Capítulo 3 - Hora do Chá


     A sala de interrogatórios era escura e abafada, Ed foi tomado por uma forte onda de tristeza ao adentrar nela, e ficou ainda mais triste ao perceber que aquele recinto era onde Ivana estava reclusa desde sua "prisão". Na sala haviam uma mesa e duas cadeiras, uma em cada extremidade do móvel. No canto estava uma cama improvisada com um colchão velho e cobertores rasgados, e ao lado uma caixa com roupas sujas. Ivana estava sentada, com as mãos algemadas num pedaço de ferro no centro da mesa. Ed caminhou até a outra cadeira e sentou-se diante da garota, a voz grave do delegado ecoou na sala.

     — Dez minutos e nada mais!

     Em meio aquele clima pesado, Ed abriu um breve sorrisinho ao lembrar de como foi fácil convencer o delegado. Ele só precisou mostrar sua carteira de identidade com o brasão da família ministerial, que era a figura de um tamanduá em frente a um sol entrecortado pelas cordas metálicas da Torre de Comando. Em seguida, Ed deu uma boa olhada em Ivana antes de dizer qualquer coisa.

     Ela era relativamente baixa e tinha o físico mais cheio, encolhida sobre a mesa parecia ser ainda menor. Seus cabelos eram de um vermelho intenso e estavam amarrados num rabo de cavalo bagunçado. Uma tatuagem de serpente multicolorida contornava o seu pulso esquerdo. Era, de fato, uma aparência exótica naquela cidade, mas não para os padrões de uma mythidiana. O quadril e o busto largos não escondiam o fato de ela ter perdido peso. E parecia intensamente assustada, com profundas olheiras escuras abaixo dos olhos, que tinham a cor azul num tom pálido. Devia ter a mesma idade de Ed, talvez uns dois anos mais nova.

     Ivana estava fitando Ed aos poucos com a cabeça baixa, repleta de desconfiança e vergonha. Dos dez minutos, três se passaram sem que nenhum dos dois dissesse nada, até Ivana afirmar:

     — Eu sou inocente — Ed a encara após um leve sobressalto, impressionado com o tom de voz firme da garota. Ela devia ter um pouco mais do que a sua idade, mas sua voz já se parecia com a de uma sábia mulher madura — Algo me diz que você sabe disso.

     — Eu sei que você sabe — Ivana pareceu confusa com essa fala de Ed — Como se pudesse ler meus pensamentos.

     — Mas quem é você? — Ela pergunta balançando a cabeça levemente em negativa, estreitando os olhos.

     — Eu me chamo Ed, você realmente não me conhece, mas eu conheci alguém que você deve conhecer, só não se lembra — Ed explica pausadamente, Ivana ouve tudo atentamente como se absorvesse as palavras no fundo de sua mente — Eu conheci Waldo Montano quando estive em Myth, e também conheci você lá. Você se lembra da Academia de Magia?

     — Nenhum desses nomes me é familiar — Ivana diz curta e grossa, ela teria cruzado os braços se pudesse — Deveriam ser?

     — Isso não importa, só quero que saiba que no momento eu devo ser a única pessoa em quem você pode confiar, e eu garanto que vou te tirar daqui — Ed diz com confiança.

     — Obrigada... eu acho — Ivana solta uma risadinha tímida enquanto encolhe os ombros — E você é advogado por acaso?

     — Melhor ainda, eu sou um amigo — Ed abre seu melhor sorriso amigável, e Ivana corresponde, trocando o semblante triste e assustado por uma tímida face de esperança. O delegado entra novamente na sala de interrogatórios, batendo a porta com força.

     — Ei, herdeiro do ministério, o tempo acabou! — O delegado diz de forma autoritária, e ao mesmo tempo debochada. Ivana encolhe-se novamente. Ed levanta e caminha em direção a porta, mas antes de sair ele diz uma última coisa para Ivana.

     — Eu volto logo. E da próxima vez que eu sair por essa porta, você sai junto.

***

     Na residência dos Williams, Max, sentado em sua cama, cruza os braços na frente do corpo com uma expressão séria e antipática quando Leonard entra em seu quarto. Leonard fecha a porta e assume novamente uma postura arrogante.

     — Diz logo o que você quer e cai fora — Max diz, ríspido — Não sou obrigado a ser cordial.

     — E eu não sou do tipo que se deixa levar por quem consegue tudo na base da lábia — Leonard arruma o seu paletó diante de um espelho, encarando a face crapulosa de Max através do reflexo — Já percebi que faz o seu tipo.

     — Esse broche na sua roupa, é o brasão da família ministerial né? Eu reconheceria esse tamanduá idiota em qualquer lugar. Além do mais, sou anarquista — Max se joga sobre os travesseiros e encara o teto de gesso liso, ainda com a cara fechada — Então se você for algum tipo de agente do governo, melhor nem perder seu tempo.

     Leonard abandona o espelho e se aproxima de Max em passos lentos e precisos.

     — Serei breve senhor anarquista, é melhor você me ter como aliado do que como inimigo. Eu posso te dar o que quiser, dinheiro, poder, mulheres... Só precisa me dar uma informação.

     — Acho que estamos começando a nos entender — Max abre um sorriso sarcástico — E qual é a pergunta premiada? Qual o nome dessa música? — Max aponta para a janela, de onde dava para ouvir uma canção sobre o mal dentro de cada um de nós tocando em um rádio da vizinhança.

     — É simples — Leonard para diante de Max, inclinando seu tronco para frente — Quem é July?

***

     Ed chegou na casa de Cornelius já no finalzinho da tarde, antes do céu alaranjado assumir um tom de azul pálido e começar a escurecer pouco a pouco. Os ferimentos causados pelo incidente da festa já estavam praticamente curados, e como ele já esperava, deixaram cicatrizes feias na sua pele branca. Como precaução, Ed ainda usava bandagens e ataduras por baixo da roupa, o que lhe deixava mais robusto do peitoral para baixo.

     Ed entra na casa e passa pela parede de relógios. O ruído dos insetos mecânicos em seu ouvido e o cheiro de café fresco invadindo suas narinas evocam lembranças felizes e ele se sente bem, como se tivesse voltado ao seu lar depois de uma longa viagem. Ele caminha alegremente ao ouvir a conversa animada de seus amigos, seus únicos amigos. Todos reunidos ali na pequena cozinha.

     — Cheguei — Ed diz entrando na cozinha e abrindo seu sorriso mais simpático. Um dos braços apoiado no arco e o outro repousado na cintura.

     — Ed! — July levanta apressada, quase derrubando a cadeira e fazendo as xícaras balançarem sobre a mesa, e corre para abraçar o amigo. Ela se joga nos braços fortes de Ed, que também quase caí — Você me deixou tão preocupada seu idiota! — Ela aperta seus braços em volta do tronco de Ed.

     — Calma aí baixinha, minhas costelas ainda doem.

     — Baixinha é sua mãe!

     July desfere um tapa poderoso no rosto de Ed, que, surpreso pelo golpe, vira o corpo para o lado. Cornelius, ainda mais surpreso, volta a rir alucinado, chegando a bater na madeira maciça da mesa. Roza agarra sua xícara e seu prato antes que alguma coisa quebre.

     — Cornelius, comporte-se! — Roza lhe repreende.

     — Nossa, eu quase morri para te salvar e é assim que você me agradece? — Ed comentou enquanto passa a mão metálica na bochecha golpeada.

     — Claro que não, foi só brincadeira — July abraça Ed novamente.

     — Ei Ed, senta aí! — Roza diz — Tem aquele pão quentinho que chega a manteiga derrete, bolo...

     — E tá tudo com uma cara ótima, mas dessa vez eu passo, preciso falar com a July em particular.

     — Tão namorando... — Cornelius cochicha para Roza, novamente com o sorriso sacana em face.

     — Me poupe! — Roza se levanta irritada, levando as xícaras vazias e os pratos sujos em direção a pia.

     — Então July Harmond — Ed lhe encara enquanto segura suas mãos — Aceita tomar chá comigo?

***

     Assim, Ed e July vão embora e pegam o bonde de volta para o Calçadão. No caminho até a estação, eles passaram por um mercado onde mulheres faziam compras acompanhadas por crianças inquietas, por bares onde homens jogavam sinuca, com tacos que possuíam molas nas pontas, ao som de cantilenas boêmias e românticas, por crianças que corriam pela rua sem preocupação, e adolescentes que andavam de um lado para o outro das ladeiras em skates motorizados e bicicletas retráteis, e por animais que resmungavam entre si em busca de alimento. Muitos diziam que aquela região era perigosa, de fato July sabia que era, mas ela sempre achou aquele lugar tão cheio de vida, e era lá onde Edmond se sentia em casa.

     Após descerem do bonde, eles adentram num bistrô um pouco afastado do casarão da família Harmond. O local era relativamente pequeno e modesto, com as paredes pintadas de rosa em tom pastel. Uma fileira de mesas redondas com cadeiras em volta se estendia diante de um balcão de vidro com bolos decorados dentro. Acima do balcão estavam depositadas garrafas de café, chá e bombonieres de diferentes tamanhos. Suspensa numa prateleira estava uma televisão, a imagem transmitida em preto e branco devido a filtros aplicados para estilizar a imagem.

     Ed e July se sentam numa mesa quase na ponta esquerda do bistrô. Do lado de fora já era possível ver os postes se acendendo à medida que o céu escurecia cada vez mais, e o movimento no Calçadão diminuía, trocando os trabalhadores apressados por pedestres descompromissados à passeio. Em instantes, um garçom de bigode esquisito chega carregando uma garrafa de chá e depositando em pequenas xícaras de porcelana. Quando o garçom se afasta, July coloca sua bolsa sobre a mesa e puxa o disparador.

     — Olha o que eu ganhei!

     — Mulher esconde isso! — Ed a alerta, rindo de nervoso enquanto o garçom passa por eles, lhes encarando com estranheza — Como assim você ganhou uma arma?

     — Eu fiz um amigo novo que é policial, na verdade ele é detetive e... — July diz enquanto guarda o disparador de volta na bolsa e esconde a bolsa debaixo da mesa.

     — July, você acabou de me dar uma ideia genial — Ed lhe interrompe, estalando os dedos — Mas não foi por isso que eu te trouxe aqui.

     — E foi para o que? — July pergunta, já curiosa.

     — Para te contar de como eu perdi meu braço — Ed tira do casaco a carteira de identidade e a coloca na mesa diante de July, o brasão ministerial refletindo a iluminação tímida do local — Meu nome completo é Edmond Roberts, eu sou o sobrinho mais velho de Solomon Roberts.

     — O ministro principal...

     Quando as cidades flutuantes se ergueram, cada uma escolheu seu regime de governo. Algumas continuaram com a famigerada democracia, outras restabeleceram a monarquia, mas Newdawn quis fazer diferente. Todas as decisões políticas da cidade eram feitas pelo Ministério, um modelo parlamentar de cinquenta representantes que debatiam entre si assuntos de interesse público para o desenvolvimento da cidade e suas relações socioeconômicas com as demais cidades flutuantes, tudo sendo mediado por um ministro principal. Quatro anos atrás, Solomon Roberts, atual ministro principal de Newdawn, estabeleceu a lei familiar, que dizia que o cargo de ministro principal era passado de forma hereditária, diferente dos demais representantes, eleitos através do voto popular. O que Solomon não esperava era o fato de ser diagnosticado com esterilidade alguns meses depois. Essa brecha no projeto foi corrigida facilmente com uma emenda constitucional, onde ficou estabelecido que na falta de um herdeiro direto o cargo de ministro principal passaria para o parente mais próximo.

     Analisando essa cadeia hereditária, Edmond, como sobrinho mais velho, é o herdeiro legítimo do cargo de ministro principal. Por sua vez, Leonard Roberts, sobrinho mais novo, é o segundo na linha de sucessão, assumindo o cargo apenas se Edmond desistir ou ser considerado incapaz de governar.

     — Você é o herdeiro do ministério... — July não sabia ao certo como reagir diante daquela descoberta bombástica. Ela estava espantada, chateada por Ed não ter lhe contado antes, e até feliz por ter finalmente descoberto a verdade. No geral, ela se sentia confusa.

     — Eis a questão, eu nunca quis esse tipo de poder — Ed diz com um certo pesar na voz — Eu quero ajudar as pessoas do jeito certo, repassando conhecimento e criando oportunidades. Não sentado numa cadeira debatendo com um monte de marmanjos que fingem se importarem com os outros.

     — Você não pode simplesmente revogar a lei depois que assumir o cargo? Ou mesmo desistir da herança ministerial? — July sugere, as palavras saindo meio apressadas de sua garganta. Ela sente algo se revirando no estômago. Esse não era o reencontro que ela imaginava.

     — Posso, mas não devo, isso abriria espaço para o meu irmão Leonard. Ele é o verdadeiro problema aqui, um cara com tendências autoritárias que deseja transformar Newdawn numa potência militar — July lembra de algumas coisas estranhas, detalhes perdidos em meio ao pandemônio no qual a festa se tornou. Ela lembra de ter visto Ed derrubar um rapaz vestido de preto fosco enquanto Max lhe arrastava em direção às chamas.

     — E o seu braço? Onde entra na história? — July pergunta, confusa demais para pensar direito, mas ainda atenta a cada palavra. A sensação de descobrir que alguém importante para você não é aquilo que você pensava ser é simplesmente péssima.

     — Logo que a lei familiar foi aplicada, minha família saiu em viagem para o interior — Ed relata pausadamente, lágrimas surgindo em seus olhos cada vez que ele respira fundo, mas sua voz mantém o tom firme — Eu ainda acreditava que Leonard podia ser uma boa pessoa, até ele me empurrar na frente de uma locomotiva.

     — Meu Jah! — As palavras atingem July em cheio. Ed enxuga suas lágrimas e permanece sério, a cabeça levemente inclinada para baixo, em direção ao braço mecânico — Cornelius e Roza sabem?

     — Sim, eu comecei o tratamento com o doutor Cérebro, ele quem projetou o meu braço. Cornelius assumiu a responsabilidade quando o seu irmão teve que ir embora para Tesla. Cornelius também me deu o disfarce perfeito para fugir dessa minha vida secreta.

     — Eu, acho que nunca poderia imaginar — July diz cabisbaixa, apoiando os cotovelos na mesa.

     — O Leonard é perigoso, faria qualquer coisa para me atingir. E eu não sei o que faria se ele colocasse as mãos em você — Ed toca levemente no queixo de July, fazendo-a olhar bem fundo nos seus olhos — Por isso acho que a gente não deve mais se ver.

     — Mas... não... — July se sente ainda mais abalada. A mistura de sentimentos martelando sua cabeça, e ela transparecendo tudo enquanto Ed permanecia com a mesma expressão fria, determinado a encerrar tudo entre eles — Eu posso te ajudar, você sabe disso. Do mesmo jeito que você me ajuda com o Max.

     — July, esse é mais um motivo. Eu nem sei porquê o Max é tão obcecado com você. Seria mais um risco. Não quero isso para a sua vida.

     — É... — July sente o pânico crescer por cima de tudo, bloqueando qualquer coisa que ela possa dizer — Eu acho que vou embora.

     July levanta e sai do bistrô, apressada. Ed lhe observa em silêncio, em seguida enterra a cabeça na mesa entre os braços, se dando conta da burrice que fez e sentido raiva de si mesmo.

     — Merda!

***

     Lá fora, July corre pela rua enquanto tenta se livrar das lágrimas que escorrem de seus olhos, por vezes esbarrando em algumas pessoas, e inevitavelmente atraindo os olhares indesejados de quem passava por ela. Já era noite, e estava atrasada para o jantar.

     Ao chegar no casarão, July vai em direção ao seu quarto, sendo interrompida no meio do caminho por Clementine.

     — Senhorita, eu lhe avisei que seu pai chegaria mais cedo — Disse a empregada — Ele a espera na sala de jantar.

     — Eu estou sem fome, por favor deixe meu jantar na geladeira para mais tarde e avise meu pai que estarei no meu quarto se precisar — July diz tentando disfarçar seus sentimentos. Seus olhos estavam vermelhos e marejados, e suas mãos tremiam.

     — Está bem? Parece arrasada? O que lhe aconteceu? — Clementine pergunta preocupada, subindo as escadas para se aproximar da garota. Um degrau a cada questão.

     — Não é nada, eu só quero ler um pouco.

     July termina de subir as escadas e corre em direção ao seu quarto. Ela fecha a porta, arruma os travesseiros sobre a cama e em seguida pega alguns livros na estante. July gostava tanto de ler que seu quarto parecia uma modesta biblioteca particular. Assim, sozinha naquela noite confusa, ela se joga no leito e começa a devorar os livros um a um, esquecendo seus problemas em meio às páginas, através das aventuras fantásticas dos heróis gregos, dos pensamentos significativos de filósofos e das biografias de personalidades interessantes.

     Hebe Camargo, Johnny Ramone, Anne Frank, Heath Ledger, Malala Yousafzai, Stan Lee, Barack Obama... dentre outros. Talvez esses sejam os seus amigos de verdade.

     Ernest até chega em seu quarto e abre a porta levemente, mas logo decide não incomodá-la e vai embora. Horas depois ela adormeceu ainda perdida nas histórias que leu, assim a noite termina para July Harmond, mas continuaria para outras pessoas.

***

     Wes, igualmente sozinho, vê a noite passar devagar, deitado em sua cama e sem sono. Ele vira seu corpo de um lado para o outro, incapaz de pregar os olhos, enquanto o tic-tac do relógio ecoa nas paredes sólidas de seu quarto. Um quarto praticamente vazio, num museu vazio, mas cheio de solidão. Enquanto se enrola nos lençóis, na tentativa de espantar o frio noturno, Wes se sente ainda mais sozinho.

     Lentamente, o sono vem de forma tímida, fazendo Wes fechar os olhos e adormecer, até um estrondo lhe fazer saltar da cama. O barulho era de vidro quebrando, e depois era possível ouvir vozes enlouquecidas. Rapidamente, Wes veste um roupão e pega uma pistola guardada em uma gaveta, corre para fora de seu quarto, atravessando um corredor largo cujas paredes estavam cheias de quadros, retratos de familiares também aventureiros, e desce uma escada chegando no saguão do museu.

     O local era amplo, e o espaço era ocupado por mesas de mármore com caixas de vidro em cima, expondo os itens históricos coletados em suas aventuras. Alguns poucos itens estavam fora das caixas, tendo suas mesas protegidas por cordas de veludo. Apesar de ser noite e todas as luzes estarem apagadas, o museu não estava escuro, pois uma cúpula de vitrais coloridos no teto permitia que a luz da cidade em sua volta penetrasse no interior da construção.

     Wes se espanta ao ver a cúpula quebrada, e grandes cordas pendendo do teto. Wes caminhou com cautela ao perceber um grande grupo de visitantes indesejados, e logo reconheceu aqueles uniformes listrados como roupas de piratas. Um pequeno grupo se aglomerava no centro do saguão, abaixo da cúpula quebrada, ao redor de uma mulher que parecia ser a capitã da gangue pirata, enquanto outros andavam através da exposição, avaliando os itens presentes. Wes ativa a sua arma.

     — Vocês de novo!? — Wes diz andando mais depressa com a arma em punho. Ele sente os cacos de vidro fazendo pequenos cortes em seus pés, mas estava irritado demais para se importar com isso — Já não basta terem estragado minha festa, agora invadem a minha casa. O que vocês querem comigo?

     Os piratas aglomerados puxam suas pistolas e apontam para Wes, que não se mostra nem um pouco intimidado. Margaret faz um sinal com a mão para que seus capangas abaixem as armas, e assim o fazem.

     — Com você nada — Margaret diz tranquilamente enquanto se aproxima de Wes — Só vim conversar sobre diamantes — Ao seu lado esquerdo estava exposto um grande vaso chinês, sem caixa de vidro em volta, e Wes estava logo atrás. Margaret consegue, com facilidade, passar por cima das cordas de veludo e pousar a mão sobre a boca do vaso, desviando para ele o foco dos olhos de Wes. Margaret empurra o vaso, fazendo Wes abrir a sua guarda, esticando uma das mãos em direção a ele e avançando seu corpo, enquanto abaixa involuntariamente a mão que segurava a arma. O momento perfeito para, num movimento rápido, Margaret sacar sua cimitarra e encostar a ponta da lâmina no pescoço de Wes, que permaneceu imóvel naquela posição, meio em pé e meio agachado, com os olhos raivosos encarando os dela, cheios de malícia. O vaso se estraçalha ao tocar o piso, e os cacos se espalham à sua volta — Onde você os guarda?

     — Em lugar nenhum, não tem nenhum diamante aqui — Wes sente o fio da lâmina pressionando sua garganta, e o suor frio escorrendo pela testa.

     — Ele tem razão — Os piratas que exploravam o local retornam ao centro do saguão — Não tem nenhum diamante aqui.

     — Seja um bom garoto — Margaret aproxima seu rosto do de Wes — E faça seu trabalhinho de aventureiro direito. Na próxima visita não vou quebrar só um vaso velho — Margaret chuta o peito de Wes, o fazendo cair de costas — Vamos embora camaradas!

     Margaret e seus capangas piratas sobem pelas cordas e atravessam o buraco na cúpula. Enquanto se levanta, Wes consegue ver a sombra do balão passando sobre o museu. Em seguida, Wes pega do chão um pedaço de cerâmica do vaso e lhe encara. Nada naquele museu era realmente velho, tudo ali ele tinha arriscado a própria vida para conseguir coletar, o seu dever como aventureiro era preservar a história. Ele não deixaria isso sair barato.

***

     O balão sobrevoa Newdawn com uma certa velocidade, e o vento balança os cabelos loiros de Margaret enquanto ela se apoia na borda, observando a cidade lá embaixo. Tão pequena, mas ainda tão grande e se estendendo em todas as direções. Margaret se permite aproveitar aquela visão encantadora, dos prédios separados por ruas iluminadas como peças de um tabuleiro de xadrez, e os carros minúsculos trafegando como formigas.

     Ver a insignificância da cobiça humana fez Margareth lembrar-se de seu falecido pai, um velho produtor de cinema que perdeu tudo do dia para a noite por ter feito a besteira de confiar nas pessoas erradas. As lembranças daquele dia fatídico ainda assombravam sua memória com a frequência de uma obsessão. Enterrar seu pai foi apenas o começo daquele pesadelo, ver todos os seus direitos serem arrancados de suas mãos foi o golpe mais doloroso que ela poderia receber. A princípio, Margareth cogitou a possibilidade de lutar honestamente, trabalhando duro em busca de condições para bancar um advogado competente, mas após ter sido despejada de seu antigo cargo como assistente de produção num estúdio de filmagens e ter passado meses sendo tratada como lixo numa central de telemarketing, ela jurou a si mesma que nunca mais se sentiria impotente, e então tudo mudou. Num dia, Margareth era uma garota apodrecida, invisível e vulgar, no outro já era a criminosa mais procurada de Newdawn.

     Logo ela recupera o seu foco. Sua nova vida era boa, ela tinha uma razão de viver e homens idiotas para fazerem tudo que ela desejar, mas poderia ser ainda melhor quando conseguir finalmente encontrar aquilo que mais almeja.

     — Hora de achar o burguesinho.

***

     Algum tempo depois, o carro de Leonard percorre uma região ainda mais obscura da cidade. Atravessando o Subnível, um bairro inteiro construído de forma improvisada abaixo de um viaduto largo que entrecorta uma das principais avenidas, Leonard chega numa localidade além das fábricas centrais, onde as casas sofisticadas dão lugar a moradias mais simples e precárias, de paredes altas e janelas quebradas, com muros carcomidos de fuligem e pichações de facções criminosas, e as vias projetadas dão lugar à ruas estreitas e cheias de buracos, enquanto uma fumaça densa paira constante sobre aquele lugar esquecido. Ali, a Torre de Comando parecia muito mais um pequeno e longínquo vulto na neblina. Com um pouco de atenção era possível ouvir um grave e contínuo barulho metálico, o som de uma das sete turbinas que mantém Newdawn no ar, e aquele bairro periférico ficava bem em cima de uma delas.

     Leonard para o carro numa rua deserta, desce do veículo e caminha através de um beco estreito até o que parecia ser uma praça circular completamente vazia. No centro do local, a vegetação crescida em torno de um canal de esgoto escondia sapos que não paravam de coaxar o seu canto noturno, e, quem sabe, algumas cobras tímidas. Leonard caminha até um ponto da praça oculto pelas sombras da noite, enojado pelo forte cheiro de urina do local. Ele ouve o barulho de alguma coisa correndo no matagal, e se vira depressa. Em seguida, ver o grupo de piratas lhe cercando por todos os lados.

     — Ora ora, Leonard Roberts no local marcado e na hora certa — Margaret diz com deboche enquanto se aproxima de Leonard, que a observa com neutralidade, as mãos escondidas nos bolsos.

     — Pontualidade é uma das minhas virtudes — Leonard tira uma folha que havia caído em seu ombro, seu traje preto já estava sujo devido a poeira presente no ar daquela região — Já esse lugar... É bom para encontrar uns amigos. Inclusive eu não estou vendo eles no seu grupinho.

     — Talvez você consiga vê-los olhando atentamente para o fundo do canal — Margaret caminha em direção a uma mureta na beirada do pavimento e se apoia nas barras de ferro, inclinando seu corpo em direção ao canal. Dali dava pra ver claramente, sob a iluminação pálida, o cano por onde a água turva jorrava.

     — Nossa, que ousadia — Leonard abre um sorriso sombrio, se aproximando dela — Não esperava menos de você, minha cara Margaret. Mas, confesso, pensei que fosse mais esperta.

     — O que disse?! — Margaret o encara. Sua expressão misturando surpresa e indignação.

     — Ainda não percebeu que contratar aqueles dois idiotas foi tudo um plano para me aproximar de você? — Leonard abafou uma risadinha — Eu sei muito bem o que tem por trás da rainha da pirataria, a garotinha que perdeu tudo e agora persegue qualquer pista pela única chance de recuperar sua fortuna, um diamante raríssimo. E eu sei exatamente onde encontrar esse diamante.

     — Quanto você quer pela informação? Eu posso pagar! — Margaret arruma o casaco. Seus olhos exibindo tamanho interesse disfarçado na postura de liderança.

     — Por que eu te contaria onde encontrar se eu posso te levar lá? — Leonard agarra Margaret pela cintura, colando seu corpo no dela, e a puxa para um ardente beijo. Margaret é pega de surpresa, e cede, entrelaçando seus braços em volta do pescoço de Leonard e sentindo seu coração palpitar de felicidade. Em volta deles, um grupo de corvos sai voando das árvores em direção à lua cheia.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top