em barras de ferro. Ed tira seus tênis e adentra no tatame curvando-se em reverência. July, se sentindo um pouco deslocada, faz o mesmo.

     — Então... o que viemos fazer aqui? — July pergunta quando Ed se senta no centro do tatame, tirando a mochila das costas e abrindo o saco. Lá dentro estavam dois pares de luvas de boxe, um azul e um vermelho, e dois pares de bandagens, ambas da cor cinza.

     — Você tinha toda razão quando disse que a gente podia lidar com Leonard, Max e tudo mais juntos — Ed entrega as luvas vermelhas e um dos pares de bandagens para July — Mas eu nem sempre vou tá disponível pra te salvar, então vou te ensinar a se salvar sozinha — Ed se levanta.

     — Como?

     — Através do muay thai — Ed desfere dois socos rápidos no ar, em seguida junta os braços com os punhos cerrados ao lado do corpo — A arte das oito armas.

     — Muay thai?

     — É uma arte marcial da antiga Tailândia — Ed começa a desenrolar as bandagens — Eu competia antes de perder o braço. Acabei sendo proibido depois porque disseram que o braço mecânico seria uma vantagem injusta sobre os outros lutadores. Bom, nunca disseram que eu não podia ensinar. E, convenhamos, que força você já tem — July ri ao lembrar do tapa que havia dado nele antes.

     Ed ensinou July a como enrolar as bandagens em torno dos punhos. Depois, eles começaram o treinamento com um aquecimento simples, correndo em volta do tatame e fazendo uma série de agachamentos, polichinelos, flexões e abdominais. Ed conseguia facilmente manter o ritmo de sua respiração e assim não se cansar, ao contrário de July que já estava ofegante e corria cambaleando. Mas ela ainda conseguiu se sair bem quando o treinamento começou de fato.

     July é destra, o lado direito de seu corpo acabou sendo mais rápido e preciso, enquanto o esquerdo se mostrou mais forte e com mais peso, apesar de desengonçado. Ainda demoraria um pouco para ela firmar a base e se acostumar a manter a guarda levantada, mas ela levava jeito e demonstrou destreza com a maior parte das variações de socos, o que deixou Ed deveras impressionado. Os chutes saiam tortos, principalmente com a perna esquerda.

     — Agora vamos praticar os low kicks — Ed orienta July, enquanto ela se posiciona diante de um dos sacos de pancada — Vai.

     July gira o quadril, levando a perna direita em direção a base do saco de pancada, o braço direito se jogando para trás para equilibrar o peso do corpo. Ao se recuperar, ela troca de base e faz o mesmo com a perna esquerda, acaba se desequilibrando e volta ao sentir seu corpo inclinar bruscamente para trás. Esse chute sai bem mais fraco que o anterior, e July sente a pancada no peito do pé.

     — Tenta de novo — Ed diz enquanto July se inclina para frente, puxando o ar bem forte para o fundo dos pulmões.

     Ela tenta novamente, mais uma, duas, três vezes, todas erradas.

     — Acho que não sirvo pra isso!

     — O corpo do seu inimigo é como uma árvore, você nunca vai derrubar uma árvore quebrando os galhos. Você precisa aplicar o golpe certeiro na raiz — Ed fala com a convicção de um professor. July ajeita a postura, levanta a guarda e tenta mais uma vez, errando de novo. Dessa vez Ed percebeu o erro, ela não estava jogando o braço certo para trás na hora de equilibrar o peso no chute esquerdo — E o seu corpo é como uma gangorra, se alguma coisa sobe outra precisa descer.

     Ela entende o recado, e dessa vez acerta, soltando um chute bem mais forte do que o esperado, fazendo o saco de pancada balançar com o impacto.

     — Muito bem, terminamos por hoje — Ed e July caminham novamente para o centro do tatame e fazem novamente a reverência, depois se sentam e começam a desenrolar as bandagens — O que achou?

     — Apesar de estar exausta, até que gostei — July responde — Nunca imaginei ser uma lutadora, até você me mostrar.

     — Para ou continua? — Ed abre um sorriso.

     — Precisa mesmo perguntar? — July encara Ed e eles riem juntos.

     — July? — Ernest a chama, chegando ali de surpresa e se encostando nas grandes do ringue. Ele estava com as roupas do trabalho, devia ter acabado de chegar do banco.

     — Pai, como me encontrou aqui? — July pergunta, surpresa.

     — Um dos empregados te viu entrando aqui quando vinha do mercado — Ernest fala calmamente. July não responde, mas faz uma expressão de esclarecimento.

     — Oi, senhor Harmond — Ed cumprimenta, acenando amigavelmente com o braço metálico.

     — Quase esqueci! Esse é meu amigo Edmond — July diz, se levantando animada.

     — Oi — Ernest acena de volta — Edmond, aceitaria jantar conosco essa noite?

     — Claro, seria um prazer.

     Os três saem juntos da academia e entram no carro de Ernest, que fica meio incomodado ao ver a filha e seu amigo sentados suados nos bancos estofados. Ao chegarem em casa, nada melhor do que um bom banho de banheira depois do treino e do trabalho.

     Em instantes estavam reunidos na sala de jantar, onde os empregados da família Harmond corriam de um lado para o outro, arrumando louças e bandejas com comida sobre a mesa. July estava com o cabelo solto e um vestido leve, seu perfume adocicado tomou conta da sala em instantes, enquanto Ed usava um traje casual que geralmente carregava consigo na mochila por pura precaução. Ernest usava um roupão de veludo para esconder o pijama que usava por baixo, após o desjejum ele planejava cair no sono o mais rápido possível. Durante o jantar, Ernest Harmond pergunta:

     — O que aconteceu com seu braço? — July acaba ficando ainda mais surpresa do que Ed após essa pergunta. Ela parecia constrangida, enquanto Ed permaneceu tranquilo e colocou mais salada em seu prato.

     — Pai, não seja deselegante diante das visitas — July lhe repreendeu enquanto preenche sua taça com suco de maracujá. Ed ri da situação com naturalidade.

     — Foi um acidente numa fábrica de automóveis em Senna há alguns anos — Ed contou sem tirar os olhos do prato.

     — Aquele do cara que fumava escondido dentro da fábrica? — Ernest pergunta com interesse.

     — Sim, meu pai era um dos acionistas da fábrica. Naquele dia eu estava fazendo uma visita na hora da explosão. Eu só perdi o braço, já meu pai... — Ed faz uma pausa. Ernest suspira, e July faz o mesmo para manter as aparências — Depois disso minha mãe me mandou para Newdawn, para estudar e recomeçar a vida. Eu nasci aqui, apesar de ter vivido um bom tempo em Senna antes do acidente — Ed ficou surpreso consigo mesmo ao perceber ser um ótimo mentiroso, mesmo aquela não sendo a primeira vez que ele inventa uma história para esconder suas origens.

     — Nas horas vagas, Ed dá aulas de artes marciais para as crianças necessitadas da cidade — July completa, essa parte não era mentira.

     — Admirável — Os três terminam suas refeições — Vamos continuar nossa conversa na sala da lareira. Quero lhes mostrar uma coisa.

     Eles se levantam e caminham para fora da sala de jantar enquanto os empregados começam a recolher tudo. Em meio ao serviço, Clementine encara Ed por um momento, deveras curiosa. A sala da lareira era bem menor do que a sala de jantar, mas também era adornada com elegância, assim como os outros cômodos do casarão Harmond. July serviu chá em xícaras de porcelana e depositou elas na mesa de centro enquanto seu pai foi buscar algo no escritório. Ernest retorna trazendo uma caixa, e se senta no sofá entre Ed e July.

     — Você nunca me disse que tinha interesse por muay thai — Ernest comenta para July, que estava curiosa com o conteúdo daquela caixa que ela não lembrava se já tinha visto antes.

     — Só fui ter agora que o Ed decidiu me ensinar.

     — Inclusive a sua filha é muito boa. Ela aprendeu o básico bem mais rápido do que eu imaginei — Ed comentou, arrancando um sorrisinho tímido e constrangido de July.

     — Mas não se preocupa pai — July pousa a mão no ombro de Ernest — Ainda vou continuar no balé, assim como a mamãe queria.

     — Karine era uma bailarina perfeita — Ernest diz observando um porta retrato com a foto de uma moça morena sobre a lareira. Sua voz carregava ares de saudosismo. Ele encara a filha — Fico feliz que esteja seguindo os passos dela — Ernest vira para Ed — E ela tem a quem puxar o talento para as artes marciais.

     — Como assim? — Ed e July perguntam quase ao mesmo tempo. Ernest abre a caixa.

     — Acho que sua avó gostaria que você ficasse com isso — Ernest tira da caixa um saco parecido com aquele que Ed levou para a academia. July o abriu, puxando duas cordinhas, e se surpreendeu ao encontrar lá dentro um par de luvas laranja. No velcro havia um nome gravado em letras brancas, Verônica Harmond.

     — A minha avó era uma lutadora? — July pergunta animada, observando cada detalhe das luvas. Ela percebe a pintura meio gasta na palma, indicando que aquelas luvas deviam ter muita história junto com elas.

     — Melhor ainda — Ernest tira um troféu dourado da caixa — Ela era uma vitoriosa.

     July estava encantada ao descobrir mais sobre o passado de sua família. Ela se sentia orgulhosa pelas mulheres admiráveis que sua mãe e sua avó foram no passado, e naquele momento sentia em seu interior surgir o desejo de honrar o legado delas. July faria o possível para ser uma Harmond à altura de suas antepassadas, e Ernest parecia perceber aquilo, abrindo um sorriso alegre enquanto abraça a filha. Ed observa a cena com admiração, mas por dentro estava chateado por desconhecer aquele sentimento de orgulho familiar. Seus pais estavam mortos, seu tio nunca foi próximo dele, e seu irmão era um verdadeiro monstro. Mas naquele momento ele se sentia acolhido, e sempre se sentia assim perto de July. Talvez não seja tão cedo para aceitar que ele gosta dela de verdade. Que ela, e seus poucos amigos, são sua verdadeira família.

***

     Após arrumar o troféu em uma prateleira da sala da lareira, exigência de July, Ernest vai para o seu quarto, enquanto sua filha acompanha Ed até a saída. Lá fora, sentados na calçada, eles aproveitam o momento para conversar a sós.

     — Eu quero que me apresente o seu amigo detetive — Ed comenta, enquanto ele e July observavam os carros luxuosos transitando pela vizinhança. A boa e velha brincadeira do "esse é meu".

     — O Alexander? Claro. Mas por quê?

     — Acho que ele pode ajudar a libertar a Ivana. Eu até fui visitá-la ontem na delegacia — Ed pareceu meio distante ao recordar os cabelos avermelhados de Ivana, achando que eles combinavam com a lua pálida daquela noite. Estaria ela se sentindo bem naquele momento?

     — Eu soube. Mas por que você se importa tanto com ela? — Agora que July sabia a verdade sobre Ed ela queria saber ainda mais, principalmente sobre o interesse dele no caso Ivana.

     — Eu conheci o pai dela quando estive em Myth. Eu estava fazendo algumas pesquisas sobre os métodos educacionais de lá — Ed fala meio cabisbaixo — Acho que se eu não tivesse trazido ela para cá nada disso teria acontecido. Sinto que tenho uma dívida com ela, ainda mais agora que ela não se lembra de nada.

     — Você é mesmo cheio de surpresas — Eles riem juntos.

     — Preciso ir embora agora. Obrigado pelo desjejum.

     Ed e July levantam e se abraçam. Durante a despedida, Ed acaba dando um beijo no rosto de July e sai andando meio sem jeito. July também se sente envergonhada, e demora um pouco para entrar em casa, olhando pro nada e vendo Ed desaparecendo nas sombras da noite. Ela também gostava de Ed, mas não sabia se gostava de si mesma para retribuir aquele sentimento. Na verdade, July nunca soube de nada.

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