Do lado da prta...part II

Um conto de Estrela_Solsol

...Continuação

S Á B A D O

Que Ícaro gostava de acordar tarde, não é novidade, mas naquele sábado o relógio nem havia marcado oito horas da manhã e seus olhos encontravam-se muito abertos. Aliás, ele praticamente não dormiu. Nesse meio tempo, Samuel — o qual dormia tranquilamente na cama de baixo do beliche — simplesmente capotou logo após escurecer. O garoto precisava daquele descanso.
Contudo, enquanto Ícaro colocava-se quase na ponta da cama para dar provavelmente a milésima espiadinha no dorminhoco, se pegou sorrindo ao lembrar a reação dos pais ao pedir que eles deixassem Samuca passar uns dias ali, alegando que o próprio brigou com o pai, porém, sem revelar o motivo a pedido de Samuel — ele tinha vergonha; seu genitor o fez envergonhar-se de si mesmo. Os adultos de cara aceitaram com a condição de que Samuel avisasse pelo menos a mãe, onde estava.
Assim que oito e meia cravou no relógio, ele resolveu descer, devagar para não acordar o outro, se dirigindo então ao banheiro, mas não sem antes dar outra admirada em Samuel. Ele dorme tão gostosinho. O banho o qual foi caprichado, e o pós dele também, tinha uma razão: Ícaro queria ficar arrumado; cheiroso; bonito. Portanto, depois de finalmente deixar a área cheia de vapor, teve um sobressalto ao encontrar sua mãe no quarto, com lençóis e toalhas nos braços.

— Que milagre, meu bebê acordou cedo sem eu precisar ameaçar cancelar a Internet. — De modo humorado, ela implicou com o filho.

— Muito engraçado, olha como estou rindo.

Ignorando o menino, ela deixou o quarto para tomar conta do café da manhã e com apenas uma toalha em torno da cintura, Ícaro se guiou ao guarda-roupa, tirando dele as suas peças favoritas, pois, se achava gostoso nelas.
Aparentemente, Ícaro estava tentando seduzir Samuel.

— Que bundinha fofa, bebê. — Acabou utilizando a forma carinhosa que a mãe usava para chamar o filho, a fim de pirraçar Ícaro.

O coração do garoto quase foi implodido dentro do corpo, tamanho o susto que levou ao ouvir aquela frase em tom risonho. Não só o tom. No instante em que se virou, terminado de se vestir, encontrou um olhar bem travesso naquele rosto.
Quis sorrir, porque achou fofo e sexy, mas se conteve, fazendo o insultado.

— Cheio de graça, você, né? — Rodando um pedaço da toalha com um sorriso nada inocente, Ícaro foi se aproximando do beliche. — Vou te mostrar o tamanho do bebê.

Samuel, também com um curvar de lábios um tanto sapeca, fez pouco caso daquela ameaça. Entretanto, assim que o garoto localizava-se a um passo de distância, Samuca recuou, colando as costas na parede. Essa atitude foi nada mais para deixar o lugar vago. Ele queria Ícaro ali. Nisso, o dono do quarto continuou, e após puxá-lo pelo ombro, deixando-o de bruços, bateu de leve com a toalha úmida sobre aquela retaguarda coberta pelo lençol, gerando um reboliço no peito de Samuel. Por fim, Ícaro retrocedeu, largando a toalha sobre a cama de cima e se encaminhando à porta.

— Vá lavar essa cara amassada e depois venha tomar café, Cabeludinho.

Óbvio que Ícaro também queria ficar na mesma cama que Samuca, mas mal conhecia o garoto. Quer dizer, conhecer, conhecia, porém, não tinha essa liberdade. A última coisa que ele queria, era que o menino se ofendesse e fosse embora de sua casa.
Samuel, por outro lado, estava nem aí pra qualquer coisa. Por mais que a generosidade do colega de classe tivesse plantado uma sementinha dentro dele, a qual gerava aos poucos, raízes, ele não tinha pretensão de desenvolver um romance naquele momento de sua vida. Nunca havia se apaixonado e não sentia falta disso. O que não deixava de ser algo normal, ele tinha apenas dezessete anos. Apesar disso, se fosse para rolar algo ele não iria fugir, até porque, Ícaro era o terceiro no seu top 5 dos garotos mais pegáveis do colégio.

De cabelos molhados, o que os deixavam ainda mais longos, Samuca se dirigiu para fora do quarto, caminhando lentamente por conta de estar um pouco envergonhado de estar na casa dos outros, no entanto, dane-se, tô com fome, concluiu.

— Você está com uma carinha melhor, hoje — comentou, Márcia, recebendo a confirmação do marido.

"Ele está é uma delícia com esse cabelo molhado", constatou, Ícaro.
Estava ficando cada vez mais difícil manter-se impassível diante de toda aquela aproximação. Não era só atração física, ele sentia uma necessidade absurda de abraçá-lo; fazer carinho; sussurrar o quanto o queria.
[...]
Serginho Groisman começava a apresentação do seu programa quando o celular de Ícaro informou a chegada de uma mensagem. Deixou o sofá que abrigava também seus pais, ainda se questionando o que Samuel fazia tanto no banheiro. Porra, ele tá há mais de uma hora tomando banho. Se deu conta, inconformado enquanto apanhava o smartphone da mesa de canto.
"11:30 tem rolê, não esquece", lembrou, Davi.
"Não vou", foi a única coisa que ele respondeu ao amigo. Ícaro já tinha planos para aquele sábado. Só precisava avisar isso ao Samuca.
Foi só o tempo dele bloquear a tela do aparelho e virar-se, que Samuel surgiu do corredor que levava aos quartos muito bem vestido com aquelas peças emprestadas; cabelos acompanhando o movimento de seus passos, os quais tinham a parte de cima presa num pequeno coque; cheiro de banho tomando conta do ambiente... O garoto estava puta que pariu, que homão! Por pouco Ícaro não deixou esse pensamento sair em voz alta.

— Tô bonito? — quis saber, parando ao lado dele.

Tentando não sorrir, o mais alto deu de ombros.

— Arrumadinho. Vai sair?

Samuel assentiu, tirando um fio de cabelo dos olhos. Para Ícaro, ouvir essa confirmação foi como levar um soco cheio de espinhos no estômago.

— Já avisei seus pais. Talvez eu não volte hoje.

— Ah... — suspirou em completo desânimo. Samuca percebeu. — Mas, você... — limpou a garganta. Nem ele sabia o que queria perguntar. Na verdade, sabia, só não tinha coragem. — Tá, tchau.

Ícaro se pôs de costas, logo se afastando. Ele nem ao menos fez questão de disfarçar a irritação — por ciúmes — naquele "tchau". E outra vez, seu comportamento não passou despercebido pelo outro.

"Qual é a desse cara?", se questionou, Samuel.

— Ícaro, te fiz alguma coisa?
Fingindo não ouvir a pergunta, ele se enfiou no quarto, o qual após passar pela porta, deu uma empurrada com o calcanhar para fechá-la, contudo, Samuel impediu com a palma sobre a madeira que ela se fechasse.

— Por que você tá assim? Não sei o que te fiz, mas desculpa.

As mãos frias de Ícaro sempre presentes, encontravam-se fechadas. As palpitações também não o abandonaram. Nem a hesitação. Por que eu não consigo me declarar?
Ele, que antes estava de costas e fitando as cortinas, girou-se, deparando-se com um Samuca aflito. Aquele olhar coberto de lamentação foi o suficiente para eliminar todo o aborrecimento de Ícaro, que não tinha motivo algum para agir daquela forma, afinal, Samuel não tinha compromisso algum com ele. Nem com ele e nem com ninguém: era solteiro.

— Para. Você não fez nada. Eu que... Tsc. — respirou fundo, desfazendo o contato visual. — Vai lá, se divirta.

— Valeu. Até amanhã, besta — deixou sair um sorriso.

E foi então que, ao assistir Samuel virar o corpo, os olhos de Ícaro foram fechados com a força do desespero.
— Fica — pediu, num murmuro. Samuca parou e permaneceu fitando a saída do quarto, em silêncio. À vista disso, Ícaro não se conteve, prontamente eliminou os três passos que o separava do garoto com belos cabelos, e o abraçou por trás. Estático, Samuel sentiu longos braços envolverem seu corpo e um nariz aspirar seus cabelos. — Não vai. — continuou, sussurrando.

— Í-Ícaro, o q-que vo-vo-cê... — Samuca tinha o dom de gaguejar quando estava nervoso.

O garoto não deixou o outro terminar para colocá-lo de frente para si. Em seguida, o empurrou até uma estreita parede ao lado da porta, por fim, segurou com ambas as mãos o rosto do menino confuso.

— Foi mal, mas não tá dando mais pra esconder isso.

Aquelas foram as últimas palavras que Samuca ouviu antes de ter sua boca tomada pelo seu colega de classe.

D O M I N G O

01:23 da manhã. Era esse o horário que piscava no relógio digital em forma de lego sobre o criado mudo quando Ícaro levou os dedos aos cabelos desajeitados de Samuel, o qual dormia de modo tranquilo ao seu lado. As costas subiam lentamente da mesma maneira que desciam, demonstrando que o sono se encontrava intenso.
Assim como o sentimento do garoto que preferiu manter-se acordado para admirar o outro dormir. Ele não sabia que era possível, mas naquele segundo sentiu que o seu "gostar" havia mudado. Aquilo não era mais paixão, era outra coisa.
Uma bem mais forte.
Após se aconchegar melhor no travesseiro, ficando então de lado na cama, Ícaro deslizou a mão que afagava aqueles fios rebeldes, passando-a pela nuca e fazendo sutis círculos pelas costas de Samuel conforme percorria a sua pele e relembrava tudo o que fizeram sobre aquele colchão. Mesmo com a escassa iluminação vinda apenas das luzes da parte externa da casa, a visão dele estava cristalina. Nenhum detalhe daquele rosto lhe passou despercebido.
Sorriu, achando graça da desculpa esfarrapada que inventou à mãe no instante que ela ao topar com a porta do quarto trancada às onze horas da noite, perguntou se havia algo errado, já que o filho nunca dormia cedo durante o final de semana. Contudo, preferiu acreditar que ele se encontrava realmente fazendo maratona de séries. No entanto, aquele sorriso se intensificou ainda mais assim que a imagem de Samuel mordendo o lábio inferior enquanto seu corpo deslizava-se sobre a cama, apareceu em sua mente. A maneira como as mãos e a boca do cabeludinho conheciam o seu corpo ou os sussurros indecentes que Samuel ouviu ao pé do seu ouvido, também não ficaram de fora.
Os tímidos gemidos de quem tinha medo de ser ouvido; arranhões impensados; mordidas, tapinhas... Não sairiam da cabeça de Ícaro nem com reza brava.

No início ele se sentiu hesitante por achar que sua vontade acumulada estava o machucando de alguma forma, mas ao perceber que era exatamente daquele jeito mais ousado que Samuca apreciava, deixou-se ser ele mesmo. Todavia não durou muito, quando deu por si, seu eu romântico resolveu tomar conta.
Não podendo se conter, ergueu-se, deixando alguns beijos nas costas de Samuel antes de imitar sua posição de bruços na cama, com um braço contornando a cintura do outro e quase unindo os dois narizes.
Pretendia ficar olhando-o dormir até pegar no sono.

— Você não dorme, não, senhor santinho na sociedade e cachorrão na cama? — a voz sonolenta de Samuca provocou uma risadinha no outro.
Ícaro beijou-o na ponta do nariz.

— Se quer saber, sou cachorrão na sociedade também — se entregou. Porém, Samuca já sabia disso. Ver Ícaro cantando as garotas do colégio não era novidade a ninguém. — E meloso com quem merece.

Suspirou, Samuel, guiando a mão àquele rosto coberto de pelos.

— Fofo, mas agora estou muito brabo porque você me acordou, por isso terei que te matar. Desculpa.
Depois de outra risada não muito baixa, Ícaro grudou seus lábios ao de Samuel, iniciando um beijo tímido; carinhoso. Não demorou para que as costas nuas do menino estivessem sobre os lençóis amarrotados e o peito de Ícaro, pressionando o seu. A necessidade de correr a língua pelo pescoço familiar do seu colega de classe já livre do sono, fez com que a boca de Samuca fosse libertada.

— Ah, Ícaro... por que nunca me disse que eu tinha chance com você? — suspirou.
Deixando o pescoço cheio de saliva de lado, ele procurou os olhos escuros sob os seus, ao mesmo tempo que dava permissão à sua mão para acariciar a cintura gordinha do garoto.

— Chance? — riu novamente. — Filho, eu caso contigo se você quiser. — Contudo, o sorriso dele se desfez ao encontrar um semblante sério no rosto de Samuel. — Foi mal, eu... Rápido demais? — Enrugou a testa, envergonhado.

Mesmo que ele estivesse conhecendo Ícaro de verdade apenas naqueles últimos dois dias, o outro desejava-o há por volta de dois longos anos. Por mais que tentasse agir naturalmente, uma hora ou outra, Ícaro ia deixar aquele sentimento platônico ser revelado.
No mesmo segundo, Samuca se desvencilhou dos braços de Ícaro, sentando-se um pouco torto, pois, a cama de cima não ajudava muito.

— Olha, eu juro que se tudo isso for... — Parou, sentindo os olhos arderem. Ele não queria chorar, e por sorte, conseguiu controlar a vontade. — alguma brincadeira pra depois ficar fazendo piada de mim com o resto do colégio, eu faço o psicopata e mato todo mundo!

É claro que Ícaro não esperava por aquela reação, embora entendesse. Samuca tinha motivos para desconfiar de qualquer um naquela escola regada a alunos maldosos e alunos que eram contra as agressões, todavia não queriam se envolver, porém, no final se tornavam tão culpados quanto.

— Samuca, eu... — Também sentou-se do jeito que deu. — gosto de você de verdade. Duvido que nunca tenha achado estranho eu passar todas as aulas olhando para a saída, que no caso era para o menino que sentava do lado da porta. Eu só não tinha coragem de falar. Não sei se por timidez, confusão ou sei lá... Eu travava quando chegava perto de você.

De olhos baixos, Samuel cruzou os braços e apesar de não ter demonstrado, adorou ter sido chamado de "Samuca". E sim, ele havia percebido os olhares em direção à porta, entretanto, nunca parou para pensar no motivo.

— Há quanto tempo?

— Desde que você apareceu na minha sala. Eu nem sabia que você era gay, mas sentia alguma coisa. — Ao ter uma ideia de provar que seu sentimento não era fruto de piada, esticou o braço para acender a luminária ao seu lado. — Olha isso. — Mostrou seu punho direito, o qual possuíam leves esfoliações nos nós dos dedos. — Ganhei depois de socar o arrombado que te perturbou quinta-feira, na saída do colégio.

"Qual deles? Foram tantos", pensou.
Samuel já havia notado aqueles ferimentos, no entanto, não sentiu necessidade e nem tinha intimidade suficiente para perguntar, entretanto, logo um flashback invadiu seus pensamentos. Ele assistiu a cena, viu o momento exato que Ícaro feriu aquele rapaz, porém, estava à uma distância desfavorecia, por isso, não pôde decifrar a identidade do garoto que saiu correndo sobre sua bicicleta. Contudo, aquele que permaneceu no chão por alguns minutos com a mão sobre a boca, foi facilmente reconhecido após alguns passos.

— Mentira que foi você! — Trouxe a mão de Ícaro, analisando-a com mais atenção, para enfim o puxar, abraçando-o e afundando seu rosto no pescoço de cheiro suave.

Sem nem pensar, Ícaro retribuiu o abraço, talvez até com mais vontade do que Samuca. Teve que se controlar para não apertá-lo demais e acabar esmagando-o, parando apenas para beijá-lo na testa, antes de tornar a envolver aquele corpo com seus braços.

— E será sempre assim daqui em diante — começou, entre cafunés naquele amontoado de cabelos. — Se eu souber que alguém está infernizando o meu Cabeludinho, só vou chegar na voadora.

Uma pena Ícaro não ter visto o imenso sorriso liberto pelo Samuel. Mas oportunidades não faltariam.

— "Seu Cabeludinho"?

O abraço foi desfeito por Ícaro, para que com as mãos no rosto do outro, pudesse olhá-lo nos olhos.

— Só se você quiser.

Então, aquela sementinha dentro de Samuel que anteriormente criava raízes, naquele instante deixou brotar da terra a primeira folha.
[...]
Coberto apenas do umbigo para baixo, com o rosto colado na nuca de Ícaro e respirando todo e seu perfume natural, Samuca o abraçava pelas costas, na típica posição de conchinha. Ambos dormiam serenamente; despreocupados. Aquelas respirações as quais levavam ar aos pulmões no mesmo ritmo, como se tivessem combinado, só deixavam a cena ainda mais delicada.
No entanto, batidas na porta despertou um deles, e não foi de um jeito bom.
Samuel sentou-se assustado, de modo que teve sua cabeça chocada com as ripas da cama de cima, causando-lhe uma dor forte que gerou um palavrão sussurrado. Não era só susto, ele estava com medo. Medo esse que o fez implorar para que Ícaro não revelasse aos seus pais, a razão de ter sido expulso de casa. Samuca não queria ser proibido de frequentar a casa de Ícaro; não queria ser impedido de ver aquele que ainda dormia ao seu lado.
Olhou em volta: roupas espalhadas pelo quarto; embalagens de preservativos rasgadas; um travesseiro em frente à porta do banheiro; as batidas na porta sendo acompanhadas pela voz da mãe de Ícaro. Será que dá tempo de arrumar tudo? Quando deu por si, já molhava o rosto, quase soluçando com as mãos sobre os olhos. Justo agora que finalmente havia achado alguém legal, corria o risco de perdê-lo. Foi então que o desespero passou a abraçar o medo.
Samuel se encontrava sendo tomado pela ansiedade.

— Samuca...? O que foi? — Enfim Ícaro foi despertado pelo choro. — Já vai, mãe! — berrou, antes de tentar ver o rosto coberto por duas mãos. Ele desejava removê-las dali, até fez menção de tirá-las, mas hesitou. Não sabia o que fazer e nem se o outro gostaria de ser tocado. Ícaro estava começando a ficar aflito com o estado do garoto.

Sendo assim, deixou a cama para ver o que a mãe tanto queria.

— Não abra a porta — soprou, Samuel, quase inaudível.
Tarde demais, já havia sido aberta, e dela passaram Davi e a mãe de Ícaro.

— Filho, o Davi está desesperado querendo jogar Fi... — Ela se calou de imediato. Seu olhar era um misto de susto com repugnância. O amigo de Ícaro por sua vez, o qual não havia percebido que era Samuel ali e muito menos, que chorava, murmurou: "Só nas saliências, hein?", em meio a uma sobrancelha erguida.

— Mãe, eu...

— Cala a boca, Ícaro! — o grito saiu entrecortado. Ela estava a ponto de se render às lágrimas enquanto caminhava pelo quarto e analisava toda a cena. — Well, nosso filho é um monstro! — exclamou, sentindo o coração ser dominado pela vergonha.

Nesse meio tempo, o choro de Samuel se tornou mais intenso.
Em segundos, o pai também já se localizava dentro do cômodo e seu olhar não era muito diferente dos olhos úmidos da esposa. A abraçou, beijou-a na testa e por fim, se aproximou do filho, o qual se encontrava trêmulo. Jamais havia visto os pais olhando-o daquela forma, e se não fosse pela intervenção de Davi, Ícaro teria levado um belo tapa no rosto.

— Eu não criei você pra isso... — O homem seguiu então ao beliche, sentando-se com pressa. Samuca não o viu, já que em nenhum momento havia libertado os olhos das mãos. Imediatamente Ícaro começou a desfazer o espaço entre eles, pois o medo do pai ferir o garoto era imenso. — Eu não criei filho para ser estuprador!

Aquelas últimas palavras do pai, em conjunto de "você vai ficar bem", fizeram não só Ícaro parar onde estava, como também Samuel encarar o sujeito de expressão comovida ao seu lado.
Ícaro gargalhou; Samuca sorriu com os olhos inchados; Davi passou a mão no rosto, rindo por dentro.
Os adultos só ficaram mais perdidos do que nunca. Contudo, aquela confusão deu origem a suspiros aliviados assim que os dois garotos explicaram tudo: paixão platônica, razão da expulsão de casa, e principalmente, que tudo foi consensual.

— É isso mesmo, negada, a minha orientação é bissexual, e a opção é... Samuel — Ícaro não se assumiu apenas para os pais e seu amigo, mas também para si próprio, com direito à declaração para não perder o costume.
  

S E G U N D A

Em cima da barra de metal da bicicleta de Ícaro, Samuel deu um sutil curvar de lábios, algo extremamente raro, se tratando que ele era um adolescente acordado às seis e quarenta da manhã e rumo ao colégio em plena segunda-feira. Mas aquele bom humor nem se comparava ao do garoto o qual enquanto manobrava a bike naquela tímida rua, aproveitava para aspirar todo o perfume dos cabelos à sua frente, e também, deixar alguns beijos naquele rosto, sempre que Samuca o olhava.
Ambos eram a personificação do alto astral; primeiro amor. Bom, no caso de Ícaro, ele estava sim vivenciando o seu primeiro amor, e quanto ao Samuel, o surgimento desse sentimento seria apenas questão de tempo.

— Para aqui — pediu o menino, alisando a mão que segurava o punho do guidão.

Sem entender Ícaro parou, assistindo por consequência, o outro saltando pro chão. Eles se encontravam a uma quadra do colégio e outros alunos já começavam a seguir também por aquele caminho.

— Incomoda sentar aqui, né? — Ele passou a mão onde antes, Samuel sentava. — Vou juntar uma grana pra comprar uma garupa.

Ouvir aquela última frase fez o menino sorrir, talvez um pouco culpado. Ele ainda não estava cem por cento entregue a tudo aquilo. Tinha sim desconfianças, era humano.

— Ícaro, eu... — Aproximou-se, largando a bolsa no asfalto. — estou me apegando a você, por favor, não faça nenhuma merda.

O outro só conseguiu respirar fundo, por fim, puxou Samuca com um só braço, mantendo a outra mão na bicicleta, e assim, o abraçou. Ícaro não sabia mais como provar que o seu amor era verdadeiro. Infelizmente, de tanto as pessoas se privarem da sinceridade escondendo seus sentimentos, demonstrações de afeto se tornaram tão incomuns a ponto de parecerem frutos de segundas intenções.
Poucos minutos depois e aqueles dois meninos já caminhavam em direção à sala de aula. Um ao lado do outro. Ícaro não quis beijá-lo ou tocá-lo, pois, não sabia se Samuel gostaria desse tipo de coisa em público, embora estivesse morrendo de vontade de fazer.

— Que sorrisinho é esse, bichinha? Deu, foi? — o garoto de boné riu, interrompendo o que Samuel iria dizer.

Em uma velocidade que só podia ser acompanhada em câmera lenta, Ícaro grudou suas mãos nas alças da mochila a qual se localizava às costas do sujeito, e o jogou contra a parede de cor azul, totalmente tomado pela fúria.

— Pede desculpas, desgraçado! — suas palavras foram pronunciadas entre dentes. Samuel pensou em afastá-los, porém, por temer uma suspensão a Ícaro caso ele partisse para a agressão física, contudo, tinha noção de que não conseguiria. Ambos eram maiores que ele. — Não vai pedir, não?!

O rapaz dividiu o olhar com Ícaro e Samuel, entendendo tudo.

— Tu é um dos machos dele? Foi mal, eu não sabia. Mas se eu fosse tu, evitava beijar na boca, vai que...
Ícaro não o deixou terminar, calando-o com um golpe na altura dos olhos. Óbvio que ele sentiu ciúmes ao imaginar Samuca com outro garoto, no entanto, não se deixou ser envenenado.

A seguir, pegou Samuel pelo cotovelo, seguindo em silêncio com ele até a sala. Seu corpo estava energético, agitado, em razão disso acabaria se encrencando de verdade caso continuasse dialogando com o outro aluno. Por sorte, o local ainda se encontrava livre de professores e isso lhes daria tempo de conversar. Sendo assim, tirou a mochila das mãos de Samuel e a colocou sobre a cadeira, para depois segurá-lo pela cintura, e em cima da mesa do lado da porta, sentá-lo.

Aquela cena pegou a todos dentro da sala, de surpresa, porém, o foco dos dois mantinham-se apenas nos olhos um do outro.
Ícaro pediu passagem e Samuel não pensou duas vezes, deixando-o se colocar entre suas pernas e ter suas coxas acariciadas sobre a calça emprestada. Se enquanto Ícaro permanecia com os nervos à flor da pele, o outro estava adorando tudo aquilo. Amando o fato do garoto não ter vergonha de mostrar o quanto eram íntimos.

— Eu preferia conversar sobre isso em casa, mas vai ser aqui mesmo — iniciou, recebendo um aceno com a cabeça de Samuel. — Isso que aconteceu no corredor vai se repetir muitas vezes porque não vou conseguir ouvir falarem aquelas merdas de você e ficar quieto, então este é o momento de correr.

O sorriso que Samuel liberou ajudou a diminuir um pouco a irritação de Ícaro.

— Eu só corro agora se for atrás de você, mon amour.

Duas meninas sentadas ao lado, umas das poucas que Samuel chamava de amigas, soltaram em coro um "ownt".
As duas mãos deixaram ambas coxas para encontrarem o rosto do menino com alguns fios de cabelo sobre os olhos, o qual não demorou a ser beijado com vontade. Se Ícaro ainda tinha algum resquício de raiva, esse foi embora assim que sua língua tocou àquela com gosto do bolo de chocolate que os dois comeram no café da manhã.

— Os beijoqueiros poderiam fazer isso no intervalo? — chamou a atenção, a professora, ao passar pela porta. Sorrindo, Ícaro lhe deu mais um selinho antes de se dirigir ao seu lugar, no outro lado da sala. — Isso vale para vocês dois aí no fundo — concluiu, pois, nos últimos lugares, um garoto também se perdia nos lábios da colega de classe.

Porém o restante dos alunos só acharam ser motivo de comentários, o beijo que aconteceu do lado da porta.

— Mano, ainda não me conformo que você não contou nem pra mim que gostava do Cabeludinho. Porra, eu nunca fui preconceituoso, velho. Estou até lendo um livro sobre um padeiro gay na Internet — reclamou, Davi.

Ícaro suspirou. Ele tentou se abrir com o amigo, no entanto, sempre hesitava. Falar das garotas que tinha vontade de beijar era fácil, porém de Samuel, o seu interior o impedia de conversar.

— Foi mal. Prometo te avisar com antecedência quando marcarmos a data do casamento.

— Queridinho, eu também quero ser avisado — se uniu à conversa uma terceira pessoa.

Ao erguer os olhos, Ícaro encontrou Samuel do seu lado segurando a mochila na frente do corpo. Sorriu, junto à piscada que ele enviou ao seu Cabeludinho, e enfim o garoto encarou o amigo sentado à sua esquerda, fazendo-o entender o recado.

— Tá, já sei! Estou sendo cruelmente despejado.

— Para de ser chorão. No intervalo te pago um lanche, parsa. — Essa informação fez Davi pular para o lugar de trás em tempo recorde.

Nesse meio tempo, Samuel sentou-se sob os olhos atentos da professora a qual já havia enchido metade da lousa. Contudo, não quis interferir, uma vez que caso os dois deixassem o romance de lado no momento das aulas, aquela união seria produtiva, já que Ícaro era um dos melhores alunos e Samuel, nem tanto.
Após conferir se aquela senhora não estava olhando, Ícaro virou-se para sua esquerda e puxou a cadeira de Samuel, de modo que a própria ficasse entre suas pernas, deixando-os ainda mais colados. Por fim, passou os braços em torno do pescoço daquele que fitava a lousa, fingindo que nada daquilo acontecia.
Um, dois... cinco beijos foram distribuídos na bochecha e orelha de Samuel.

— A gente deveria estar copiando a matéria — lembrou, ele.
Estudar daquele jeito iria ser complicado.

— Deixo você copiar só depois de me dizer porque gostava tanto de sentar do lado da porta — propôs num sussurro.

Samuca deixou a caneta de lado por um instante, focando todos os seus pensamentos na resposta a qual não lhe gerava nada bom. Ícaro notou a mudança de humor e em meio aos carinhos que começou a depositar naqueles cabelos, pensou em mudar de assunto.

— A porta da sala é a região mais visível se for parar pra pensar — seu tom era baixo, Samuel queria apenas Ícaro o ouvindo. — Tem sempre alguém entrando, saindo, olhando pra ela e desejando ir embora, ou se estiver aberta, observando quem passa no corredor, por isso... — respirou fundo, baixando os olhos. — sentar do lado da porta te deixa exposto e é mais fácil de alguém ver os chutes, tapas, beliscões...

Naquele segundo Ícaro se viu mudo. Seu cérebro estava trabalhando em máxima velocidade, entretanto, palavra alguma passava por sua boca. A lembrança de quinta-feira quando viu Samuel alisando a própria nuca, lhe fez pensar: eu deveria ter batido mais. O garoto então, apenas trouxe para si os lábios de Samuel, iniciando um beijo lento e coberto de pesar. Não era culpa dele, porém, se sentia culpado. Culpado por não perceber, por achar que eram somente agressões verbais.
O beijo foi cessado, contudo, ambos continuaram agarrados durante os cafunés os quais tornaram a aparecer sobre a cabeça de Samuca.

— Mas agora eu não preciso mais sentar lá — continuou, percebendo que Ícaro se encontrava travado.
Ícaro lançou um longo beijo sobre aqueles fios escuros, para enfim, se afastar, pois, a professora havia os flagrado abraçados.

— Por que você não precisa mais? O que te fez abrir mão de se sentar do lado da porta para ficar aqui comigo? — Sim, ele sabia que a razão era ele, todavia queria ouvir Samuel dizer.

O menino foi até a última folha do caderno, tirou outra caneta do estojo e por fim, achou os olhos de Ícaro. Foi então que no mesmo minuto, percebeu que a sementinha dentro dele a qual lhe deu folhas, se preparava para gerar um fruto.

— Porque agora... — Livrou a caneta da tampa. — eu não preciso mais ter medo. Agora eu tenho... — Guiou a atenção à folha, desenhando um coração com traços imperfeitos, embora na mesma página houvesse desenhos bem profissionais, onde escreveu: Ícaro. — Você.

Após pedir desculpas antecipadas à professora que os olhava com uma certa impaciência, Ícaro o beijou daquele seu jeito estabanado, enquanto dizia o quanto estava feliz e também, lamentava por não ter se declarado antes; por ter demorado tanto; perdido tempo demais.
Mas recuperar o tempo perdido seria a prioridade daquele novo casal.

— Ei, Cabeludinho, cê sabe jogar FIFA? — Davi o cutucou com a caneta.

Dentre os amores,
o mais puro que há é o amor platônico.
Sincero. Ama porque ama e não porque  é amado.
É belo, lindo, e cruel. Bota cor de rosa da vida real!
(Álisson Magalhães)

Fim.

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