Capítulo 14 - Abrem-se os Portões do Universo
Domingos sempre foram chatos e enfadonhos em Newdawn. A parcela mais crente da população se encaminha para os cultos religiosos nas manhãs, enquanto outros permanecem em repouso após uma noite de farra na cidade. E assim acontecia todos os domingos, no mesmo marasmo monótono. Porém, naquele dia tudo seria diferente, seria um domingo que entraria para a história do novo mundo. O dia em que os irmãos Roberts se enfrentaram.
Na aeronave Tubarão, Newdawn estava cada vez mais próxima sob a pilotagem de Wes. Ao seu lado, Cornelius assumia a função de copiloto, e logo atrás todo o resto da tripulação se acomodava nos bancos. Cada um trazia uma mochila consigo, carregada com armas e munição divididas igualmente para todo o grupo. Não era muito, mas talvez fosse o suficiente se o plano de Wes funcionasse perfeitamente.
— A previsão de chegada é para os próximos vinte e cinco minutos, mais ou menos — Wes anunciou — Depois disso é questão de tempo para sermos detectados.
— Já podemos dizer nossas últimas palavras? — Tétis perguntou a seu modo habitual, arrancando protestos de July pela insensibilidade.
— Ela tem razão — Ed disse, atraindo a atenção de todos — Provavelmente esse vai ser o dia mais difícil de nossas vidas. Nós estamos nos arriscando por um ideal, o meu ideal. E por isso quero agradecer a presença de todos vocês aqui, por acreditarem em mim e no meu sonho de um mundo melhor — Ed ponderou por um momento — Eu quero propor um jogo, quero que cada um aqui se lembre pelo que estamos lutando, do que perdeu, ou como chegou aqui. Eu começo — Mais um instante de silêncio — Minha vida acabou quando vi meu amor cair do céu como um raio.
— A minha acabou quando Manifesto virou um inferno — Wes respondeu, sem tirar os olhos do caminho que seguia com a nave.
— A minha vida acabou quando Leonard apagou minha memória — Agora foi a vez de Ivana dizer.
— A minha vida acabou quando eu recebi aquela caixa — Cornelius disse em seguida.
— A minha acabou quando eu descobri aquele segredo — July falou e Ed a encarou, percebendo a tristeza na sua voz. Ela tinha razão.
— Nós não sabemos o que dizer — Gaia comentou após ela e Tétis também terem se entreolhado por um momento.
— Vocês duas são o resto do mundo — Ed respondeu — Vocês estão lutando para que ninguém mais em Yara e Sandal tenha que lutar depois. É por isso que todos nós estamos aqui, não por nós mas pelos outros. Por aqueles que não podem se defender sozinhos — Ed sentiu uma certa sensação de gratidão tomar conta de seu corpo quando seu discurso alcançou a todos no seu pequeno grupo, que lhe ouviam atentamente e concordavam com cada palavra, mas a preocupação por colocar aquelas vidas em risco, e a de tantos outros, ainda era bem mais forte na alma de um líder não proclamado. De fato, todo mundo ali sentia medo, mas já era tarde demais para voltar atrás — Vamos dar ao Leonard tudo que ele merece!
— Mas se isso era um jogo, quem ganhou? — Tétis perguntou novamente, dessa vez arrancando mais risadas do que reclamações.
— Ai Tétis, só você mesmo para conseguir me fazer rir numa hora dessas — Ed sorria enquanto falava — Vocês são os melhores amigos que eu poderia ter — Ele só parou de falar quando percebeu que precisava limpar as lágrimas que surgiam em seus olhos. July, sentada no banco ao seu lado esquerdo, acariciou o braço do amigo — Eu amo muito todos vocês.
— Mais uma coisa pessoal — Ela disse — Quando chegarmos em Newdawn tentem ser gentis com quem encontrarem, eles não sabem o que fazem — Ed concordou balançando a cabeça.
— Não sabem mesmo.
— Mas o que é isso? — Wes percebeu algo estranho indicado no radar do painel de controle. Alguma coisa estava se aproximando por trás da nave.
— São os Mavericks? — Cornelius perguntou.
— Não, eu teria visto se eles tivessem tentando nos cercar — Wes continuava confuso com aquela movimentação estranha no céu até então deserto.
Cornelius levantou de seu banco e se dirigiu para o deck de observação aos fundos, sendo seguido por Ed e July. Chegando lá, ao longe eles viram uma nave pontuda os seguindo. O inventor não demorou para reconhecer aquele veículo movido a eletricidade.
— O que é aquilo? — July perguntou, estreitando os olhos para ver melhor.
— Um aerobus de Tesla — Cornelius apertou um botão na parede e pegou uma luneta no compartimento que se abriu em seguida. O utensílio foi levado aos olhos, e Cornelius se irritou com o que conseguiu visualizar. Uma figura de um passado não tão distante vinha no comando da nave perseguidora — Merda! É o Frankie!
— Quem é Frankie? — Ed perguntou, estranhando a situação.
— Digamos que quando eu estava em Tesla acabei me apaixonando pela pessoa errada — Cornelius guardou a luneta e eles voltaram para o painel de controle. Chegando lá, novos pontos puderam ser vistos pelo radar. Eles já sobrevoavam a cidade. Wes apontou para os aviões vermelhos que se aproximavam adiante, um grupo de cinco Mavericks — Ah não!
— Vamos ativar os escudos, preparar a artilharia e impulsionar a velocidade com o modo turbo — Wes disse enquanto procurava os comandos no painel.
— Não tem — Cornelius respondeu balançando a cabeça em negativa.
— Não tem o que? — Wes rebateu.
— Não tem nada disso aí.
— Que ótimo! — Wes reclamou com desprezo — Sem escudos, sem armas, sem modo turbo...
— Ei! O Tubarão não é uma arma! O Tubarão é uma casa! — Indignado com as falas do piloto a respeito de sua aeronave, Cornelius levantou a voz para impor respeito.
— Melhor apertar os cintos e se segurar, a parada vai ficar feia agora!
A navegação irregular do Tubarão tornou-se ainda mais caótica quando os Mavericks abriram fogo. Wes fez o melhor que pôde, guiando a nave em ziguezague, mas os disparos ainda assim atingiram a lataria de seu veículo voador, causando tremores no corpo metálico e constante aflição na tribulação. A batalha havia começado, e o confronto aéreo era assistido pela população de Newdawn reclusa em suas casas, pois as ruas agora estavam tomadas pelos guardas de Leonard, agora trajados e armados como verdadeiros soldados. Quando percebeu que o retorno de seu irmão deixou de ser uma possibilidade para se tornar uma ameaça, o novo ministro estabeleceu um estado de sítio na cidade, esperando aquele inevitável regresso.
Enquanto seus agentes escarlates voavam pelos céus, os guardas do Palácio Ministerial escoltam Leonard e Max para os túneis subterrâneos rumo ao bunker secreto. Aquele espaço misterioso agora estava tomado pelos soldados que corriam de um lado para o outro pelos túneis em direção às suas posições estabelecidas. No meio do caminho, Leonard é parado por um de seus funcionários.
— Senhor, devemos ativar a torre? — Ele perguntou, era só um garoto que devia ter no máximo vinte anos.
Leonard, com a expressão tomada por uma seriedade sombria, apenas assentiu em silêncio.
***
Mesmo limitado e desarmado, Wes mostra ser um piloto habilidoso, voltando os ataques dos Mavericks contra eles mesmos. Os aviões vermelhos voam ao seu redor, e num rápido movimento o Tubarão sai do fogo cruzado e dois de seus inimigos são explodidos. Os pilotos escapam da explosão com paraquedas enquanto os destroços de seus aviões despencam no abismo infinito em torno da cidade flutuante.
Ainda haviam três Mavericks para se livrar, mas o que mais incomodava Wes era ter o aerobus tesliano em seu encalço, com suas intenções ainda desconhecidas. Atrás dele, Frankie mantinha o foco no Tubarão, seguindo seus movimentos precisos e ignorando os disparos que cruzavam seu caminho. Wes veria o que fazer com aquele inconveniente depois, agora tinha problemas maiores para se preocupar. Ele cerrou os dentes e se concentrou, mais um disparo, mais um Maverick comendo poeira.
Então, Wes se viu cercado, com os dois Mavericks restantes voando ao seu redor e o aerobus logo atrás, mas o piloto, e todo o resto de seus companheiros, suou frio ao perceber os pulsos esverdeados surgindo no topo da Torre de Comando.
— E agora? O que a gente faz? — Cornelius perguntou sem direcionar seu olhar a ninguém em específico — Aquela coisa vai fritar a gente!
— Wes, você precisa pousar! — Ed ordenou — É o único jeito!
— Ainda não! — Wes acelerou o máximo possível, com os Mavericks ainda disparando contra o Tubarão e o aerobus tesliano lhe seguindo. Os pulsos da torre ficam cada vez mais violentos enquanto os aviões cortam o céu. Se for para pousar, Wes precisa pousar no lugar certo, e só tem uma chance para isso — Quase lá!
A Torre de Comando é disparada, tendo o Tubarão como alvo. O feixe segue velozmente em diante, com ondas tão violentas que explodem os aviões Maverick ao passar entre eles. No momento certo, Wes guiou a nave para baixo, mas ainda deixando o Tubarão ser acertado de raspão pelo disparo. Não satisfeito em atingir três aeronaves, o raio se colidiu no aerobus tesliano provocando uma explosão elétrica antes de desaparecer. As pessoas que assistiram a execução aérea na rua ficaram aterrorizadas, mas se assustaram ainda mais quando Frankie surgiu entre elas, salvo da explosão de sua nave graças a um dispositivo de teletransporte.
Enquanto isso, o Tubarão chacoalha em queda livre até se colidir no solo da praça, o ponto onde tudo começaria. Os soldados de Leonard tomam o entorno do largo, prontos para abater qualquer coisa que saísse da nave, mas o que de fato saiu foi tão inexplicável que roubou suas reações imediatas, deixando o espanto e o pavor em seu lugar. A parte superior da nave aqueceu e explodiu numa erupção de fogo de onde surgiu um majestoso dragão negro. Os soldados recuaram ao avistarem aquele monstro extemporâneo planar diante deles com suas asas vermelhas e musculosas. O ser fantástico possuía uma cobertura de escamas gigantescas que serviam como uma armadura impenetrável em seu corpo, espinhos surgiam em sua cabeça alongada e seguiam através do pescoço longo e das costas até sua cauda, onde se estendiam como lanças afiadas como as garras que compunham suas mãos e pés. Além disso tudo, o que mais chamava atenção era o brilho azul pálido em seus olhos famintos.
O dragão pousa, solta um rugido feroz e retoma seu voo, agora soltando labaredas flamejantes através de sua boca em direção aos soldados. A bola de fogo atinge um carro, incendiando o veículo e espalhando suas chamas, incinerando alguns agentes mais próximos. Outras três labaredas são disparadas em seguida, e às ordens de um superior, os soldados começam o contra-ataque, atirando contra a fera alada com tudo que tinham. Mesmo com tantos disparos simultâneos, o dragão parece pouco se afetar ao ser baleado, com grande parte do dano sendo negado pelas escamas. A criatura bate suas asas e sai voando, sendo seguida por um grupo de soldados e disparando bolas de fogo no caminho até a ponte sobre um canal ali próximo, onde mais explosões e corpos chamuscados surgem.
O dragão aterriza na ponte e chamas surgem à sua volta em meio ao seu último rugido. Quando o casulo de fogo desaparece, Ivana ressurge de sua transformação, esgotada, com as roupas rasgadas e com o corpo ensanguentado e perfurado devido aos tiros que recebeu na outra forma. Ao verem a garota mythidiana, os soldados acessam a elevação e correm em sua direção com as armas em punho, mas ao atirarem percebem que as balas desaceleram e caem antes mesmo de atingi-la. Ivana está com os braços erguidos, a respiração ofegante e os olhos tomados pelo brilho arcano de sua magia, conjurando nuvens negras que tomam conta do céu ao redor da ponte, juntando-se por meio de um intenso vendaval. Mesmo testemunhando a inutilidade de suas investidas, os soldados seguem atirando.
— Queimem no inferno! — Ela disse com seriedade quando um trovão ecoou no ar e relâmpagos correram pelas nuvens aglomeradas na tormenta. Em seguida, uma verdadeira tempestade de raios caiu sobre a ponte, derrubando sua estrutura e fazendo Ivana e uma grande quantidade de soldados desaparecer em meio às águas turbulentas do canal.
***
— Acho que aquela era a nossa distração — Tétis comentou. O grupo havia saído da nave e se preparava para avançar, tendo o Tubarão como proteção contra os tiros dos soldados e a fonte como uma barricada provisória.
— Estamos cercados de novo, temos que sair daqui — Ed disse. O som dos tiros se chocando contra a carapaça de metal do Tubarão ressoavam em seus ouvidos.
— Ainda não! — Mesmo na desvantagem, Wes parecia manter o controle da situação. O piloto ativa sua pistola com vários canos.
O topo da Torre de Comando se iluminou novamente, estava pronta para mais um tiro. Sem dúvida, Leonard iria atirar contra eles naquela posição, mesmo que grande parte de seus soldados e até mesmo a própria praça fossem obliterados com o disparo. Por um minuto, Ed pensou que aquele seria o seu fim, que havia perdido, sua missão falhada, mas Wes ainda tinha outros planos. Então, outra coisa chamou sua atenção.
Um pelouro caiu do céu em alta velocidade, esmagando um veículo dos soldados com o impacto. Assustados, os soldados próximos cessaram fogo e olharam em volta, prestes a testemunhar outras três grandes balas atingirem seus pelotões. De súbito, o céu foi tomado pelos piratas em seus balões, havia dezenas deles atirando contra os soldados com seus canhões e armas. Através das cordas, alguns homens desceram e partiram para o confronto direto. A tripulação do Tubarão ficou surpresa com aquele suporte inesperado, e um sorriso de gratidão surgiu na feição de Wes.
— Os piratas estão do nosso lado? — July perguntou com os olhos no céu, maravilhada com os balões.
— Graças a Margareth — O apoio dos piratas era a carta na manga que Wes mencionou antes, ele sabia que seus companheiros iam gostar quando vissem, a expressão no rosto deles confirmava suas hipóteses.
— Camaradas! Hoje apontem suas armas para Leonard! — Do alto de um balão, a agora nova capitã Clementine gritou, erguendo a antiga cimitarra de Margareth. Ao fim do discurso, seus capangas berraram em concordância e mais piratas se jogaram rumo a praça. Um intenso tiroteio entre piratas e soldados começou em seguida, enquanto mais pelouros choviam sobre os inimigos.
— Agora! — Às ordens de Wes, o grupo sai do esconderijo e corre pelo pavimento público em meio ao duelo.
No céu, Clementine leva seu balão em direção a Torre de Comando. Diferente dos outros armados com os canhões, o balão da capitã estava carregado com explosivos, e haviam outros três da mesma forma.
— Isso é pela camarada Margareth! — Clementine continuou avançando, e seu balão e os outros com explosivos atingiram a torre no exato instante do novo disparo, gerando uma intensa explosão esverdeada. A detonação abalou a estrutura da torre, fazendo seu cano partir e despencar em destroços que esmagaram tudo que estava abaixo. Com o preço do sacrifício de Clementine, a Torre de Comando não seria mais nada além de uma ruína vertical.
Com a possibilidade de atirar sete projéteis ao mesmo tempo, Wes assumiu a dianteira na travessia da praça, derrubando muitos agentes com seus tiros e com golpes brutos aqueles que se arriscam ao combate corporal. As meninas foram logo atrás, escoltando Cornelius que trazia o artefato explosivo na sua mochila enquanto Ed tomava conta da retaguarda. Enquanto os tiros são trocados, as balas voam de um lado para o outro.
— Agora a gente se separa! — Wes ativou as asas de seu jetpack e decolou, ainda atirando — Vejo vocês depois!
O tiroteio coletivo se intensifica, a esse ponto amontoando corpos baleados em ambos os lados do confronto. Wes voa com seu jetpack em direção ao Palácio Ministerial como um anjo salvador sobrevoando um campo de batalha, disparando sua munição misericordiosa com sua arma estilizada naqueles mortais que ousavam tentar derrubá-lo. Logo ele sumiu em meio aos prédios e o grupo seguiu em frente, tomados pela adrenalina e mirando suas armas em qualquer coisa que pudesse remeter ao perigo, isentos do julgamento daqueles que assistiam de seus apartamentos. Gaia manejava a pistola com a perícia de uma atiradora, por vezes usando a lâmina de seu bumerangue para se defender de golpes mais próximos. Cornelius já era mais precavido, buscando coberturas e esconderijos antes de abrir fogo, e protegendo sua mochila com mais afinco que a própria vida. Tétis sempre o acompanhava e roubava seus abates como um bombardeio desenfreado, animada naquele jogo mortal que só ela se interessava. Enquanto isso, July dava o seu melhor para suprir a onda de terror que tomou conta do seu corpo assim que ela desceu da nave. Com o disparador de Emily nas mãos ela atira projéteis mais com a intenção de promover distrações aos inimigos do que avançar com sua tropa. Até alguns dias antes ela pensava que nunca mais iria voltar para casa, e agora ela estava de volta, mas não em seu lar e sim num lugar desconhecido e barulhento, e ela não conseguia tirar esse pensamento da cabeça. Não era assim que ela queria voltar.
— July! — A voz de Ed a salvou da reclusão apenas para ela sentir a dor de um tiro de raspão rasgando a manga de seu macacão. Ed virou para o atirador e disparou três vezes antes de retornar para acudir sua amiga — Você está bem? — Ele segurou o braço de July, analisando o fino fio de sangue que descia por ali. Um estranho silêncio perdurou nas imediações.
— Sim, não foi nada — Ela balançou a cabeça e encarou Ed em seguida, tinha esquecido que seu refúgio estava logo ali, bem na sua frente — Vamos, temos que achar um carro.
— Acho que aquele ali é perfeito — Gaia indicou.
De fato, logo a frente um carro popular de cor azul estava estacionado na rua, num ponto relativamente seguro. Cornelius retornou até a última esquina, abriu sua mochila, tirou um dos artefatos explosivos que ele havia improvisado e jogou embaixo de um carro que voou pelos ares quando o utensílio explodiu, bloqueando aquela rua com sua carcaça flamejante. Tétis tomou a frente do grupo e retirou uma pequena ferramenta do bolso de seu macacão, uma espécie de caneta cor de cobre com um botão redondo na ponta. Ela apertou o botão e um som breve sibilou quando o carro destrancou suas portas.
— Chave universal de Yara — Ela disse com um sorriso orgulhoso no rosto quando seus companheiros se aproximaram — Abre e liga qualquer carro.
— Onde você conseguiu isso? — Cornelius perguntou.
— Todos mundo no setor de distribuição tem uma dessas — Ela respondeu — Os carros não podem simplesmente ficar parados.
— Vamos logo! Os soldados podem chegar aqui a qualquer momento! — Ed ordenou e todos entraram no veículo, com ele no banco do motorista, Tétis no do carona e o resto atrás. Com as mãos no volante, Ed chegou a uma conclusão — Eu não sei dirigir.
— O que!? — Seus amigos exclamaram juntos, surpresos com aquele empecilho bobo. Ed respondeu dando de ombros e balançando a cabeça em negativa.
— Vamos com calma — Tétis disse, assumindo a postura de uma professora de direção — Qual a primeira coisa que você faz quando entra num carro?
— Eu ligo o rádio — Ed girou o botão e a melodia alegre de "I Follow Rivers" tocou. Ed sorriu enquanto balançava os ombros e a cabeça no ritmo da música, cantarolando o refrão, enquanto seus amigos reviravam os olhos. Cornelius se encostou no banco traseiro e Gaia escondeu seu rosto no encosto a sua frente.
— Troca de lugar comigo! — Tétis gritou ao desligar o rádio bruscamente.
Assim que Ed e Tétis abriram as portas, tiros acertaram a lataria do carro, criando uma certa sensação de pânico nos passageiros. Olhando na direção dos disparos eles viram os soldados se aproximando. Um tiro quebrou a janela traseira. Eles se armaram, e Ed fez alguns disparos enquanto se esgueira para o outro lado do veículo, já Tétis escorregou por cima do capô até o banco do motorista. Lá dentro, ela assume o volante e joga sua pistola sobre o painel do carro. O veículo finalmente sai com velocidade.
— Como que você não sabe dirigir!? — Tétis questiona com revolta, tirando sua atenção do trânsito, onde praticamente só tinha eles, para encarar Ed aos gritos — É tão fácil! Qualquer idiota sabe dirigir! Dar um carro desses pra uma criança e ela sai por aí tranquila! É câmbio automático caralho! — E ela continua falando e falando — Eu vou te ensinar agora! Primeiro você aperta a embreagem...
— Tétis, cuidado! — July grita apontando para frente, atraindo a atenção de Tétis de volta para lá. Havia um carro vindo em alta velocidade na direção contrária a deles, e os veículos se chocariam bem de frente. O som gritante de buzinas atinge seus tímpanos — Segura! Nós vamos bater!
Tétis joga o carro para o lado direito da pista, mas quando o outro carro passa por eles ainda acontece uma colisão lateral que faz o carro derrapar e girar pelo asfalto enquanto o outro segue seu rumo. Tétis utiliza suas habilidades como motorista para manter o carro seguindo em frente na pista, mesmo girando, e evitando uma colisão com os prédios laterais. Por sorte eles já estavam próximos da galeria pluvial, e saíram correndo quando o carro para de vez. Tiros se fazem ouvir por trás, mas eles não param para ver o que as balas atingiram.
O som das balas se intensifica quando eles descem uma escada lateral rumo ao córrego. Seguindo em frente, o grupo logo chega na galeria pluvial através de um grande cano.
— O Wes me disse que essa galeria leva para o antigo esconderijo da Margareth, e eles se conectam diretamente com uma parte não utilizada dos túneis subterrâneos por causa da antiga estação de tratamento de água — Ed explicou enquanto caminha sobre o piso enlameado. Ao fundo, a passagem se dividia em dois caminhos, e na parede havia uma abertura férrea lacrada com uma grande válvula.
— É estranho pensar o quanto ela está nos ajudando, mesmo não estando mais aqui — July comentou, cabisbaixa.
— Acho que todos nós julgamos mal a Margareth — Ed parou de andar e se atentou ao som de passos se aproximando — Merda!
O grupo corre para o fundo da galeria e se divide para se esconder nos lados. Cornelius e Gaia vão para o lado esquerdo enquanto Ed, July e Tétis vão para a direita. O som dos passos fica cada vez mais alto, e logo o proprietário daquela perturbação surge na entrada. Os soldados, um pequeno agrupamento de cinco, também encontraram o local, dominando a única saída daquela galeria fedorenta. Agora a única opção era ir ainda mais fundo nas entranhas da cidade.
Ed sinalizou para Gaia que o caminho que eles deveriam seguir era aquele onde ele estava escondido.
— Podem ir, nós te damos cobertura — Cornelius disse, acompanhado da aceitação de Tétis.
Cornelius e Tétis saíram de seus esconderijos com as armas em mãos e abriram fogo contra os soldados, que logo revidaram. A dupla continuou avançando até o confronto armado se tornar um combate corporal e Tétis derrubar três deles com golpes de seu bastão. Cornelius deu conta dos outros dois com alguns ataques desengonçados. Enquanto isso, Gaia se esgueira para a passagem do outro lado e segue em frente junto de Ed e July. Mais passos são ouvidos, desta vez anunciando a chegada de um grupo bem maior de soldados inimigos.
— Se tivesse pelo menos algum jeito de fechar esse lugar — Tétis reclamou para Cornelius, chutando uma lata que ela achou por aí.
— Talvez tenha um jeito — Ele observou a válvula na parede — Vamos alagar esse lugar.
Enquanto Tétis permaneceu em seu lugar, atenta a reação inimiga, Cornelius correu para os fundos da galeria. Ele tirou mais um artefato explosivo da mochila e posicionou junto a válvula, antes de acionar. Cornelius correu para o esconderijo esquerdo e pressionou seu corpo contra a parede como uma criança brincando de esconde-esconde no inferno. Quando os soldados chegaram e perceberam a presença da garota logo se prepararam para a investida, e então a bomba explodiu, levando consigo a válvula e a abertura que ela continha. Tétis impulsionou seu corpo num pulo e se segurou nas barras de ferro fixadas no topo da galeria, e o local foi tomado por uma enxurrada violenta de água de esgoto. A força da água arrastou tudo em seu caminho, empurrando os soldados, tanto os caídos quanto os acordados, para o canal logo atrás. Mesmo acreditando estar protegido, Cornelius também foi arrastado pela água e Tétis, ainda pendurada, o segurou até a água baixar e eles poderem prosseguir. Ao perceber que eles formavam uma bela dupla, Cornelius sorriu como forma de agradecimento.
***
Enquanto isso, no cativeiro do Palácio Ministerial, os prisioneiros assistem ao confronto de camarote vendo os balões dos piratas correndo pelo céu e ouvindo os disparos como pequenas explosões distantes. Ponderando sobre os acontecimentos, Ernest e Natasha concluíram que havia chegado o dia do retorno de Edmond Roberts. Uma certa animação se espalhou por aquela prisão mobiliada, mas o medo era inevitável, eles ainda eram prisioneiros em posse do inimigo, e sua área de confinamento estava tomada por berros guturais que denunciavam uma luta nas proximidades.
— Fiquem aqui, eu vou ver se descubro o que está acontecendo — Ernest falou quando os sons assustadores cessaram por um momento. Tiros haviam perfurado as paredes em pontos aleatórios, obrigando todos a se jogarem no chão atrás de proteção. Emily e Alexander estavam escondidos ao lado do sofá, e Natasha havia se jogado sobre Lollipop, que por sua vez continuava apática.
Ernest caminhou em direção às portas do cativeiro e parou sem reação quando os sons retornaram. Então, as portas explodiram e se destruíram, jogando Ernest para trás sobre o piso acarpetado. Um momento de apreensão ocorreu até ser substituída pela esperança de ver Wes aparecendo com seu sorriso apaixonante estampado no rosto.
— Hora de ir embora, crianças! — Ele disse ao entrar e cumprimentar os presentes após ajudar Ernest a se levantar. Seu sorriso se desfez ao visualizar a condição na qual Alexander se encontrava — Merda!
— Ele está muito machucado, nós fizemos o possível mas ele precisa de cuidados médicos — Emily disse, segurando Alexander em seu colo. O garoto estava acordado, mas fraco demais para falar ou se movimentar, com o corpo cheio de escoriações e as roupas sujas de sangue.
— Aguenta aí, garotão — Wes entregou uma pistola para Emily, que logo se dirigiu a porta e trocou disparos com os guardas que avançavam pelo corredor. O piloto também ofereceu armamentos para Ernest e Natasha, que recusaram e decidiram carregar Alexander durante a fuga. Logo todos estavam prontos para deixar de vez aquele lugar que os aprisionou nos últimos dias, mas Lollipop permaneceu no mesmo lugar, sentada sobre o carpete com o olhar distante e vazio. Wes a chamou, mas como nenhum sinal de resposta ocorreu, então ele foi até ela — Ei, precisamos ir!
— Eu não vou sair daqui sem o Leonard — Ela disse com a voz vacilante, perdendo o controle aos poucos em sua prisão pessoal.
— Lollipop, esse cara não presta... — Wes tentou dizer, barganhando com a garota para que ela superasse a negação que sentia, mas logo foi interrompido.
— Mas ele foi o melhor que já tive! — Lollipop gritou com lágrimas nos olhos, atingindo seu limite de sofrimento onde nem mesmo ela sabia se acreditava mesmo em suas palavras — Ele me ama!
— Ele te traía! — Wes rebateu — Ele te traía com Margareth Crawford! Aquela pirata que te atacou! E só fez isso por causa dele! Leonard te usou desde o começo e depois te largou aqui! Sabe como eu sei disso? Por que ela me contou! — Lollipop permaneceu em silêncio dominada pela melancolia e a indignações, absorvendo aquelas palavras que lhe atingiam como facas em seu peito enquanto seus olhos estavam vidrados nos de Wes.
— Ei! Dá pra se apressar aí, por favor? — Emily gritou — Tem muitos guardas e tem cada vez mais chegando!
— Mas é hoje que ele paga todo mal que ele te fez — Wes disse por fim.
A indiferença e negação que Lollipop sentia foram substituídas pela fúria. Tomada pela cólera, ela se levantou e caminhou a passos pesados para fora do cativeiro. Emily ainda tentou impedir que ela saísse assim em meio ao fogo cruzado, mas Wes a disse para permitir. Já no corredor, Lollipop correu com pressa em direção aos guardas a sua frente, que não sabiam como reagir a aquela garota cheia de adrenalina, que mesmo desarmada exalava perigo. Com o esmero de uma bailarina, seus movimentos de dança foram convertidos em luta e ela derrubou o primeiro guarda com uma rasteira giratória, roubando sua arma assim que ele caiu. Lollipop trocou disparos com o guarda que veio logo atrás até que Wes juntou a ela e abateu o adversário. Um terceiro sentinela vinha pelo corredor e, com uma cambalhota, Lollipop se aproximou e o derrubou antes mesmo que ele pudesse fazer qualquer coisa.
Enquanto Lollipop e Wes avançavam pelo corredor, Ernest e Natasha vinham logo atrás carregando Alexander, temerosos com os eventos ocorridos, e Emily vinha na retaguarda, atirando contra os guardas que chegavam pelo outro lado. Mais alguns metros à frente eles chegariam no hall de entrada do Palácio Ministerial, estavam quase alcançando a saída quando foram cercados por dois grandes grupos de guardas que surgiram em ambos os lados do corredor.
— Por aqui! — Com um chute, Wes abriu as portas do escritório de Leonard e puxou Ernest, Natasha e Alexander para dentro. Emily e Lollipop entraram em seguida, fechando as portas atrás de si.
Lá dentro, o enfraquecido Alexander foi acomodado por Natasha numa poltrona, Wes e Ernest arrastaram a escrivaninha para bloquear as portas principais e as garotas analisaram as portas dos fundos em busca de uma possibilidade de saída. Uma saraivada de balas causou perfurações através da porta, e logo ouviu-se um guarda alertar os demais sobre a existência das passagens laterais. O grupo de Wes estava novamente aprisionado no covil do adversário.
— Ei, Lollipop — Emily a chamou em meio a tensão, atraindo a atenção da garota que respirava fundo para aliviar o ritmo ofegante da adrenalina de seus últimos movimentos. Lollipop ainda não acreditava no quanto ela tinha se arriscado por puro ódio, e encarou Emily de súbito como se desperta de uma hipnose colérica — Mandou bem!
Aliviada com o elogio, Lollipop fechou os olhos e respirou fundo, deixando o ar preencher os seus pulmões. Ela deu alguns passos de costas e se encostou na parede com o quadro renascentista, esbarrando num dos candelabros afixados no lado direito da parede. O candelabro mudou de posição como uma alavanca acionando um mecanismo e o quadro se revelou como uma porta escondida que girou dando acesso a um cofre secreto, onde havia uma grande coleção de armas que arrancou suspiros dos presentes, com uma lança-granadas, um conjunto de facas e vários outros modelos de pistolas e fuzis. Até mesmo uma balestra se fazia presente.
— É... Mandou bem! — Emily disse novamente, observando as armas encontradas — Acho que acabei de ter uma grande ideia.
***
Leonard odiava acordar cedo num domingo e odiava mais ainda ser acordado. Essa ação sempre lhe fazia lembrar de sua mãe, e no seu velho hábito de acordá-lo bem cedo nas manhãs de domingo para levá-lo à missa com Edmond, e de lá eles sempre iam brincar num parque. Foram tempos felizes, velhos sentimentos deixados para trás e hoje trancafiados no fundo da alma de um ministro consumido pelo ódio e pela ambição de poder. Hoje, tudo que Leonard transpareceu quando um de seus soldados veio lhe acordar foi uma irritação breve.
Em instantes, Leonard estava sendo escoltado através dos túneis subterrâneos. Os soldados designados naquela missão seguiam friamente o seu protocolo, o ministro deveria ser encaminhado em segurança para o bunker secreto da cidade o mais rápido possível, e permanecer lá até que o confronto cessasse. Max Williams também estava com eles, e ao contrário de Leonard e de seu mau humor matinal, esse parecia despreocupado. As imagens de sua infância feliz teimam em retornar em sua mente ainda sonolenta, e Leonard balançou a cabeça para se livrar daquelas lembranças inúteis para o atual momento.
Eles chegaram no bunker, e um soldado caminhou até um painel numérico para digitar a senha que destrancou a porta. Dezesseis, zero e oito, uma combinação que Leonard conhecia bem, o dia do nascimento de sua mãe. A porta se abriu e Leonard deu alguns passos dentro do amplo espaço revelado.
— Pensando bem, não vou ficar aqui — Leonard saiu do bunker.
— Mas senhor, você precisa... — O soldado que digitou a senha foi tomado pela confusão, mesmo sabendo que as decisões do ministro jamais deveriam ser questionadas. Leonard, num movimento rápido, sacou a arma que trazia sob seu casaco e disparou contra o peito do jovem soldado, que caiu ao ser atingido. Por algum motivo, talvez uma singela sensação de insegurança, Leonard decidiu sempre trazer aquela pistola consigo, independente da situação.
— O que vocês estão olhando!? Vamos! Andem! Estamos sendo invadidos, lembram!? — Leonard disse com autoridade para que seus soldados se dispersassem. Eles marcharam com suas armas em punho como se um general psiônico tivesse lhes designado ordens restritas diretamente em suas mentes — Eu vou para a central de comando, hora de ativar a última fase do plano.
— Pensei que o plano já tinha sido concluído ao se livrar do seu irmão e assumir o papel dele como herdeiro do ministério — Max comentou — O que mais você precisa? Eu sei que você queria fechar o ministério e ter todo o poder só pra você, mas foi tão fácil subornar aqueles idiotas.
— Você pensa muito pequeno, meu amigo — Leonard respondeu com seriedade — Tem coisas maiores lá fora do que tudo que já conquistamos. É nelas que eu estou mirando agora.
— Pelo visto eu fico de guarda — Max disse com um tom sarcástico.
— Você faz o que faz de melhor. Ou acha que eu não sei que você gosta de matar? Gosta da sensação de dominação ao tirar a vida de outra pessoa. Eu diria que seu pai poderia confirmar minha hipótese. — Leonard riu discretamente, contagiando Max com sua maldade incomum. Quando lhe ofereceu a pistola, Leonard percebeu que Max já tinha suas próprias armas, numa categoria que ele dominava melhor. Ele revelou a faca longa escondida no casaco.
Nenhum deles esperava que o soldado baleado ainda conseguisse ver e ouvir tudo à sua volta.
***
Quanto mais avançavam, mais Ed, July e Gaia percebiam que os túneis subterrâneos tornaram-se tão agitados quanto a superfície. A segurança do esconderijo dos piratas havia ficado para trás, agora eles percorriam os mesmos caminhos nos quais os inimigos corriam, mas ainda com a vantagem de serem silenciosos como ninjas enquanto os soldados eram barulhentos e tumultuosos. Por sorte ainda haviam tubulações, passagens secretas e o acolhedor abrigo da escuridão, mas a sensação de risco era inevitável quando qualquer passo em falso denunciava a movimentação do grupo e atraia uma enxurrada de disparos.
Passando através de um tubo de ventilação eles chegaram no local indicado por Wes. Era um espaço grande e vazio, um corredor sem começo nem final, que findava com uma parede metálica. O único modo de acessar aquela área restrita era através dos dois elevadores de serviço que levavam para os túneis tradicionais. Ed caminhou em direção a parede, analisando qual a próxima ação a ser executada. Distraído, Ed não percebeu o vão gigantesco existente entre o piso e a parede.
— Ed! — July agarrou o braço metálico e o puxou para trás antes que Ed caia no vão. Eles olharam para cima e viram a luz do dia através de grades distantes. Em contrapartida, olhando para baixo só se encontrava a escuridão.
— Acho que é para lá que a gente vai — Ed encarou as sombras no abismo, imaginando o quão fundo aquele túnel vertical deveria ser.
Com seus equipamentos de coletora, Gaia usou os ganchos para fixar pistolas nas paredes e colocou os seus companheiros para se segurarem nas cordas. Com sua corda travada, Ed pulou no abismo e usou seus joelhos para amortecer o impacto contra a parede, agora ele estava pendurado sobre a escuridão misteriosa, e os ganchos pareciam bem presos. Mesmo temerosa, July fez o mesmo, cedendo à vontade de gritar enquanto seu corpo se deslocava até ficar na mesma posição que o de Ed.
— E agora? — July notou que seu medo só aumentava ao olhar para baixo.
— Vocês só tem que puxar e pular para baixo, a corda vai cedendo aos poucos — Gaia explicou calmamente — Eu vou fixar a minha agora e nós vamos descer juntos.
Gaia se abaixou sobre o piso frio e mexeu na sua mochila até encontrar mais uma pistola de corda. A porta do elevador de serviço se abriu num choque estrondoso que ecoou pelo cômodo vazio, permitindo o acesso a um agrupamento relativamente avantajado de soldados. Aos berros, os soldados agarraram Gaia e a arrastaram pela sala até o elevador no outro lado. July agarrou sua corda mais forte, imaginando se conseguiria pular de volta para o chão e salvar sua amiga, mas ela percebeu que só havia uma direção a ser seguida, para baixo.
— Vão em frente! — Gaia se esforçou para gritar mais alto do que seus captores, se debatendo mesmo vendo que suas tentativas de libertação eram supérfluas — Vocês vão conseguir!
A porta do elevador de serviço se fechou e tudo retornou ao silêncio habitual. Gaia fora capturada, Ed e July estavam sozinhos agora. A saltos curtos e precisos, eles desceram pelo abismo.
***
Em outro ponto, Tétis e Cornelius também seguem seu rumo, rápidos como felinos incansáveis. As roupas de Cornelius estavam molhadas devido a última empreitada de alagar a galeria, deixando poças por onde passavam e preocupando Tétis com a possibilidade de estarem sendo seguidos por causa desse descuido. De qualquer forma, a presença deles nos túneis já havia sido notada, e o caminho deles seguia mais conturbado, por vezes tendo que desviar o trajeto para evitar os tiroteios que facilmente fugiam do controle naquele espaço limitado.
Durante uma de suas fugas, Cornelius entrou na sala de comunicações, encontrando o lugar tomado por agentes assustados. Esses eram o completo oposto daqueles que o perseguiam, os uniformes eram roupas simples, não traziam armas consigo, e todos estavam apavorados, de pé e com as mãos levantadas em posição de rendição.
— Por favor, não nos mate! — Um dos operadores implorou, seus lábios comprimidos e suas mãos tremendo devido à pusilanimidade. Então Cornelius lembrou-se que ele vinha com a sua pistola empunhada, o dedo relaxado sobre o gatilho.
— Nós somos apenas funcionários — Outro operador disse numa tentativa falha de misturar intimidação com súplicas hesitantes.
Cornelius ficou sem ação nem reação, aqueles homens eram como ele, peões de um jogo muito maior. Além disso, eram, de fato, apenas funcionários, desarmados e indefesos. Sua mão afrouxou-se ainda mais, quase soltando a pistola.
— Ei! — Tétis entrou correndo — Aqui é o computador central? — Cornelius redirecionou seu olhar para o primeiro agente que havia falado. O garoto amedrontado negou balançando a cabeça em silêncio.
— É no andar de baixo, dar pra chegar lá seguindo em frente — O outro operador respondeu.
No impasse entre cumprir seu objetivo e seguir em frente ou abusar da presença daqueles homens em busca de alguma vantagem na batalha, Cornelius percebeu que não podia sair de mãos vazias daquele local. Diferente das pessoas, as máquinas ainda poderiam ser atingidas, e o benefício de destruí-las poderia atrasar o rastreio do adversário. Cornelius ergueu sua pistola com precisão e atirou contra o painel de controle, descarregando a arma nos botões e telas até que todas as luzes se apagaram, deixando no lugar um maquinário arruinado, soltando faíscas e fumaça. Os operários, ainda mais amedrontados, se encolhem em suas posições, mas os disparos nem sequer chegam perto.
— Vamos embora — Cornelius ordenou saindo da sala e recarregando sua arma. Tétis veio logo atrás. Rapidamente, ela abriu a mochila de Cornelius e tirou um artefato explosivo, o ativando antes de jogar dentro da sala e recuar. Quando uma onda de fogo varreu o local, os gritos dos operadores atingiram o ápice do terror — Mas... Que diabos você fez? Eles eram só funcionários! — O lamento incendiário continuava ecoando.
— E por que eu não faria? — Tétis virou as costas e seguiu pela escuridão do túnel. Aquela ação foi um impulso certeiro de uma figura anárquica, talvez qualquer funcionário de Leonardo não hesitaria em fazer o mesmo se eles e todos os seus amigos estivessem numa sala sem saída. Não havia tempo para discutir isso, tudo o que existia era um objetivo a ser cumprido, custe o que custar.
— Só temos mais um explosivo! — Ele informou — É bom não gastar com besteira de novo!
Tétis resmungou balançando a mão, seguindo em frente sem interesse de encará-lo. Eles apressaram o passo quando o som dos tiros retornou.
***
Pancadas agressivas eram desferidas nas portas do escritório a todo momento, por vezes seguidas de balas que perfuravam a madeira com facilidade. A barricada improvisada com a escrivaninha não duraria muito tempo. Por sorte, o jogo havia virado, e agora Emily tinha um plano. Estava posicionada no centro da sala com a lança-granadas em mãos, uma arma diferente de tudo que ela já tinha visto, com o cano substituído por uma forma cilíndrica avantajada, além do peso drasticamente maior do que o de uma arma convencional. Atrás dela, seus companheiros assumiram a posição de flanco, com Wes tomando conta da porta da esquerda com um fuzil, e Lollipop fazia o mesmo na direita com a balestra. Ernest, Natasha e Alexander ficaram abaixados no centro da formação.
Quando a entrada finalmente foi arrombada pelos guardas, Emily deu início a sua fuga planejada com um disparo. Para sua surpresa, a forma cilíndrica da arma se desdobrou numa abertura e três granadas foram atiradas contra seus inimigos. As explosões jogaram todos para trás, destruindo as portas e a escrivaninha no processo. Emily atirou mais duas vezes, destruindo bancos, estantes, vasos e tudo mais que estava em seu caminho. Atrás de si, os flancos defendiam as portas laterais com suas armas, criando um estrondoso tiroteio que fez Natasha tapar os ouvidos com força.
Após a poeira ter baixado, e a pilha de corpos explodidos ser exposta, Emily saiu do escritório pelo buraco aberto por seus disparos e olhou pelo corredor, atirando para frente e para trás para impedir o avanço dos guardas que vinham por ambos os lados. A lança-granadas travou após o segundo disparo, anunciando o fim de sua munição. As armas pesadas foram substituídas novamente por pistolas e o grupo seguiu em frente, desviando dos escombros e dos corpos deixados pelo bombardeio. Natasha seguiu às cegas, com os olhos bem fechados para ignorar aquela barbaridade que presenciava, com uma mão abafando seus gritos e a outra ajudando Ernest a carregar Alexander. Seu companheiro tentava motivá-la a ter coragem e continuar, mas até mesmo ele desviava o olhar das poças de sangue nas quais pisava com seus sapatos caros.
Wes assumiu a dianteira acionando seu jetpack e sua arma de sete canos. O aventureiro voou pelo salão principal partindo do parapeito próximo a escada, e estranhou a quietude do ambiente. Um tiro fez-se ouvir e o atingiu na altura da costela, sendo disparado por um soldado oculto no ponto cego gerado pelo artifício arquitetônico. Ele atirou novamente antes que Wes pudesse reagir, o derrubando ao atingir e danificar seu adereço voador. A determinação de Wes sumiu diante daquele momento decisivo, onde ele estava caído, apontando seu armamento de baixo para cima, enquanto seu algoz lhe dominava por cima de seu corpo com uma arma apontada na direção contrária. Ele ainda pôde distinguir o movimento calmo de outros guardas saindo de seus esconderijos. Quem atiraria primeiro?
Ninguém! A surpresa tomou conta de Wes quando ele viu Lollipop pulando do parapeito numa pirueta precisa e caindo por cima do guarda, o derrubando e lutando com ele aos socos até que se rendesse. Um outro soldado se aproximou às pressas, sendo detido pelos movimentos certeiros de Lollipop ao desferir um tiro em sua cintura com a arma do agente derrotado. Wes se juntou a ela com um disparo de sete balas que jogaram seu alvo para longe. Os demais foram afugentados pela saraivada de balas disparadas por Emily na privilegiada posição mais alta do cômodo.
Enfim, os prisioneiros puderam respirar ar puro após tanto tempo de reclusão. Agora Emily poderia cuidar de Alexander assim como ele cuidou dela anteriormente, Ernest e Natasha poderiam reencontrar July, e Lollipop poderia ser livre e forte de verdade. Porém, ao perceberem o confronto aéreo que ainda prosseguia entre Mavericks e piratas, todos perceberam que Newdawn nunca mais seria a mesma após aquele domingo sangrento.
***
A quietude do ambiente tornou a descida ainda mais assustadora, como se a escuridão e a incerteza já não fossem o suficiente. Quanto mais desciam, mais o calor se intensificava, como se aquela jornada os estivesse levando direto para o inferno. Um inferno subvertido, nas alturas.
Talvez a escuridão tenha sido o maior obstáculo para July, que teve que firmar seus movimentos para evitar escorregões fatais. A umbra a impedia até mesmo de encontrar o sorriso motivador de Ed. July não via a hora de tudo acabar.
Aos poucos, a luz retornou ao túnel escaldante, e eles desceram até encontrarem as grades de ventilação. Wes estava certo ao recomendar aquela passagem inimaginável, eles saíram exatamente em frente ao bunker secreto. Ed seguiu até aqui imaginando que aquele local abafado seria o palco de sua batalha final, de seu confronto com seu irmão, mas tudo que ele encontrou foi a porta do bunker entreaberta, o lugar completamente vazio, um soldado caído com um ferimento feio, e o mais completo silêncio.
— Você... — O soldado balbuciou, apontando para Ed. Os tremores em seu dedo indicavam fraqueza enquanto a vida se esvaziava daquele corpo azarado — Você é o Ed... Você é o verdadeiro herdeiro...
— Ei, sou eu sim — Ed se aproximou do homem se agachando, ele percebeu o que havia acontecido ali e tentou ao máximo ser acolhedor naquele momento, mas o moribundo só demonstrava medo e ansiedade — Não se esforce tanto, nós vamos te tirar daqui.
— Não há tempo! — O soldado agarrou o macacão de Ed — Leonard foi para a central de comando, ele vai...
Um grito de July chamou a atenção de Ed, que se virou para vê-la derrubada por Max Williams, que vinha em sua direção como um maníaco com uma faca. Antes que qualquer ação pudesse ser tomada, Max empurrou Ed e enterrou a faca no pescoço do soldado, terminando de matá-lo.
Ed avançou sobre Max, ignorando os movimentos balançantes que seu inimigo fazia brandindo a faca para se defender, resultando em riscos na altura do braço carnal e do peito. Eles entraram em luta corporal, rolando pelo piso frio, e July tentava auxiliar com tiros que ela errava devido ao nervosismo. Não era como o confronto anterior deles no zeppelin em chamas, agora Max parecia muito mais mortífero e sanguinário como um predador, inexpressivo, frio, e nem mesmo a técnica marcial que Ed possuía para um combate como aquele parecia ser capaz de lidar com a determinação que o inimigo sentia para matá-lo.
Max enfiou a faca na barriga de Ed, que reagiu com a expressão de dor silenciosa como de quem recebe um golpe mortal, mas logo suas feições se transfiguraram para representar o esforço que fazia. Ed estava segurando a ponta da faca com seu braço metálico, concentrando ali todas as suas forças para levantar Max através do instrumento, e ele conseguiu realizar a façanha planejada, erguendo Max como um titã que carrega o mundo nas costas. O lunático foi jogado contra a parede, se contorcendo ao sentir as dores do impacto. Em seu lugar, Ed ainda estava deitado sobre o chão, recuperando seu fôlego.
Quando Max se levantou, ele agarrou July pelo braço e desferiu um tapa em seu rosto que a derrubou, e partiu por um corredor escuro. Enquanto era arrastada, July se debatia e tentava se segurar em algo para impedir o avanço, mas não havia nada naquele local além de paredes completamente lisas que ela insistia em esbarrar. Max também parecia mais forte, assim como o calor que aquecia o metal e transformava os túneis numa verdadeira fornalha. Logo atrás, Ed vinha ofegante.
Então, July entendeu porque o calor parecia aumentar tanto. Eles estavam indo em direção ao centro de Newdawn, ao local onde o carvão era coletado da superfície do planeta e processado na forma da energia que mantinha tudo funcionando. Eles estavam chegando no coração a vapor que abastecia a cidade. Agora Max conduzia July de forma violenta através de um espaço muito mais amplo, com grandes caldeirões que transportavam carvão e válvulas que soltavam fumaça densa. Tubulações se projetavam do piso, mas quando July tentou se segurar nelas sentiu sua mão ser queimada pelo metal fumegante.
Max abriu uma portinhola e empurrou July pela abertura, fazendo a garota rolar pela escuridão até cair numa plataforma gradeada sobre uma grande caldeira. O calor ali era insuportável, e abaixo tudo que ela viu foi a máquina carregada com um verdadeiro mar de chamas ígneas e borbulhantes. O carvão ardia incandescente enquanto a onda de calor subia, e logo July percebeu seu corpo sendo coberto por suor e desespero. Ela se levantou assim que viu Max surgir através da passagem.
July pegou seu disparador e apontou para o garoto.
— Melhor não tentar nada, Max Williams!
Max continuou se aproximando dela, lentamente e intimidador.
— O que você vai fazer? — Ele bateu no disparador com sua faca, derrubando-o — Você é July Harmond! — Max começou a dizer com deboche, ainda se aproximando — Você é frágil! Fraca! Indefesa!
July nada respondeu, ela sabia que não era verdade. Em vez de se abalar, July reagiu às provocações levantando a guarda e pondo seu corpo em posição de muay thai. Ed a havia ensinado muito bem, e agora ela possuía conhecimento suficiente daquela arte marcial para improvisar golpes e contornar a situação, tão focada ao ponto do calor não mais a incomodar. Os socos foram deferidos tão rápido que Max mal podia acompanhar os movimentos, sentindo o impacto dos ataques em seu peito, rosto e abdômen, mas ainda consciente o suficiente para revidar com sua faca. A lâmina atingiu a parte interna do braço direito de July quando ela avançava num cruzado.
— Seus truques novos não me impressionam! — Max a provocou novamente, fincando a faca ainda mais fundo para agravar o estrago. July se contorceu com a dor e foi jogada para longe quando Max a empurrou pelo peito. Ela teve sorte de ter caído de pé.
O sangue manchava a manga do macacão, mas a adrenalina do confronto ajudava a reter a dor. July bufou e avançou novamente como se não sentisse mais nada, enterrando seu punho fechado num soco certeiro na barriga que fez o corpo de Max se inclinar, tendo o ar arrancado de seus pulmões. Era como se July tivesse ficado mil vezes mais forte após ter recebido aquela facada.
— Impressionam agora? — Ela debochou. Max recuou alguns passos com os braços cruzados sobre o ponto acertado. Ele cuspiu o que parecia ser sangue, mas quando uma labareda escaldante ascendeu da caldeira e iluminou o ambiente, July percebeu se tratar de um líquido esverdeado e viscoso que escorreu de sua boca enquanto seus olhos eram possuídos por um brilho da mesma cor, mas num tom muito mais ofuscante.
Max emitia grunhidos apavorantes enquanto encarava July sob a luminosidade monstruosa que habitava em seus olhos. July perdeu seu foco, cedeu sua postura, o braço ferido começou a incomodar, mas ela teve a certeza de que não poderia parar de lutar quando Max veio em sua direção desferindo golpes insanos e urros animalescos. Desviar deles foi complicado, e usar seus chutes foi a melhor maneira encontrada para afastar seu adversário, mas ainda mantendo a precaução para evitar ser atingida novamente pela faca.
O movimento derradeiro veio quando July fincou seu pé na grade e girou seu corpo num chute circular. Max foi empurrado pelo golpe em direção à beirada da grade, e sua consciência pareceu retornar quando ele cambaleou e perdeu o equilíbrio. Mesmo depois de ter tido sua vida em risco por ele tantas vezes, mesmo depois de tudo o que aconteceu, de tanto ódio sem motivo e abscesso, July ainda se jogou pela grade para agarrar a mão de Max antes dele despencar rumo a morte certa.
— Você é uma grande idiota mesmo! — Max debochou, pendurado sobre aquela fornalha — Por que você ainda perde seu tempo tentando me salvar!?
— Você ainda não respondeu aquilo que eu perguntei naquele dia — July relembrou, forçando sua mão a continuar segurando Max — Por que você é tão obcecado por mim? Por que!?
— Eu já falei! — Max berrou, alucinado. O brilho verde retornando aos seus olhos — Eu sou um cara mau! E a maldade não precisa de motivos! A maldade só precisa de conflitos! — Os berros transfiguravam-se em uma risada macabra e descontrolada — Conflitos! Conflitos! — Ele repetiu cada vez mais essa palavra com tanto afinco em meio a sua gargalhada, até que todas as suas verbalizações se tornaram um incômodo silêncio — Nos vemos no inferno, July Harmond!
Max enterrou sua faca na mão que July usava para lhe segurar, arrancando um grito estridente da garota. O punho atingido se tornou frouxo, e Max caiu com os braços abertos e o corpo reto como um mergulhador rumo a um mar de fogo. O que mais perturbou July não foi a onda de chamas revoltosas que incinerou o corpo o corpo de Max quando ele adentrou na caldeira borbulhante, mas sim um outro detalhe que ela nunca poderia esquecer. Enquanto caía no seu leito fumegante, Max sorria contemplando uma visão sideral destinada apenas a ele em seus últimos minutos.
July permaneceu caída de bruços sobre a grade, perplexa com o que acabou de presenciar.
— July! — A voz de Ed a chamando acalmou seus nervos, mas ela continuou deitada até ele se aproximar, trazendo o disparador recuperado consigo — July! Meu Jah, o que aconteceu aqui!? Cadê o Max Williams? — Ed perguntou, virando a garota de barriga para cima e analisando com preocupação os ferimentos no braço e na mão. O sangue continuava correndo, vibrações assolavam a extensão do braço, mas a mão esfaqueada não mais se mexia.
— Ele morreu — July respondeu, sentindo todas as dores quando a euforia abandonou de vez o seu corpo — Max Williams está morto. Ele caiu lá embaixo... — Os metais superaquecidos continuavam borbulhando e liberando calor e chamas na caldeira — Mas... Eu não sei... Não parecia ele. Ele já estava morto antes! Tinha alguma coisa nele, Ed!
O coração de July acelerou em seu peito, assim como as gotículas de suor por todo o seu corpo. Sua boca tremia a cada palavra, e seus olhos estavam vidrados no vazio, ainda revendo o brilho esverdeado que dominou Max momentos antes de decesso.
— Calma, tudo isso já vai acabar — Ed disse apenas por sentir a necessidade de não ficar calado diante do tormento de sua amada. O medo também o havia atingido — Você vai ficar bem, todos nós vamos.
***
Cornelius encontrou a sala do computador central com estranha facilidade, sem dificuldades em seu caminho, o que levantou em Tétis a suspeita de ser mais uma armadilha. De qualquer forma eles seguiram em frente, determinados a explodirem a máquina e saírem dali o mais rápido possível.
Diversos detalhes no ambiente denunciavam que eles haviam chegado no lugar certo. Agora estavam num cenário completamente destoante do anterior, num espaço apertado tomado por fios e cabos de diversas grossuras. O familiar som de eletricidade correndo alertou Cornelius para os gatilhos mentais de sua passagem por Tesla, e um arrepio percorreu o corpo do inventor durante a busca pelo alvo perdido na desordem eletrônica.
Seguindo o emaranhado de fios, Cornelius encontrou o computador central personificado na carcaça de Roza. O choque do reencontro com sua criação impediu Cornelius de imaginar como diabos ela poderia ter chegado ali, e agora estava muito diferente de como ele havia deixado. Roza estava emoldurada no centro do cômodo constrito, completamente nua e robótica. A parte inferior de seu corpo havia sido arrancada a partir da cintura, e era ali onde todos os cabos do espaço se conectam. A textura de sua pele parecia mais rígida em contraste com as órbitas vazias de seus olhos sem vida. Os braços da androide pendiam de seu corpo, tateando no ar a sua frente como se buscasse por telas invisíveis touchscreen. E ela estava funcionando, com luzes piscando e movimentos restritos e breves, mas sua humanidade havia sido subtraída na máquina.
— Droga... — Tétis comentou ao perceber que seu companheiro estava imóvel, encarando Roza com incredulidade. Ela logo percebeu o motivo de tanto comoção — É a namorada robô, né? — Cornelius a ignorou, vidrado no que havia à sua frente — Cornelius! O que você tá fazendo! — Tétis protestou quando ele começou a se aproximar de Roza — Cara, temos que sair daqui! — Mas ele seguiu na aproximação, e ao ser ignorada, Tétis decidiu ficar calada pela primeira vez na vida.
Cornelius parou diante de Roza, passou sua mão sobre as placas metálicas do rosto da garota robótica e chamou o seu nome. Roza reagiu e o encarou, mas ela não parecia ter o reconhecido e continuou sua labuta com indiferença. A Roza de antigamente já não mais existia, e isso destruiu Cornelius por dentro. A mochila de Cornelius cedeu aos seus ombros e caiu no chão, de onde ele retirou o último artefato explosivo e acoplou no peitoral da garota, seguido de um abraço apertado e lágrimas aos olhos.
Tudo aconteceu num piscar de olhos. O choro de Cornelius se intensificou, os braços de Roza reconheceram o afeto e acalentaram seu velho amigo num abraço, e Tétis correu na tentativa de evitar aquela ação imprudente, mas o explosivo já havia sido acionado. Uma explosão varreu a sala, espalhando cabos e fios para todos os lados, soltando faíscas. Tétis foi jogada para o outro lado da sala, e se levantou quando a poeira baixou. Sua cabeça doía, sua visão estava turva, e um zumbido agudo penetrava em seus ouvidos. Ela olhou em volta e encontrou o cenário de destruição que confirmava a conclusão da missão, mas o sentimento de dever cumprido havia se distanciado daquele recinto esquecido. Ao redor, tudo que havia era escuridão, faíscas, cabos destruídos e peças metálicas.
— Droga... — A cabeça de Roza rolou aos pés de Tétis, mas ela procurava por outra coisa.
A figura de Cornelius foi encontrada nas ruínas eletrônicas, caída de um modo supostamente desfalecido, e coberta de sangue e fuligem. Tétis correu até lá e se jogou no chão ao seu lado, chacoalhando o rapaz até que ele reagiu aos seus estímulos, mantendo os olhos fechados e agarrando seus cabelos espetados.
— Tétis... — Cornelius continuava chorando — Eu perdi a Roza, o Johnny, o meu irmão Cérebro... Eu perdi tudo!
— Não! — Tétis balançava a cabeça, sentindo sua voz engasgar naquele momento inoportuno — Você ainda tem a mim!
Não apenas Roza encontrava-se desmontada agora, Cornelius também estava com o coração partido e os sentimentos abalados, e com a perna esquerda mutilada pela explosão.
***
Quando um soldado a puxou pelo rabo de cavalo, Gaia desejou tê-lo escondido melhor sob o macacão. Ele a jogou contra a parede da galeria e desferiu um soco potente em sua barriga. Talvez em algum momento do passado esse homem tenha aprendido que não se deve bater em garotas, mas quando o governo subverte seus valores quase nada escapa a doutrinação ideológica de uma necropolítica. Homens, mulheres, crianças, hétero ou homossexual, branco, negro ou qualquer outra raça e etnia, aos olhos de um soldado de Leonard todos representam a mesma coisa, inimigos que devem ser exterminados o mais rápido possível.
Levantar a perna foi a maneira encontrada para afastar seu agressor, mas também a brecha para ser derrubada no piso enlameado pelo fluido turvo restante do alagamento. Agora ele estava por cima, na posição de um algoz dominante prestes a executá-la. A lâmina retrátil do bumerangue foi acionada e o instrumento convertido numa adaga mortal, e com ela Gaia pôde inverter a situação naquele confronto, enterrando seu objetivo contundente com a força necessária para perfurar os coletes de proteção do soldado. Ele caiu e ela se levantou a tempo de identificar mais dois soldados entrando pelo cano.
Gaia avançou antes que eles sacaram suas armas, e os venceu aliando os ágeis movimentos de seu corpo com cortes profundos desferidos em seus pontos vitais. Então percebeu que lá no fundo eles não eram tão diferentes de um Behemoth, de um carbúnculo corrupto ou de qualquer outro monstro que habita nas areias escaldantes do deserto. Se você encontrar o ponto fraco e acertar no lugar certo, eles caem muito fácil. Gaia respirou ofegante ao fim da batalha, foi difícil se livrar daqueles homens malditos, e agora ela ouvia mais deles vindos pelos fundos. Furiosa, ela joga o bumerangue com toda a força restante em seu corpo junto de um brado estridente que ecoa pelo túnel cilíndrico.
O bumerangue se finca na parede pela lâmina, e Tétis grita ao quase ser atingida.
— Que merda! Tá maluca garota!?
— Desculpa — Gaia fechou os olhos e respirou aliviada por finalmente ver um rosto amigável em meio aquele inferno, mas ela também viu a situação em que Cornelius se encontrava, lutando contra si mesmo para se manter acordado — Adonai...
— Me ajuda a tirar ele daqui!
Cornelius passou o braço sobre os ombros de Gaia, e assim foi mais fácil ser carregado. Seu sangue manchava o líquido que corria pela galeria, o vermelho destacando-se no cinza fétido.
***
Central de comando, essa era a única pista do paradeiro de Leonard, mas Ed não fazia ideia de onde diabos isso ficaria naquele emaranhado de túneis que se tornavam cada vez mais labirínticos à medida que eles avançavam. Pelo menos a movimentação dos guardas havia diminuído, fazia tempo que eles não encontravam nenhum no caminho, provavelmente os piratas haviam vencido lá em cima e controlado a situação.
Uma agitação nas sombras adiante fez Ed e July se encararem e suas espinhas gelarem. Havia alguma coisa correndo logo a frente, e parecia estar rindo alucinado. Ed e July deram as mãos e seguiram em frente pelo corredor escuro, como se o caminho os tirasse da realidade rumo a um limbo de pesadelos. Mas a inevitável existência se consolidou quando ao fim do corredor eles encontraram uma porta metálica. Sem outra opção a não ser continuar prosseguindo, Ed abriu a porta e eles adentraram na central de comando.
Era uma sala redonda e estranhamento esverdeada, tão escura que não dava pra ver nada que não estivesse sob a luz frívola concentrada no centro do local. Havia mais um painel de controle, e Leonard estava ali, obviamente.
— July, Ed, que bom que vocês estão aqui. Por que vocês demoraram tanto? — Leonard provocou quando eles se aproximaram cautelosamente do círculo iluminado — Bom, se vocês estão aqui então significa que o Max falhou na única função dele.
— Cala a boca, Leonard! — Ed o repreendeu, sem saco.
— Que lugar é esse? — July olhou em volta, percebendo estranhos desenhos abissais cravados nas paredes, que na escuridão pareciam muito mais pedra cinzenta do que metal como todas as outras.
— Nós estamos exatamente embaixo da Torre de Comando, não é legal? — Leonard encarou a lâmpada redonda — Quanto mais conhecemos Newdawn, mais de seus segredos são revelados.
— Leo... Já chega — Ed engoliu em seco absolvendo a grosseria de suas palavras em nome de um tom mais compassivo, seu último recurso em resgatar seu irmão da maldade que arruinou a sua vida — Isso já foi longe demais. Por favor, se entrega e a gente pode resolver isso juntos, como família.
— Você fala exatamente como a nossa mãe — Leonard continuava indiferente — Não é a toa que você era o favorito dela.
— Então era isso esse tempo todo? — Ed se aproximou ainda mais, mesmo sob os protestos de July para manter a prudência.
— Você nunca entenderia.
Leonard sacou sua arma, o cano reluzindo no escuro enquanto ela se desdobrava, e disparou rapidamente. Ed e July se jogaram no chão, surpresos com o movimento. Enquanto Ed avançou, July engatinhou rumo a proteção das sombras, sentindo seus ferimentos doerem ainda mais.
— Eu tentei ser legal, mas você não me deixa escolha.
Ed se levantou e seguiu em frente, planejando uma maneira de agarrar Leonard e o imobilizar, ao mesmo tempo achou ser uma boa ideia alcançar a arma guardada em seu macacão e se preparar para um contra-ataque, mas Leonard nem sequer se abalou com a investida. Ele permaneceu na mesma posição, com a mesma expressão debochada, e atirou novamente, atingindo Ed na barriga. July gritou em desespero, incapaz de intervir no embate dos irmãos Roberts.
Ed recuou ao ser acertado, mas conseguiu prosseguir desviando milagrosamente dos próximos disparos. O punho no qual Leonard erguia a arma foi agarrado, e mais alguns movimentos concluíram a dominação, então Ed disparou sem uma intenção certa de atingir seu irmão, ainda lhe parecia um absurdo ter que usar armas de fogo contra um familiar. Antes de Leonard ser derrubado e desarmado com golpes que não o afetam devido ao uso da fibra indestrutível de Tesla, ele pressionou sua mão livre sobre um botão vermelho no painel de controle o mais forte possível.
— Não vai adiantar — Ed ignorou o sangramento que se formava em sua barriga e prendeu Leonard firmemente sob seu corpo — Nós destruímos a torre.
— Tem um propósito oculto na torre que você nunca entenderia, e nem há mais tempo para explicar — Leonard encarou a expressão de confusão que se formou em seu irmão, o sorriso alucinado retornou — Agora é só rezar!
A sala foi tomada por uma luz esverdeada advinda dos desenhos nas paredes pedregosas ao redor. A coloração brilhosa revelava seus formatos, formando figuras de tentáculos e escritos indescritíveis. Um misto de terror e euforia dominou o ambiente quando a iluminação verde se transmutou num tom de púrpura profundo, uma cor que ultrapassa as limitações de seu formato e ressoavam como um cântico esotérico, ao mesmo tempo que dançava visualmente em borrões fantasmagóricos. O púrpura brilhou ainda mais intenso quando um som ensurdecedor causou tremores nos túneis abaixo da cidade. A torre havia sido disparada de novo, dessa vez de forma bem diferente das anteriores.
***
Pelas ruas, a batalha já beirava o seu desfecho naquele domingo sangrento. Temendo a repreensão popular, os piratas se retiraram após controlarem a situação e voltaram para os seus esconderijos à margem da sociedade. A população retomou a sua movimentação nas ruas numa quase normalidade, mas agora desvendando os cenários dos duelos. A sombra macabra que pairava sobre Newdawn se dissipou, dando lugar a um cenário onde a reconstrução do bem comum se tornou o principal interesse. Grupos de enfermeiros e paramédicos corriam pela cidade com suas ambulâncias escoltando os feridos rumo aos hospitais, enquanto os bombeiros avaliavam os estragos e procuravam a melhor forma de repará-los.
Muitos prédios haviam sido danificados na batalha, algumas casas tiveram suas paredes arrancadas, enquanto buracos circulares foram deixados nos muros, e várias e várias ruas ficaram obstruídas com as carcaças de veículos carbonizados. Demoraria muito para que os reparos ficassem prontos, mas talvez nem tudo voltasse a ser perfeito depois daquele dia, alguns daqueles cenários desolados continuariam naquele estado, talvez como um lembrete do que passaram, e um aviso para evitar os futuros erros.
Os arredores da Torre de Comando se tornaram rapidamente um ponto de aglomeração, onde todos estavam curiosos para entender como aquela imponente construção havia sido destruída tão facilmente. Gaia e Tétis arrastaram Cornelius até ali, passando pelos olhares de uma população sem empatia para responder aos seus pedidos de socorro. Ninguém em Newdawn já imaginou viver algo assim, a cidade sempre foi feliz demais para cogitar essa situação, ninguém sabia como reagir ao ver duas meninas carregando um rapaz coberto de sangue e com a perna mutilada. Eles se tornaram reféns de seus receios e arrependimentos.
As garotas acomodaram Cornelius no pavimento sob um ponto de sombra, Gaia estava internamente desesperada, perdendo as esperanças de conseguir salvar seu amigo, enquanto Tétis escondia sua fúria dentro de si. Cornelius agora estava com o olhar vago, mirando o céu sem um ponto fixo e lutando para permanecer desperto. Nenhuma delas podia aceitar que Cornelius encontraria seu fim assim, logo ele que havia feito tanto, havia se sacrificado para lhes dar uma chance de vencer Leonard da mesma forma que havia se sacrificado antes para que elas pudessem derrotar o Morspheratu. Logo ele que havia tido uma vida tão difícil, havia perdido o irmão e todas as suas perspectivas de existências. Quem sabe Cornelius teria encontrado no além-vida a paz que nunca teve em sua encarnação, mas Ivana surgiu na multidão.
— Ivana! — As garotas exclamaram ao vê-la abrindo caminho pela audiência imóvel.
— Mas como!? Nós te vimos lá... — Gaia nem sabia o que dizer.
— Não há tempo para explicar — Ivana se abaixou diante de Cornelius e estendeu suas mãos para conjurar um encanto. O corpo fragilizado do inventor foi coberto por um manto transparente de energia arcana — Isso vai ajudar por um tempo, mas ele precisa de cuidados médicos urgentes.
Elas avistaram um grupo de enfermeiros carregando macas até uma ambulância, mas assim como os outros eles também ignoraram seus chamados, estavam muito ocupados amparando um rapaz negro e coberto por ferimentos que vinha junto de uma moça de cabelo castanho vibrante.
— Ei! — Ivana soltou um berro estrondoso que ecoou nas mentes dos enfermeiros, a única forma de chamar as suas atenções — Estamos precisando de uma ambulância aqui!
Os enfermeiros assentiram e se aproximaram. Tétis tentou ajudá-los a acomodar Cornelius na maca, mas foi impedida devido a gravidade da situação, qualquer movimento brusco poderia ser fatal.
— Eu vou com ele — Tétis anunciou acompanhando os profissionais da saúde rumo a ambulância — Já vi o suficiente disso aqui.
— Eu acho que...
A fala de Gaia foi interrompida quando Ivana agarrou sua mão, sendo afligida em seguida por um estranho mal estar. Ivana teria caído com a tontura se Gaia não a tivesse lhe segurado e a ajudado a se recompor. Nesse instante, um raio púrpura se concentrou no topo do que restou da torre, circulando como o fluxo de um buraco negro e disparando contra o céu de Newdawn num estrondo que manchou a plenitude celeste com uma névoa tempestuosa e arroxeada. O chão em volta da torre começou a tremer e a luz do subterrâneo atingiu a superfície pelas frestas do pavimento. Então, houve um estrondo e a luminosidade alienígena arrebatou pedaços cada vez maiores de matéria em direção a névoa lá em cima. Anéis rochosos se formaram pela influência gravitacional, e ao chegarem no ponto mais alto explodiram novamente, condensando a nuvem púrpura num buraco tomado pela tormenta relampejante. Aos fundos daquela brecha, gigantescos tentáculos negros serpenteavam rumo ao nosso universo, atraindo pedaços fragmentos da construção arruinada para seu interior. Aos poucos, a antiga estrutura da Torre de Comando era reduzida a farelos e sugada rumo ao desconhecido.
Todos observaram aquele fenômeno inesperado com aflição e medo, ninguém sabia explicar o que era aquilo, e até os trabalhadores haviam parado para testemunhar a movimentação do desconhecido. Mesmo quase inconsciente, Cornelius ainda pôde assistir aos eventos, e reencontrar a figura de Frankie.
— Está começando! — Ele gritava, ajoelhado no piso da cidade, com seus olhos vidrados no céu — Ele está vindo para nós! Só ele quem abre os portões do universo!
Os fatos cósmicos no céu correram o mundo, tornando os mares de Yara revoltosos e deixando Tryton e seus homens em estado de alerta. Os carros deixaram de correr em Senna, e nas planícies do deserto Sacha rezava para que Gaia estivesse a salvo. Do outro lado de Newdawn, os transportes do Cajueiro também pararam, enquanto Archibald e sua avó faziam de tudo para tranquilizar um inquieto Scott. Uma série de bugs indecifráveis pôs em risco as leis da física virtual de Cypher, assim como a euforia tomou conta dos membros da Sociedade da Ciência.
Porém, em Myth a situação era ainda pior devido ao aspecto sensitivo dos seus habitantes. As aulas foram suspensas na academia de magia e os alunos reclusos em círculos de meditação para controlar os ânimos. Enquanto isso, Waldo observava tudo de sua sala particular sem saber o que fazer para proteger os seus pupilos, e sem a menor ideia do paradeiro de Ivana.
Atrás de si, Ignis estava em posição de meditação, mas seu espírito estava longe da quietude. Seu corpo inteiro tremia e suava, seus olhos estavam fechados e seu rosto balançava de tanta perturbação como um mago contemplando as infinitas variantes do multiverso.
— Pai... — Até sua voz estava vacilante. Seus olhos se abriram revelando o famigerado brilho esverdeado e demoníaco — Ele tá aqui... Pai... Ele tá aqui...
***
Lá embaixo, permanecer na central de comando havia se tornado uma tarefa árdua. As cores ofuscavam a visão dos presentes e os sons perfuravam seus tímpanos, tudo agora era confuso e conturbado. Leonard era o único que não havia sido afetado, sentindo um inexplicável prazer em estar ali em meio aquele caos multicolorido.
A situação no duelo fraternal havia mudado repentinamente. Leonard havia se soltado de Ed e o desarmado, por sua vez Ed estava caído, recebendo diversos golpes em sua barriga baleada.
— Não adianta mais lutar irmãozão, Belliscientia já está entre nós! — A euforia sobrenatural tomava conta de Leonard a cada palavra — Ele nos levará ao seu novo mundo! Um mundo de justiça divina onde o mais forte sempre prevalece! Nós só temos que alimentá-lo adequadamente.
Tais informações clareiam a mente de Ed mesmo em meio a violência e a perturbação. Cornelius e Ivana haviam falado sobre essa mesma entidade, a figura que se alimenta do conhecimento e da guerra. Isso mudava tudo, Leonard não possuía desejos puros de poder e dominação, ele estava esse tempo todo possuído por um demônio que o usava para benefício próprio de sua natureza adversa. Por mais ridículo e difícil que parecesse ser para engolir, isso explicava tudo.
July Harmond observava tudo, farta com sua imobilidade. Ela levantou-se e tomou seu disparador, decidida a encerrar o confronto sozinha e salvar seu amado, junto do mundo todo. July mirou bem na direção de Leonard e disparou, mais uma vez sem conferir o tipo de munição que havia colocado. Explosivo ou preventivo, qualquer um seria útil naquele momento. Quando o projétil atingiu Leonard, uma pequena explosão destroçou sua cabeça, deixando um corpo decapitado e uma vasta enxurrada de sangue no local. O que sobrou de Leonard caiu sobre o chão ao lado de Ed, chocado pelo acontecimento.
Edmond havia vencido a disputa dos irmãos Roberts, mas não da forma como planejou. Ele chorou enquanto limpava o sangue que havia respingado no seu rosto. July correu até ele.
— Ed! Meu Jah! O que foi que eu fiz!? — July agarrou-o e o puxou para longe do cadáver de Leonard, mas só conseguiu afastá-lo alguns passos antes de também cair sentada.
— Não era para ter acabado assim, July! — Ed tentava se limpar em vão da sujeira de seu fracasso — Eu nem consegui salvar o meu irmão.
— Você fez o possível, meu querido Ed — Ela o abraçou, repousando a cabeça dele em seus braços — Ninguém pode dizer que você não tentou salvar o Leonard até o último instante.
— Agora eu só quero poder te salvar — Mesmo com as mãos sujas de sangue, Ed acariciou o rosto de July — Vamos sair daqui.
Nesse instante, tremores violentos tomaram conta da sala. A única saída foi bloqueada quando os fragmentos de rocha começaram a flutuar. Com dificuldades, Ed e July conseguiram se levantar antes das vibrações se intensificarem juntamente das oscilações de luz. Então eles perceberam o que havia acontecido, de alguma forma aquele cômodo estava se elevando, abrindo caminho pelos túneis até a liberdade de fora do subterrâneo, mas a intensidade da ascensão o desintegrava aos poucos. Se eles não encontrassem uma saída seriam esmagados a qualquer momento. Mas logo depois Ed percebeu mais uma coisa, as paredes não haviam acompanhado a subida, e ele podia ver tudo ficando para baixo como um elevador panorâmico.
— Olha! — Ed apontou para a movimentação agressiva provocada pelo fenômeno gravitacional — Quando a luz do dia aparecer a gente pula. É o único jeito!
July assentiu e eles deram as mãos novamente, se aproximando cautelosos do limiar daquele inferno. A subida ficou mais rápida, os tremores mais violentos, e as luzes ainda mais ofuscantes, até que a pureza da luminosidade solar tomou conta do ambiente, como o esperado. Era como ser ejetado novamente por uma cápsula de fuga, mas agora fazendo o caminho contrário, porém a sensação de gratidão ao ver novamente a imensidão celeste após tanto tempo no escuro permanecia similar.
Ed ordenou que se apressem e eles correram até o buraco na parede, pulando no abismo e caindo na pilha de entulho formada onde antes existia a Torre de Comando. Nada havia sobrado da estrutura, tudo havia sido arrebatado rumo aos tentáculos no céu. Um último rugido da fera dimensional foi ouvido quando os últimos restos da construção atingiram sua morada. O buraco se fechou, os tentáculos se recolheram e a névoa arroxeada se dissipou nos últimos raios esverdeados. A calmaria pairou sobre a multidão, que agora abaixou sua visão para as duas figuras imundas e derrapadas que se remexiam nos resquícios do evento.
Agora foi mais difícil para July e Ed ficarem de pé, sentindo que todas as dores se intensificaram em seus ferimentos. Foi um milagre verdadeiro terem conseguido superar tudo isso até agora, mas ainda havia um outro desafio a ser encarado: A reação daquela multidão que os observava ainda confusos com os últimos acontecimentos. Eles se arrumaram, fazendo o possível para parecerem simpáticos diante deles mesmo não estando na melhor das imagens, com suas roupas rasgadas, perfuradas e cobertas por sangue e poeira.
— Cadê o Leonard!? — Uma voz perguntou em meio a multidão.
Ed deixou o pesar tomar conta de sua expressão e respondeu.
— Ele morreu... — Um suspiro surpreso ecoou pelo coletivo.
— Mas ele está aqui! — July gritou com todas as suas últimas forças, dando fim aquele incômodo silêncio inexpressivo — Ele! O verdadeiro herdeiro do ministério! Edmond Roberts!
O silêncio perdurou por mais alguns instantes até um par de mãos erguidas se destacar na multidão. Eram as mãos de Ivana, puxando todos com suas palmas para parabenizar a vitória, apesar das perdas e dos percalços, eles haviam vencido. Gaia a seguiu, e seus aplausos contagiaram a multidão e os heróis com a mais pura felicidade. Outros rostos conhecidos surgiram em meio a congratulação, Natasha, Wes, Lollipop e Ernest também haviam chegado lá. Toda a cidade estava aplaudindo a coragem do jovem casal numa reação inesperada. No discurso de Leonard, Ed e July eram os grandes vilões, e agora eram saudados como heróis após o feitiço ser quebrado. Eles se encararam com sorrisos no rosto, assim como todos na cidade contemplando o início de uma nova era de paz.
— Não dar pra fugir do destino — July Harmond estava certa.
Ela sempre tinha razão.
***
Sete dias se passaram após a morte de Leonard, e a primeira coisa que Edmond decidiu fazer foi organizar uma cerimônia fúnebre simbólica, já que seu corpo nunca poderia ser encontrado. Provavelmente os seus restos mortais foram tragados para o vórtex de Belliscientia como o sacrifício necessário para saciar a fome daquela fera multidimensional. Leonard pôde ter sido um monstro, mas continuava sendo seu irmão, e ganhou seu lugar de direito no mausoléu da família, próximo aos seus pais e ao seu tio. Contrariando os desejos populares, Edmond não assumiu o cargo de ministro principal logo de imediato, ele preferiu ficar nos bastidores políticos antes de começar de vez, tentando arrumar a bagunça que Leonard havia feito no ministério. Logo a podridão começou a feder e os esquemas de suborno e outras falcatruas ministeriais foram expostas, além das ameaças à liberdade tão custosa. Lidar com isso ainda geraria muita dor de cabeça, em especial quando a confiança da população em seus representantes era abalada. Talvez uma reforma política resolvesse tudo dando mais liberdade de escolha para a população, apesar de causar ainda mais problemas.
Foi difícil para Ed perceber que havia chegado o dia que ele tanto tentou evitar a vida toda. Era uma noite de domingo, no dia seguinte ele começaria como ministro principal, e todos estavam confiando nele. Ed não era mais um herdeiro fujão para decepcionar todo, chegara a sua hora de ser aquilo que ele nasceu para ser. Porém, antes disso, uma festa foi dada para celebrar esse acontecimento. Uma confraternização sediada num zepelim financiado por Wes, assim como aquela onde tudo começou, mas que se estendia pelas ruas lá embaixo de forma fenomenal e estampava tudo com o azul celeste que Ed sempre usou no seu corpo. Newdawn era feliz novamente com seu novo ministro.
Olhando assim, tudo parecia normal outra vez. Emily novamente estava no palco como uma prima-dona, cantando suas músicas favoritas com a banda, mas agora Alexander a acompanhava tocando guitarra e cantando junto, ambos trajados como um casal ying-yang. Wes andava pelo salão exibindo suas aventuras para as garotas convidadas, Ernest e Natasha dançavam juntos, Lollipop também estava ali, distante e perdida, mas pelo menos livre. E acompanhado pelas duas escudeiras estrangeiras, Cornelius também estava presente, mas ainda não recuperado da explosão. Mesmo depois de tantos anos cuidando da prótese de Ed, Cornelius nunca imaginou que um dia precisaria usar uma para substituir a perna destruída, e muito menos que o processo de adaptação seria tão doloroso.
July também estava ali, feliz por ter todos os seus amigos juntos de novo e por está usando finalmente o vestido de seus sonhos numa ocasião que não resultaria em sua quase morte, mas receosa com a própria aparência. Seu corpo inteiro estava coberto por cortes, hematomas e feridas que demorariam para desaparecer, e sua mão esfaqueada também estava enfaixada. Ela se sentia uma estranha mesmo tendo salvo todo mundo. O que a confortava era ver sua influência no público daquele evento, muitas das meninas presentes usavam o mesmo modelo de vestido, assim como copiavam seu penteado e o de suas amigas, talvez o azul líquido de Tétis e a trança de Gaia sejam a nova moda do momento. Até mesmo a faixa na mão se tornou um objeto de estilo a ser adotado. Agora todos a conhecem, e ela também não podia decepcionar.
A banda encerrou mais uma música e Emily anunciou no microfone:
— Agora nosso anfitrião vai dar uma palavrinha. Pode vir, Edzinho!
O público aplaudiu quando Edmond subiu no palco e tomou seu lugar diante do microfone. Ao seu lado, Emily e Alexander estavam radiantes, era quase uma rima visual ao contrário com o que havia acontecido no baile de aniversário de Solomon Roberts.
— É... Boa noite! — Ed se anunciou um pouco tímido, arrancando risadas dos presentes. — Eu gostaria de agradecer a presença de cada um aqui, e dizer que sem vocês nada disso seria possível. E é por isso que todos nós juntos vamos recomeçar a partir de hoje numa nova era de amor e paz. Leonard dizia sobre fazer nossa cidade ser grande outra vez, mas agora veremos que a verdadeira grandeza está na atitude daqueles que se sacrificam por um bem maior, e em cada pequena ação de quem confiar nisso. Nós passamos por tempos difíceis, tivemos muitas perdas, e nada disso será em vão. Nós vamos nos lembrar dos dias de Leonard, mas não como uma vergonha de nossos erros, na verdade como um incentivo para nunca perdermos as esperanças. Por isso, apresento isso aqui.
Ed retirou um disco metálico do paletó e o jogou do palco. Ao tocar o piso, um holograma se formou revelando a imagem de uma impressionante estátua dourada. De cima para baixo, a estrutura começava com um imponente dragão que aparecia com suas asas abertas, e logo abaixo vinha Wes voando em seus jetpack, Ed vinha em seguida de mãos dadas com July e Cornelius de pé sobre a nave Tubarão, e por fim vinha Ivana em sua forma humana, Gaia e Tétis também de mãos dadas, reunidas numa roda em torno da base que sustentava tudo isso. A estátua era adornada por auréolas reluzentes que se movimentavam graciosamente, subindo e descendo.
— Esse é o Monumento dos Heróis, será instalado no local onde ficava a antiga Torre de Comando — Ed prosseguiu — Mas além de uma grande estátua, é preciso mais para demonstrar minha gratidão por essas pessoas que salvaram minha vida e a de tantas outras. Ivana Montano, sei que você teve momentos difíceis aqui, mas saiba que Newdawn sempre estará de portas abertas para você e para qualquer mythidiano, e que sempre estaremos dispostos a ajudar no que for preciso para manter a prosperidade entre nossas nações. Inclusive, acho que seria uma boa ideia começar a difundir o ensino da energia arcana por aqui — Os presentes na festa aplaudiram, deixando Ivana sem reação, mas ainda feliz. Ela agradeceu com um cumprimento mythidiano — O mesmo vale para as senhoritas Gaia e Tétis. Se depender de mim, Sandal e Yara sempre serão cidades irmãs de Newdawn — Ed agora voltou suas palavras para os policiais cantores — Quanto a vocês, Emily Starsky-Hutch e Alexander Cannon, por serem os melhores policiais e os melhores amigos que alguém poderia ter, acho que está na hora de serem promovidos a capitães — Mais aplausos ecoaram. Emily se encheu de animação e começou a chacoalhar seu namorado — E saibam que a polícia sempre receberá o investimento e o reconhecimento necessários na minha jurisdição. Agora, para Wes Jeffords, eu tenho uma proposta. Que tal converter o museu de sua família num empreendimento público, focado em projetos sociais e no ensino de história e geografia para as crianças carentes da cidade?
— Não tenho do que discordar — Wes respondeu — Já faz um tempo que os aventureiros são figuras elitistas, está na hora de fazer a diferença. Além disso, já tenho o nome perfeito para essa instituição. Irá se chamar Museu Margareth Crawford, em homenagem a uma das mulheres mais peculiares que eu já conheci, e que jamais será esquecida.
— Tenho certeza que seus pais estariam orgulhosos — Ed baixou os olhos por um momento, respirando fundo — Cornelius Albert Dumont, meu melhor amigo e o melhor inventor que essa cidade já viu. Você merece o seu posto em meio aos grandes nomes da ciência mesmo que as intenções de Tesla não sejam tão puras quanto o esperado, e agora você poderá servir ao seu propósito sem sair de casa. Eu o nomeio o primeiro presidente da novíssima Sociedade da Ciência de Newdawn.
Cornelius não soube como agradecer quando mais aplausos se seguiram, ele abafou seu choro nas mãos e deixou as lágrimas correrem. Seu corpo só não fraquejou pois tinha o apoio de Tétis, que o segurava carinhosa. Não era como ele havia sonhado a vida toda, mas era muito melhor, e ele sabia que, seja lá onde estiverem, Cérebro e Johnny estavam felizes por ele. E Roza talvez também estivesse em seu berço tecnológico de inércia no além-vida.
— A próxima provavelmente é a pessoa que mais sofreu nas mãos de Leonard, e eu não posso simplesmente ignorar isso. Leonard causou terror na cidade inteira, mas conseguiu ir além na vida dessa jovem mulher, e ninguém sabe o quanto ela sofreu em suas mãos apenas por ter se apaixonado — Lollipop já sabia que Ed falava sobre ela, mas continuou em silêncio, atormentada pelas lembranças do cativeiro — Porém, saiba que você é mais forte do que acredita ser, e todos nós vamos te lembrar disso, pois você nunca mais estará sozinha. Chegou a hora de recomeçar Lollipop, e por isso eu lhe darei sua própria escola de dança — As palavras a atingiram em cheio, fazendo-a se encolher. Lollipop não podia acreditar, logo ela que sempre se achou insuficiente e imperfeita, que acreditou que nunca seria boa o suficiente como dançarina e que se maquia com a arrogância da futilidade para esconder seus dilemas, agora poderia mostrar que todos estavam errados. Ela se recompôs e agradeceu, enxugando suas lágrimas, e com a alegria da certeza de ser uma nova mulher a partir daquele dia.
Ed esperou os aplausos e congratulações diminuírem antes de continuar. Ele havia chegado na parte mais importante de seu discurso.
— Por fim, quero convidar ao palco a pessoa mais importante da minha vida. A minha melhor amiga, a minha companheira de aventuras, a minha salvadora, aquela a quem eu mais amo. Por favor, venha até aqui, senhorita July Harmond.
July foi tomada pela vergonha, e se arrastou até o palco tentando diluir em sua percepção o que estava acontecendo. Todos abriram caminho para ela prosseguir, mas um empurrãozinho de Natasha fez-se necessário para conseguir subir logo. Agora ela era o centro das atenções ao lado de Edmond, que segurava sua mão enluvada.
— July Harmond — Ele começou — Quero que saiba o quanto eu a admiro por sua coragem, seu carisma, sua determinação, e por nunca ter desistido de mim. Tudo que eu já fiz foi pensando em você, seguindo seus exemplos e procurando ser uma pessoa melhor.
— Ed, o que você está fazendo? — July perguntou, um pouco constrangida mas ainda contente pelas palavras carregadas de afeto.
— A coisa certa — Ed cochichou e sorriu antes de voltar ao microfone — July Harmond, você aceitaria ser a minha primeira dama?
Ed se ajoelhou diante de July, e ergueu para ela uma caixinha vermelha que tirou do bolso. Agora seu constrangimento era ainda maior, abafado em meio a suspiros. Quando a caixa se abriu, July encontrou um anel reluzente que encheu seus olhos com o brilho cativante. Ela não sabia o que fazer, e todos estavam a observando, torcendo para a confirmação daquele pedido. July fechou os olhos e respirou fundo, então ela aceitou apenas balançando a cabeça tão rápido de puro nervosismo. Ed se levantou e puxou a garota para perto de si, abraçou seu corpo e a beijou, tocando seus lábios de um jeito lento e carinhoso, mesclando a felicidade, o desejo e o imenso amor que eles sentiam um pelo outro.
O beijo foi recebido com um estrondoso aplauso e reações diversas. Alexander ficou boquiaberto, ainda com ciúmes de July em seu íntimo, e teve que se contentar ao ser beliscado por Emily. Natasha chorava de emoção nos braços de Ernest, e os amigos do casal vibravam bastante empolgados. Até Lollipop parecia estar emocionada com aquele momento.
— Eu te amo, July Harmond! — Ed disse por fim — Você é incrível!
— Eu também te amo, Edmond Roberts. Você que é incrível.
E assim, a timidez que ocultava tantos sentimentos desapareceu, ofuscado pelo amor que irradiava naquela aeronave durante aquele momento catártico.
***
A festa continuou embalando a felicidade dos presentes. O grupo de amigos se reuniu novamente, agora para dançarem e cantarem comemorando aquela vitória. Bebidas foram servidas, petiscos degustados, e nada de ruim aconteceu para atrapalhar a plenitude do evento. Foi o tipo de festa que poderia durar uma vida toda.
Mas tudo alguma hora tem que acabar, e mesmo com a música parando e as últimas guloseimas acabando, os amigos ainda tentavam postergar aquele momento. Nisso, Natasha e Ernest se aproximaram, e July percebeu que ainda não havia falado com eles, pelo menos não como costumava conversar antes. Um detalhe ainda a perturbava.
— Eu quero me desculpar por Max — July ficou cabisbaixa diante de Natasha, sem coragem para lhe encarar e contar o que precisava ser dito — Eu tentei, mas não consegui salvá-lo.
— Não precisa se incomodar com isso, minha princesa — Natasha pôs as mãos nos ombros da amiga — Max era igualzinho ao pai, não prestava, e eu acredito quando você diz que fez o possível, mas a morte dele foi inesperada para todos nós.
— Deve ser difícil perder um filho — July supôs, então ela percebeu o silêncio reflexivo de seu pai — Deve ser difícil perder qualquer pessoa querida.
— É verdade, mas não precisa se preocupar — Natasha sorriu — Eu estou bem. Agora eu tenho uma nova família.
— Você tinha razão, filha — Ernest esclareceu — Eu precisava de uma esposa e a madame precisava de um bom marido. Estamos juntos agora.
July gritou de animação e abraçou seu pai e sua nova madrasta, ela sabia que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde pois Natasha e Ernest eram perfeitos um para o outro, e ela os amava muito. Ao sair do ato de afeto familiar, ela viu Lollipop vindo em sua direção.
— July, você matou meu namorado! — Lollipop disse de forma rude — Muito obrigada — July respirou aliviada ao ver a grosseria de Lollipop derretendo e ela se aproximar ainda mais — Eu quero me desculpar por ter sido uma idiota esse tempo todo.
— Não precisa se preocupar — July arrumou uma mecha de cabelo desalinhada da outra garota — O que importa é daqui pra frente, sabia?
— Sei sim — Lollipop relaxou seus olhos e percebeu uma coisa que a deixou espantada — Meu Jah! Eu tenho muito trabalho a fazer nessa escola de dança e eu não tenho nem onde morar.
— Você pode ir morar com a gente no Palácio Ministerial — July cutucou Ed, que estava ao seu lado conversando com outras pessoas — O que você acha?
— Não sei se é uma boa ideia — Ed comentou — Ela ficou presa lá...
— Não, tá tudo bem! — Lollipop interrompeu — Quanto mais cedo eu superar vai ser melhor. E eu agradeço pela gentileza.
— Bom... Família é para essas coisas.
— Com certeza, prima — As garotas se abraçaram.
— Espera aí! — Ed barrou aquela bela cena de reconciliação — Vocês são primas!?
— Minha mãe era prima do pai dela, acho que isso faz a gente ser primas também — July explicou — Mas eles nunca foram tão próximos.
— E depois que meu pai deu o golpe no Virgil Crawford a gente assumiu o nome de solteira da minha mãe como disfarce — Lollipop prosseguiu — Nossa, parece que todos os homens da minha vida são uns monstros — Ela constatou, enojada.
— Ah, mas um dia você encontra alguém legal — July tentou ajudar.
— Relaxa, acho que vou fugir de relacionamentos por um tempo e cuidar mais de mim — Lollipop olhou em volta e encontrou o belo sorriso de Wes chamando a sua atenção — Pensando bem, também acho que posso fazer isso mais tarde.
Assim, em meio às risadas dos seus agora amigos, Lollipop desfilou até perto de Wes e passou a conversar com ele. Natasha entrelaçou seu braço no de Ernest e eles caminharam para a saída do zepelim quando July disse que iria passar mais um tempo com seus amigos. Em seguida, July e Ed se aproximaram de uma mesa onde Cornelius e as forasteiras estavam sentados ainda bebendo e rindo de piadas cafonas. Agora estavam completamente sozinhos no salão.
— E agora? — Cornelius perguntou, debruçado na mesa — O que a gente faz?
— Acho que isso é um adeus — July cogitou.
— Mas nós sempre vamos ser amigos, nunca se esqueçam disso — Ed ordenou com o indicador apontado para eles, mas ainda sorrindo amigavelmente — O que vocês vão fazer agora?
— Eu vou voltar para casa — Ivana levantou-se — Já faz um tempinho que eu fui ao banheiro e nunca mais voltei. O meu pai e o Ignis devem estar preocupados.
— Não esqueça de escrever — July sugeriu.
— Escrever? — Ivana riu por um momento — Vocês me conhecem, só basta pensar. Agora, tchauzinho! — Ivana fez um movimento rápido com a mão direita e em seguida sumiu como se nunca tivesse estado realmente ali. Mesmo acostumados com as peripécias da bruxa, seus amigos ainda ficavam espantados quando coisas assim aconteciam.
— E vocês? — Ed perguntou as outras meninas.
— Eu também vou voltar — Gaia respondeu com determinação — É minha função como coletora trazer coisas úteis para a cidade. Sandal já se escondeu por tempo demais, vou tentar mudar isso levando o desfecho de nossa história, e quem sabe um pouco de esperança.
— Eu penso o mesmo sobre Yara, mas vou ficar. Lá eu era só uma pecinha na máquina, aqui eu tenho uma família — Tétis afagou os cabelos espetados de Cornelius, que retribuiu com um beijo em sua bochecha.
— E o que aconteceu com os piratas? — July se voltou para Ed.
— Sumiram — Ele respondeu — Agora que a pirataria acabou eles voltaram a ser o que sempre foram, pessoas. Eles só queriam uma desculpa para se rebelar, e essas fases passam rápido.
Mais conversas foram debatidas até que os três restantes decidirem se retirar. Era o auge da madrugada, e agora Ed e July tinham aquele salão silencioso só para eles. Eles conversam de mãos dadas por um tempo, vendo tudo o que havia acontecido nos últimos meses mais como um delírio dos livros de aventura que liam com tanto gosto do que como eventos reais. Piratas, demônios, soldados, naves animalescas e uma verdadeira volta ao mundo, realidades impossíveis se confirmando devido a sede de poder de um único homem que mudaria a vida de todos para sempre. Porém, no final o amor venceu, banindo a escuridão inoportuna.
Depois eles dançam abraçados, lentamente e aos beijos, idealizando o futuro perfeito deles, e quando mais nada havia para ser planejado decidiram ir embora.
Está juntos para sempre.
Nada mais lhes faria mais feliz.
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