04 - Imprudência

Havíamos passado por duas Pharmacys do centro, mas elas não pareciam nada com a do sonho que tive aquela tarde. O tempo estava correndo e quanto mais demorávamos para encontrar o lugar certo, mais preocupado eu ficava.

Eu não podia deixar aquele rapaz morrer.

— Garoto, tem uma Pharmacy na próxima avenida — disse o motorista.

— Encosta o carro próximo a ela, por favor.

— Tudo bem, mas creio que já é hora de atualizarmos o valor da corrida, pois estamos rodando a bastante tempo.

— Pode cobrar a tarifa extra, mas por favor, continue dirigindo.

O motorista assentiu, virou a primeira à direita com o carro e entrou em uma avenida que logo de cara pareceu ser familiar. Abri a porta e saí do veículo para olhar em volta.
Assim que coloquei meus pés no asfalto, a mesma brisa gelada e o arrepio esquisito que eu tinha sentido antes fizeram meu corpo estremecer.

— Tem certeza de que este é o lugar? — perguntou o motorista do mesmo jeito que tinha feito em meu sonho.

Eu estava no lugar certo.
Finalmente!

Peguei meu celular do bolso e confirmei no aplicativo que já tínhamos chegado ao destino. Haviam duas chamadas perdidas do Tyler e uma mensagem de texto da Sue com os mesmos dizeres do meu sonho...

"Você vai demorar? Tyler já começou a comer" dizia a mensagem.

"Estou indo" respondi.

Eu estava atrasado.
O acidente ia acontecer em instantes e eu estava muito atrasado.

Corri pela calçada oposta da Pharmacy até o farol mais próximo. Eu devia ter poucos segundos para impedir aquela tragédia, mas o farol não estava fechando.

E o tempo estava correndo.

Aqueles segundos pareciam horas. Eu batia meus calcanhares contra o chão para espantar a ansiedade e descontar meu nervosismo em alguma coisa. Eu apertava meu celular na mão esquerda no bolso da blusa com tanta força que senti meus dedos reclamarem de dor. Meu corpo tremia de nervoso e minha adrenalina estava tão alta que o frio e a garoa fina que caía não me incomodavam mais.

E finalmente o farol fechou, mas talvez fosse tarde demais...

O rapaz estava saindo da Pharmacy com a mesma calça social, suéter e a sacola branca que eu vi em meu sonho. Corri pela avenida com toda a velocidade que meus pés conseguiram alcançar. Ele estava na minha linha de visão, mas era impossível não perceber o carro que ia atropela-lo avançando o sinal vermelho e derrapando na pista.

Dois segundos depois, tudo ficou escuro.
Dez segundos depois, tudo ficou embaçado, confuso e torpe.

— Você me salvou — sussurrou uma voz próxima a mim.

Minha visão estava embaçada, minhas pernas e braços estavam doendo e, por um momento, eu esqueci completamente onde estava.

— Meu Deus! — exclamou uma pessoa.

— Chamem socorro! Chamem uma ambulância! — gritou outra.

Eu tinha falhado?

— Por favor, fala comigo — sussurrou aquela voz próxima a mim.

— Ele está bem? — murmurei.

— Tudo que importa agora é saber se você está bem.

— O rapaz oriental, está...

E era ele!
Ele estava ajoelhado a meu lado segurando minha cabeça para que ela não encostasse na calçada.

— Graças a você, estou bem — disse ele me ajudando a sentar no chão. — Você salvou a minha vida.

— Eu achei que não ia conseguir chegar a tempo — murmurei sem pensar.

Ele sorriu de um jeito fofo.
Claro que ele não tinha entendido o real significado daquela frase.

— Vocês estão bem? — perguntou uma mulher desconhecida. — Já chamamos uma ambulância.

— Estamos bem, não se preocupe — disse ele ainda a meu lado. — É melhor verem como está o motorista do carro.

— O que aconteceu com o motorista? — questionei.

Só depois fui perceber que o carro tinha batido em um muro ao lado da loja Pharmacy. O motorista não tinha saído do veículo e a parte da frente do carro estava completamente destruída.

Era estranho, pois aquilo estava diferente do meu sonho. Na verdade, tudo estava diferente a partir daquele ponto, pois o rapaz oriental estava a salvo.

— Eu acho que te conheço... — murmurou ele olhando diretamente para mim.

— Conhece?

Estremeci.

— Foi você que me impediu de entrar naquela rua onde os policiais estavam perseguindo um homem, não é?

— É mesmo! Que coincidência, né?!

Tentei não soar mentiroso ou irônico.
Não sei se consegui.

— Corri o risco de ser sequestrado, roubado ou até morto, mas graças a você...

— Não vamos falar sobre isso, por favor.

Ele voltou a sorrir enquanto levantávamos daquele asfalto frio. A sacola que ele estava segurando tinha caído um pouco mais à frente. Andei alguns passos para pega-la do chão e voltei até ele para devolve-la.

— Eu me chamo Pete — disse ele estendendo a mão para me cumprimentar. — Muito prazer.

— Klay — afirmei retribuindo o cumprimento.

— Você me salvou duas vezes e eu não faço ideia de como vou retribuir, Klay.

— Não foi nada, sério!

Olhar diretamente nos olhos do Pete me causava uma estranha sensação e aperto no peito. Me senti orgulhoso por ter salvado a vida dele, mas ao mesmo tempo, eu estava preocupado por aquilo ter se repetido.
Aquele sentimento só podia ser preocupação, medo ou algo semelhante.

— O que posso fazer por você?

— Não se preocupe, Pete.

— Eu estou de carro, então se você quiser uma carona ou...

— Eu vou indo agora, okay?!

E fui embora...

Depois de me afastar de toda aquela bagunça, tirei o celular do bolso da blusa e enviei uma mensagem para a Sue cancelando a noite de estudos. Eu estava cansado, abalado e com muitas coisas na cabeça. Eu não ia conseguir estudar ou conversar com meus amigos.
Eu precisava de um tempo sozinho.

Eu me sentia exausto, com dor de cabeça e com o corpo completamente destruído. Por alguma razão, eu sabia que todas aquelas dores não eram por conta do quase acidente que Pete e eu sofremos. Era a mesma dor que eu comecei a sentir há alguns dias.

Sem falar naquela sensação fria e apavorante...

***

— Onde você estava, Klay? — perguntou meu pai com um tom nada amigável.

Eu mal tinha entrado em casa e já tinha que ouvir bronca.
Minha cabeça estava doendo tanto...

— Eu tinha combinado uma noite de estudos com meus colegas, mas passei mal e resolvi voltar.

— Sua mãe disse que você saiu apressado e sem antes jantar conosco.

— Deve ser por isso que passei mal, pai.

— Não tenha dúvidas, rapazinho.

Minha visão começou a embaçar e tive que me apoiar na mesinha com flores ao lado do espelho da sala para não cair.
Aquilo não era fome...

— Albert, o que importa é que ele já está aqui — disse minha mãe descendo as escadas.

— Mas olhe bem para ele, Alice — resmungou meu pai. — Nosso filho está pálido! E se ele desmaiasse de fome na rua?

— Sair sem jantar foi muita irresponsabilidade sua, Klay — falou minha mãe.

Mesmo passando mal, tive que me esforçar para voltar a postura ereta, balançar a cabeça positivamente e torcer para não cair no chão.

— Me desculpem — falei. — Não acontecerá mais.

— Só desculpamos porquê foi para uma noite de estudos — disse meu pai cruzando os braços. — Agora vá para a cozinha e se alimente antes que você desmaie.

A bronca tinha acabado e minha dor de cabeça era a que mais agradecia por isso.

Enquanto eu esquentava o prato com a janta que minha mãe tinha separado dentro do micro-ondas, me peguei novamente pensando no garoto oriental, no fato de ter impedido dois acidentes com ele na mesma semana e de como de repente eu tinha começado a ter sonhos premonitórios. Cheguei até a pensar que tudo aquilo era um sonho lúcido sem fim...

Pete...
O nome dele é Pete.

— Você não esqueceu do compromisso de amanhã, não é? — questionou meu pai entrando na cozinha e interrompendo meus pensamentos.

— Esqueci — confessei. —, mas obrigado por lembrar.

— É muito importante para a sua mãe, então não podemos deixa-la sozinha, Klay.

— Não se preocupe, pois eu vou com vocês.

Eu tinha esquecido completamente que íamos fazer uma pequena viagem até a cidade onde minha avó materna morava. Como ela havia falecido no início da primavera passada e meus pais ainda estavam se estabilizando em seus novos empregos, não tivemos tempo de ir até a casa dela limpar e arrumar suas coisas.
Minha mãe ficou arrasada e distante de todo mundo por quase um mês depois do sepultamento da minha avó. Ela não se perdoava por algum motivo que não quis contar para a gente. Segundo minha mãe, ela e minha avó brigaram semanas antes de tudo acontecer. Não chegou a ser uma briga séria, mas lembro que minha mãe chegou em casa muito nervosa naquele dia e disse que minha avó estava louca e que deveria procurar um tratamento psicológico.
Depois ela se desculpou por dizer isso.

A cidade que minha avó morava era pequena e ficava a pouco mais de cento e cinquenta quilômetros. Ela morava sozinha, pois meu avô materno faleceu há muitos anos e minha mãe saiu de casa quando se casou com meu pai.

— Como vai a faculdade? — perguntou meu pai ainda me rondando na cozinha.

— Bem!

— Eu sei que você andou cansado esta semana, mas quero que você não perca o ânimo, o foco e a vontade de ser um bom advogado.

Balancei a cabeça positivamente e sorri forçadamente antes de começar a comer.

— Quero te ver brilhar igual aquelas séries policiais, sabe?

— Quais?

— Aquelas que passam na TV a cabo...

— Sei, sei...

Revirei os olhos.
Com esta onda recente que eu tinha de ver o futuro, ser um advogado brilhante não era algo que eu almejava. Isso não estava nos meus planos apesar de eu cursar esta faculdade.

O silêncio invadiu a cozinha por um tempo. O único som audível era do meu garfo quando batia no prato atrás de mais comida.
Até...

— Quase nunca falamos sobre garotas — disse meu pai.

Quase engasguei.

— O que?

— Você tem alguma paquera na faculdade? — perguntou ele abaixando o tom de voz para que mais ninguém da casa ouvisse. — Uma namoradinha?

Engoli parte da comida que estava em minha boca sem mastigar direito. Tossi duas vezes e bati com força em meu peito para força-la a descer.

— Tenho, claro!

— E quando vai traze-la para nos conhecer?

Mais um momento de silêncio.
Tive que procurar mais comida no prato e coloca-la na boca para ganhar um tempo e inventar alguma desculpa convincente.

Pensei imediatamente no meu amigo Tyler...

— As garotas da faculdade não são iguais as do colégio, pai.

— Como assim?

— Garotas de faculdade são mais seguras, decididas e nem um pouco tímidas.

— Ah! Seu garanhão.

Gargalhei por dentro.

— Quando houver uma garota legal, vou trazê-la para conhecer vocês.

— Só tome cuidado com gestações indesejáveis, certo?

— Não se preocupe, pois meu foco agora é terminar os estudos.

— Gostei da resposta!

Assunto encerrado.
Com aquela conversa, eu ganharia tempo e tiraria meu pai do meu pé por alguns meses. Claro que ele me cobraria novamente mais cedo ou mais tarde, mas eu não estava pronto para dizer que não sinto atração por mulheres.
Tenho certeza que ele não vai reagir bem quando souber.

Depois de terminar o jantar, subi para o quarto, arrumei e separei algumas coisas da faculdade, tomei um banho bem demorado para relaxar e finalmente me deitei para descansar.

Se a escolha fosse minha, eu não ia querer sonhar com nada. Seria maravilhoso fechar os olhos e vagar no inconsciente.

Por uma noite, pelo menos...

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