01 - Sonhos Lúcidos

01

Este está um pouco mais nítido que os anteriores. Consigo sentir o odor da poluição da cidade, o calor de um dia quente fora de época e uma imensa vontade de ir ao banheiro.

Por que ele está tão nítido?

Há muito tempo tenho treinado e conseguido ficar aquém destes sonhos lúcidos, mas por alguma razão, não estou conseguindo me livrar desta vez.
É tudo tão real que posso jurar que estou acordado.

— Você só está sonhando e vai acordar logo, Klay — falei para eu mesmo.

Procurando um lugar para esperar meu despertar carnal, encontrei um ponto de ônibus em uma rua movimentada onde os bancos estavam livres. Antes de sentar, achei estranho o brilho do sol perfeitamente nítido e quente que refletia em uma das placas de sinalização aquecer meu rosto...
Provavelmente, esta sensação é por causa do sol nascendo no mundo real e refletindo na janela do meu quarto, então, o despertador do meu celular não vai demorar a tocar.
Tudo que preciso é esperar mais uns minutos e tudo estará acabado.

— Com licença, rapaz — falou uma senhora idosa antes de sentar a meu lado. — É aqui que passa aquele ônibus que vai para o hospital perto do Hotel Palace?

Me assustei com a realidade que aquele momento e aquela senhora se apresentavam. Tive que respirar fundo e apertar as mãos para responder...

— Eu não sei, senhora.

— Querido, você está bem? — perguntou ela colocando a mão em meu ombro.

Era inacreditável como aquele toque parecia ser real...
Mas nada aqui é real.
Eu estou sonhando!

— Eu não...

— É neste ponto sim, senhora — respondeu uma moça com uma criança pequena no colo. — Eu também vou pegar esse ônibus.

— Muito obrigada — agradeceu a senhora idosa.

Este sonho está diferente não só pela realidade que ele se apresenta, mas também por uma presença, uma força e uma sintonia estranha que é possível sentir no ar.
Eu nunca tinha sentido algo assim...

— Que droga! — gritou o motorista de um táxi depois de quase atropelar uma mulher. — A rua não é uma passarela, mulher!

— Olha por onde anda, idiota! — gritou ela batendo com a bolsa na lateral do táxi.

— Além de feia é cega?! — gritou ele antes de buzinar e acelerar o veículo.

A criança no colo da moça que tinha respondido a pergunta da senhora idosa começou a chorar. A moça que quase foi atropelada pelo táxi parou no ponto de ônibus que estávamos e pegou um espelhinho pequeno da bolsa para retocar a maquiagem. Um homem estranho atravessou a rua correndo com uma sacola na mão enquanto um outro homem baixinho tentava correr atrás dele gritando "pega ladrão!".

Quando vou acordar?
Esta sensação ruim está me dominando e me deixando nervoso. Já tive vários sonhos e pesadelos lúcidos, mas nunca fui tragado de forma tão intensa e realista.
Minha cabeça começa a girar, minhas mãos começam a tremer e eu sinto uma dor aguda e insuportável em minha cabeça.
É uma sensação nova e desesperadora.

Nunca passei por isso antes.
Nem nos meus piores pesadelos.

Levantei do banco do ponto de ônibus ainda em agonia. Minha visão estava distorcida, minha cabeça estava pesada e meu corpo ardia como se eu estivesse queimando por dentro.

De repente, um baque...

— Me desculpe — disse uma voz a meu lado. — Te machuquei?

— Não — murmurei.

Senti um toque em meu braço.
Era muito real para ser apenas um sonho...

— Eu não queria esbarrar em você — disse a mesma voz de antes.

Aos poucos, minha visão foi ficando mais nítida e pude vê-lo.
Eu estava sentindo muita falta de ar...

— Não foi nada.

— Tem certeza, pois você não parece bem e...

— Eu já disse que não foi nada — resmunguei.

— Tudo bem, me desculpe — disse o rapaz tirando a mão do meu braço e se afastando dois passos.

Ele continuou me olhando por um momento antes de ajeitar a mochila nas costas, virar e seguir seu caminho.

Enquanto o rapaz se afastava, as dores, a falta de ar e todos os sentimentos ruins que este sonho maluco estavam me causando começaram a passar.
Era possível respirar de novo...

— Garoto esquisito — murmurou a mulher que quase foi atropelada pelo taxista momentos atrás.

A senhora idosa se afastou e se encolheu ao lado do ponto de ônibus enquanto me olhava. A moça com a criança de colo se afastou protegendo a filha nos braços como se algo as ameaçasse.

— O que foi?! — resmunguei irritado. — Vocês não são reais!

Elas continuaram me olhando.
Assustadas.

— Vocês vão desaparecer assim que eu acordar — rosnei.

Gritos, estampidos e outros barulhos começaram a ecoar pela avenida. Alguma coisa estava acontecendo nas ruas próximas e causando uma enorme confusão.

Eu não dava a mínima, pois tudo que eu queria era acordar logo.

— Socorro! — gritou uma pessoa.

— Chamem uma ambulância, depressa! — gritou outra.

— O que será que está acontecendo? — perguntou a senhora idosa.

— Esses barulhos com certeza foram tiros, senhora — disse a mulher que me chamou de esquisito.

Era ele!
O mesmo rapaz que esbarrou em mim há pouco tempo. Ele segurava o abdómen com as mãos ensanguentadas e cambaleou na calçada antes de cair.

— Me ajudem! — gritou ele.

Ele estava relativamente longe, mas era como se eu estivesse ao lado dele. Eu conseguia vê-lo com clareza enquanto ele gritava de dor. Eu conseguia vê-lo pedir ajuda e me olhar como se eu estivesse ao lado dele.

Eu o vi morrer...

(...)

O celular despertou exatamente às seis e trinta e cinco da manhã. Acordei levando um susto por conta da vibração que ele fazia no colchão, mas me senti aliviado por ter acordado.
Apalpei o lençol atrás do celular enquanto soltava um bocejo longo e preguiçoso. Passei o dedo na tela assim que o encontrei para que aquele barulho e vibração parassem. Tirei o cabelo dos olhos e pouco a pouco fui recuperando a visão e os reflexos de estar desperto.

Eu tinha mais um longo dia pela frente.

— Bom dia — murmurei assim que entrei na cozinha.

— Você está péssimo — falou minha mãe. — Não dormiu direito?

— Pesadelos.

— De novo?!

Caminhei até a geladeira, abri a porta e peguei uma caixa de leite. Deixei que a porta fechasse sozinha enquanto fui até o armário pegar uma caneca.
Eu ainda estava bêbado de sono.

— Bom dia, família! — exclamou meu pai assim que entrou na cozinha.

— Bom dia, amor — respondeu minha mãe antes de receber um beijo no rosto do meu pai.

— Klay, hoje não vou poder te buscar na faculdade — falou meu pai. — Seu irmão tem dentista e eu preciso acompanha-lo.

— Não tem problema — murmurei.

— O que aconteceu com você, filho?!

— Não dormi bem, eu acho.

— Claro! Antes de dormir, você fica assistindo séries e jogando no celular.

— Amor, deixa ele em paz? — pediu minha mãe.

— Só quero que ele descanse mais, querida.

— Estou bem, okay?! — resmunguei.

Meus pais não faziam ideia que tenho sonhos lúcidos. Eles sabiam que tenho pesadelos frequentes e que sofro muito com isso, mas não faziam ideia do quanto esses sonhos tem me afetando ultimamente.

Comecei a ter sonhos lúcidos quando era pequeno. Era comum eu sonhar todas as noites, então, acho que isso contribuiu para eu desenvolver essa estranha e inútil habilidade.
Sonho lúcido é quando você dorme, sonha e sabe que está em um sonho. Às vezes, você tem controle sobre ele e pode decidir o que você e as outras pessoas vão fazer, mas há vezes que você não pode controlar o que está acontecendo e é obrigado a vivência-lo, mesmo estando ciente de que nada nele é real.

Nos últimos meses, tenho dormido menos e me sentido mal com estes sonhos. Acordo cada dia mais cansado e sem disposição. Sinto dores estranhas em meu corpo, calafrios...

— Se você não tomar seu café logo, vamos nos atrasar — avisou meu pai.

— Ainda tenho que arrumar minhas coisas, escovar os dentes e...

— Então o que você está esperando?! — exclamou ele me apressando.

— Tenham um bom dia, amores — falou minha mãe pouco antes de sair da cozinha.

Entre diversos cursos que cogitei cursar na faculdade, psicologia foi um dos que mais chamou minha atenção. Sonhos, comportamento humano e várias matérias que compõe a psicologia sempre me fascinaram. Como a vida não é justa e nem fácil, acabei entrando na faculdade de direito para agradar meus pais. Eles sempre sonharam em ter um filho advogado e, provavelmente, meu irmão mais novo não vai seguir por este caminho.

— Tudo bem mesmo eu não vir te buscar? — questionou meu pai enquanto eu tirava o cinto de segurança e pegava minha mochila no banco de trás.

Era rotina meu pai me levar e me buscar na faculdade.

— Fica tranquilo, pai — falei. — Eu sei me cuidar.

— Me liga se tiver qualquer problema! — exclamou ele depois que sai do carro.

Minha faculdade podia não ser uma das mais conceituadas do país, mas com certeza tem as mentes mais peculiares e as pessoas mais excêntricas que se possa encontrar. Sem falar que o campus e área dos dormitórios é uma bagunça.
Agradeço todos os dias por meus pais terem mudado comigo quando recebi a carta de admissão para o curso de direito.

O segundo semestre nem tinha começado e eu já estava cheio de trabalhos para fazer, livros para ler e problemas para resolver. Mesmo passando horas na biblioteca na semana passada, eu não consegui colocar minhas leituras e anotações em dia.
Eram muitas coisas para fazer em tão pouco tempo...

— Nivans! — trovejou meu melhor amigo Tyler quando me viu entrar no campus.

— Sei que você vai me matar — comecei assim que que ele chegou perto o bastante para me ouvir. —, mas ainda não fiz as anotações do livro de direito penal para o trabalho.

— Eu também não fiz as anotações do livro de direito constitucional, então...

— Estamos ferrados se não entregarmos tudo isso até sexta feira.

— Relaxa, Klay — disse ele chacoalhando meus ombros. — Podemos fazer um grupo de estudos esta semana para recuperar o tempo perdido.

Tyler e eu entramos no prédio principal da faculdade e corremos até a biblioteca para separar tudo que era necessário para o trabalho que íamos apresentar no final de semana. O tempo estava correndo. Em poucos minutos, teríamos que estar em sala de aula com pelo menos metade das anotações prontas para apresentarmos ao professor o progresso do trabalho.
O problema é que não tínhamos feito progresso...

— Posso adivinhar? — perguntou minha amiga Sue ironicamente. — Vocês não fizeram as anotações para o nosso trabalho.

— Claro que fizemos! — exclamou Tyler.

Olhei diretamente para Sue e balancei a cabeça negativamente.
Estávamos ferrados de todo jeito.

— Eu fiz — resmungou ela. — Vocês vão me pagar o almoço durante duas semanas por conta disto.

— Te amamos, Sue! — exclamou Tyler.

Uma voz distante pediu silêncio na biblioteca depois da pequena comemoração do Tyler. Meus amigos e eu trocamos olhares e risadas inaudíveis.
Não estávamos tão ferrados afinal.

Meus amigos e eu seguimos caminho até a sala de aula enquanto tentávamos decorar as partes mais importantes das anotações de Sue. Perdi a conta de quantas vezes cocei os olhos e bocejei durante o trajeto.

Eu estava exausto...

— Você está péssimo, Klay — observou Sue.

— Não dormi bem.

— Você nunca dorme bem, Nivans — falou Tyler. — E olha que nem mora aqui no campus com a gente.

— Pois é! — concordou Sue. — Se morasse aqui no campus, ia ver como é raro ter uma boa noite de sono.

Apesar de meus sonhos lúcidos não terem me incomodado durante muitos anos, era preferível morar no campus da faculdade e dormir mal do que passar pelo que tenho passado nas últimas semanas.
Estava ficando incontrolável e exaustivo e eu não fazia ideia do porquê.

Depois de Sue salvar Tyler e eu de um destino cruel com nosso professor mais tirano e de termos concluído pelo menos sessenta por cento do trabalho, finalmente a hora de ir para casa e descansar havia chegado.
Pensei em pedir um Uber, mas a bateria do meu celular estava no fim e eu tinha esquecido a bateria extra dentro da gaveta da mesa de cabeceira do meu quarto. Eu não estava com o cabo carregador e não queria incomodar Sue e Tyler no dormitório deles depois de tantas horas de estudos, anotações e preparação de trabalhos.

Não seria um sacrifício ir até uma avenida próxima para pegar um ônibus ou táxi.

Andei distraidamente por algumas ruas, olhei vitrines de lojas e senti minha barriga roncar quando passei por um fast food. Eu podia pegar um dos táxis que passavam a todo momento pela avenida, mas por alguma razão, continuei andando para curtir um pouco mais aquele dia ensolarado de começo de outono.

De repente, tive uma estranha sensação de déjà vu...

Atravessei uma avenida movimentada, andei alguns metros pela calçada e parei em frente a um ponto de ônibus estranhamente familiar. Era possível sentir o odor da poluição da cidade, um dia quente fora de época e uma imensa vontade de ir ao banheiro. Senti meu rosto aquecer ainda mais com o refletir do sol em uma das placas de sinalização.

O que estava acontecendo?
Por que eu me sentia tão estranho?

— Com licença, rapaz — disse uma senhora idosa se aproximando de mim. — É aqui que passa aquele ônibus que vai para o hospital perto do Hotel Palace?

— O que? — questionei confuso.

Encarei aquela senhora por um momento e lembrei dela em meu último sonho...

— Querido, você está bem? — perguntou a senhora colocando a mão sobre meu ombro.

— Eu não...

— É neste ponto mesmo, senhora — respondeu uma moça com uma criança pequena no colo. — Eu também vou pegar esse ônibus.

— Muito obrigada — agradeceu a senhora idosa.

Era o meu sonho, com certeza!
O que eu tinha sonhado noite passada estava acontecendo.
Era isso ou eu estava enlouquecendo...

— Que droga! — exclamou o motorista de um táxi depois de quase atropelar uma mulher. — A rua não é uma passarela, mulher!

— Olha por onde anda, idiota! — gritou ela batendo com a bolsa na lateral do táxi.

— Além de feia é cega? — gritou ele antes de buzinar e acelerar o veículo.

A criança no colo da moça que tinha respondido a pergunta da senhora idosa começou a chorar. A moça que quase foi atropelada pelo táxi parou no ponto de ônibus que estávamos e pegou um espelhinho pequeno da bolsa para retocar a maquiagem. Um homem estranho atravessou a rua correndo com uma sacola na mão enquanto um outro homem baixinho tentava correr atrás dele enquanto gritava "pega ladrão!".

— Droga! — exclamei começando a me desesperar.

Senti um arrepio apavorante subir por minhas costas. Diferente do sonho, eu estava bem. Minha cabeça e meu corpo não doíam e minha visão não estava distorcida. Eu estava distraído e tão envolto em pensamentos que...

De repente, um baque.

— Me desculpe — disse uma voz a meu lado. — Te machuquei?

Era ele.
O rapaz que ia ser baleado.

— Não — respondi ainda apavorado.

— Eu não queria esbarrar em você — disse ele abrindo um lindo e largo sorriso.

Aquilo foi diferente, pois ele não tinha sorrido daquela forma em meu sonho.
No sonho, eu estava perturbado e com dores, mas naquele momento, eu estava bem...

— Não foi nada — murmurei. — Não se preocupe.

— Tudo bem, então... — falou o rapaz antes de se afastar dois passos para seguir seu caminho.

Se o que eu sonhei estava acontecendo...

— Espera! — exclamei para o rapaz.

Ou ele não me ouviu ou achou que o chamado não era para ele, pois continuou andando em direção a travessa que o tiroteio ia acontecer.

— Por favor, espera! — gritei mais alto.

Eu precisava pará-lo!

...

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