COPACABANA
Há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura.
- Friedrich Nietzsche
Dancing Days era uma dessas discotecas badaladas que lotavam a Zona Sul do Rio de Janeiro. A história do lugar havia se perdido com os anos, mas a fachada com ares antigos dava charme ao lugar. Quem haveria de saber quantas vidas passaram por aquele prédio reformado? Que, debaixo do piso trocado anos atrás, havia uma mancha de sangue que fora escondida por antigos proprietários por tapetes ou mesas.
Do passado, para além de alguns lustres atrás do bar, restava apenas uma única criatura, que se destacava em meio ao público jovem que usava calças boca de sino, vestidos coloridos e cabelos frisados. Seus cabelos já grisalhos sempre pareciam sujos. Seu vestido um dia fora amarelo, mas agora ostentava uma cor bolorenta entre os rasgos e brilhantes já opacos. Opacos também eram seus olhos, sempre perdidos no vazio, como se não soubesse onde estava ou mesmo quem era.
Diziam que o nome dela era Lola. Estava ali a muito tempo e ficava porque não fazia mal a ninguém. Às vezes levantava, tentava alguns passos trôpegos, e, se não caia no chão, alguém a sentava, oferecendo-lhe uma dose de uísque ou cachaça de modo que ela voltasse a ficar quieta. Quase nunca conversava com ninguém, mas, às vezes, balbuciava coisas sem sentido e chamava por nomes de pessoas que não estavam ali.
"Quem atirou em quem?"
Era a pergunta que Lola repetia para si mesma há trinta anos. Entre um gole e outro de uísque, ela ignorava a resposta que já conhecia. Esta história, porém, não começa nas discotecas dos anos 80 e esta pouco nos importa agora. Não precisamos nos adiantar no tempo.
O ano é 1953. A Boîte Copacabana tinha o glamour de Nova York, o calor de Havana e a ginga do Rio de Janeiro. Aquele pedaço de céu paradisíaco tinha um ritmo próprio e clientes dispostos a pagar a mais cara taça de champanhe carioca para desfrutar de seus prazeres.
— Vamos, meninas! É hora do show!
As atrações da noite envolviam muita música, bebida e dança. Dolores fazia parte de um grupo de cinco meninas. Não era a mais bonita, nem mesmo a mais talentosa delas, mas tinha o suficiente de beleza e talento para as danças da noite. A maquiagem pesada e os figurinos idênticos, de cores vibrantes, cheios de plumas e brilhos, eram os responsáveis por fazer com que elas parecessem a mesma pessoa. As pernas grossas sobre saltos altíssimos, cobertas apenas por uma meia calça, faziam com que nenhum dos frequentadores do clube olhasse o suficiente para os rostos, de modo a descobrir que, na verdade, eram muito diferentes entre si.
Para Dolores, aquele emprego era o sonho. Tinha dinheiro para ajudar a mãe a comprar o leite dos mais novos. Usava roupas bonitas, um batom vermelho nos lábios e, quando tinha sorte, um dos clientes lhe pagava uma taça ou duas de champanhe para que ela sentasse ao seu lado. Não era uma desfrutável. Deus a livrasse daquela sorte. Se os homens queriam companhia, ela lhes dava, mas nada mais do que isso. Até porque, atrás do bar, os únicos olhos que lhe interessavam a vigiavam durante toda a noite.
Tony ganhara aquele apelido de um cliente gringo. O nome era Antônio, mas o velho não conseguia dizê-lo sem parecer ridículo. O apelido não demorou muito a pegar. Servia o champanhe, o uísque e os Cuba Libre de seus clientes sempre com os dentes brancos a amostra e um estalo dos dedos. Muitos deles respondiam com o mesmo gesto antes de se afastar. O sorriso e os dedos pareciam garantir maiores gorjetas, que ele entocava em uma caixa de sapatos escondida embaixo da cama onde dormia.
Trabalhar na zona sul não o livrava de morar no morro. Chegava no bar dez para as oito da noite e cumprimentava o Seu Álvaro enquanto ele abria os portões de trás para que ele e os outros empregados pudessem começar seu turno. As quatro da manhã o expediente acabava. Depois de limpo o bar e as contas da noite prestadas, pegava sua Dolores pela mão e só a soltava quando a deixava na frente da casa da mãe dela, a duas ruas da dele. Não se incomodava que ela dançasse. Seu plano era conseguir juntar dinheiro o suficiente para que os dois comprassem a própria casinha e pudessem se casar. Seria mais rápido se ela também trabalhasse. Depois disso, quando os dois tivessem um menino, ela poderia arrumar uma ocupação pelo morro mesmo, pra ficar mais perto das crianças. Ali, por mais que ela trabalhasse quase sem roupa, ele poderia ficar de olho nela.
O dinheiro era bom. Os seguranças do bar evitavam a grande maioria das encrencas e não havia muita gente que se metesse com Tony no bar, talvez acuado pelos seus mais de 1,80m de altura. Uma das pessoas que fugia a esta regra era Rico.
Rico era um apelido. Tony não quisera saber o nome verdadeiro daquele traste, mas sabia que ele tinha muito dinheiro. Ele sempre dava trabalho com as dançarinas, mas Seu Álvaro nunca o colocava definitivamente para fora do bar. Não só o dinheiro que fazia com que seu terno branco fosse intocável. Os boatos diziam que ele estava metido com o que não devia. A Boîte Copacabana não queria ter que fechar as portas por não poder dar segurança aos seus clientes.
Quando Rico entrou no bar naquela noite, parecia um rei. Queria que seus súditos parassem para cumprimentá-lo. Tirou o chapéu Panamá apenas para o Seu Álvaro, sem notar a cara feia que Tony lhe fizera antes de buscar as dançarinas com o olhar. Um cliente chegou pedindo uma cerveja e Tony foi pegar a bebida, sempre com um olho atento no bar e o outro em Dolores.
Ninguém sabe ao certo como começou a confusão. Quase duas da manhã, Tony já havia aberto sua guarda. As meninas já tinham apresentado seu show, saracoteando pelas mesas com seus vestidos amarelos cheios de franjas e brilhantes. O bar estava lotado. A pista estava cheia e, no bar, não havia folga para nenhum dos atendentes. Da última vez que Tony vira Dolores, ela estava acompanhada por um velho comerciante de barba, presença frequente no Copacabana. Da última vez ele tinha até dado um par de brincos para ela. Valeram pouco quando Tony os vendeu, mas toda renda extra para os dois era bem-vinda.
Foi o grito alto que chamou a atenção não só de Tony, mas de todos. A música pareceu acabar enquanto o hall de saída lotava em uma velocidade extraordinária. Ninguém queria perder a confusão, ao mesmo tempo que não queriam estar perto dela se algo a mais acontecesse. Rico segurava Dolores pelo braço. Pelo modo que ela segurava o rosto com a mão livre, a bofetada que dele levara fora mais do que suficiente para que ela perdesse o prumo. As outras coristas até tentavam tirar Rico de perto dela, mas não eram páreo para o homem, enquanto os seguranças tinham dificuldade em atravessar a multidão.
Tony pulou o balcão sem pensar muito no que fazer. Aproximou-se do tumulto e, antes que Rico se desse conta, era ele quem estava seguro pela própria gravata, enquanto o punho de Tony se chocava contra seu rosto. Uma. Duas. Três vezes. Soltou-o como quem solta um saco de batatas no chão, antes de se virar para Dolores. Só teve tempo de ver que, para além do lábio cortado, ela estava bem, antes de ser puxado para a briga. Rico não deixaria o soco barato. Engalfinhavam-se como dois gatos de rua. Era difícil saber quem era quem naquela confusão de chutes e socos.
— Ele tem uma arma.
Alguém anunciou o brilho prateado entre os dois, mas foi o estrondo de bala o único responsável para fazer com que a multidão finalmente se afastasse.
— Quem atirou em quem?
Muitos perguntaram, e foi só o que Dolores ouviu entre os gritos desvairados que encheram o Copacabana. Quando o sangue escorreu sob os dois corpos inertes, já não mais havia quem quisesse ficar no bar. Não era mais o hall que estava cheio, mas a calçada se apinhava de curiosos que jamais admitiriam estar no bar no momento do tiro.
Quando Rico se ergueu, tinha o terno branco manchado de sangue. Seu chapéu Panamá havia se perdido em meio à confusão. Tony continuou no chão, e, em um último grito rouco da noite, Dolores correu até ele. Rico estava inteiro e com a arma na mão. Tony tinha um buraco no peito, e por mais que o terno preto não desse vista ao sangue que lhe escorria, os lábios sem cor eram prenúncio de que não mais havia vida ali. Dolores agarrou-se a Tony e chorou. Foi ali que seus olhos perderam o brilho.
Não ouviu as sirenes se aproximarem, não se importou com o burburinho da polícia. Só se moveu quando dois dos policiais quiseram tirá-la de cima de Tony. Levou a segunda bofetada da noite quando se recusou a largá-lo e só cedeu quando as outras meninas a aconchegaram em uma coberta, dizendo que aquilo não era necessário.
O interrogatório foi feito depois de levarem o corpo de Tony. Seu Álvaro contou o que viu. Uma confusão besta entre seu funcionário e um cliente, era uma pena que aquela fatalidade tivesse ocorrido. Ninguém sabia quem era o cliente, e ele havia fugido pouco depois do incidente. Aquela versão foi a confirmada pelos outros funcionários, menos por Dolores, ela havia perdido a fala.
Foram quase todos os empregados e curiosos dispensados. O sangue de Tony limpo do chão deixou sua mancha. O sol já havia clareado e noite e Dolores ainda olhava para o vazio.
— Quer companhia até em casa, Lola?
Foi uma das dançarinas quem perguntou, deixando a mão deslizar pelo braço desnudo da amiga. Esperou por uma resposta por mais tempo do que o necessário, beijando-a na testa quando percebeu que não receberia nenhuma. Foi só depois da segunda semana sem que ela praticamente se movesse daquela cadeira que perceberam que Dolores havia perdido o juízo.
Dolores era inofensiva. Seu Álvaro a deixou ficar. Não incomodava os clientes, que haviam rareado depois do escândalo. As dançarinas cuidaram dela até o dia que o Copacabana fechou as portas. Um ano depois, o Seu Álvaro ainda trabalhava na nova danceteria, que durou quase cinco anos antes de a Dancing Days estrelar nas noites cariocas. Os bares passavam, mas Dolores permanecia, com seu brilho apagado e seu olhar para o vazio.
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