Do Lado da Porta...Part I
Do Lado da Porta
Um conto de Estrela_Sol
Parte 1
Q U I N T A
Com uma concentração suspeita, o garoto fitava a porta da sala sem ao menos piscar. Era final da última aula; bolsas fechadas sobre as mesas; professor perdido em seu livro de bolso; o sinal iria tocar a qualquer momento. Suspirou, deixando seus dedos se perderem nos poucos fios castanhos os quais habitavam na sua nuca.
- Para de namorar a porta, Ícaro. Já, já, essa porra libera a gente - Davi deu um empurrão no ombro do amigo, despertando-o no susto daquele devaneio. - Que isso, velho, tá sensível? - Por fim riu do sobressalto engraçado que o mais alto liberou.
- Sensível vai ficar o seu rabo quand...
- Ícaro! - interrompeu, o professor. - Daqui a cinco minutos você poderá falar sobre o rabo do Davi, mas por enquanto fica quietinho. Ainda tem gente fazendo o exercício.
Esse comentário foi o suficiente para a sala inteira cair na gargalhada. Quer dizer, menos Ícaro e o garoto sentado ao seu lado. No entanto, ao retornar os olhos àquela porta, a carranca do menino esvaiu como fumaça, apesar disso, como sempre ele não conseguiu admirar o sorriso do Cabeludinho - como haviam o apelidado - por mais de um segundo.
Não é que Ícaro fosse tímido. Aliás, ele era desinibido até demais com as garotas, porém, com Samuel algo dentro dele parava de funcionar. Isso começou desde o começo do ano anterior. Quase dois anos: esse era o tempo que durava a sua confusão; questionamentos. Será que sou gay? E essa era a pergunta que ele mais se fazia, a qual sempre era respondida por ele mesmo com outra: mas como se gosto de peitões? Ele não mentiu. Ícaro realmente apreciava o corpo feminino, algo que só aumentava a bagunça da sua cabeça, pois, desejava ainda mais o corpo do seu colega de classe. Entretanto, com o passar do tempo Ícaro iria entender que ter atração por ambos os sexos era tão natural quanto espirrar ao inalar poeira.
Naquele momento o garoto se encontrava revivendo o instante em que pôs os olhos pela primeira vez em Samuel. Ele estava de costas, acabara de ser transferido de outro colégio e conversava com a nova parceira de sala. Assim que Ícaro viu aqueles cabelos, seu principal pensamento foi: nossa, que gata! A atração foi imediata. Então, já que não era de perder tempo, logo se aproximou para se apresentar à nova colega, contudo, antes de tocar os fios escuros, a dona deles virou-se. Ou melhor, o dono. Nisso, o que se sucedeu foi que, totalmente despreparado, Ícaro apenas agiu no impulso e cumprimentou a menina com quem Samuel batia um papo, por fim passou reto, sem sequer olhá-lo nos olhos outra vez. Fazendo de conta que Samuel era invisível, causando um desconforto enorme no novato.
Ícaro riu pro nada enquanto relembrava tudo aquilo e também, o efeito que Samuel causava em seu corpo toda vez que passava por ele. O perfume com fundo citrino, principalmente. Só depois de alguns meses que ele percebeu: o fato de Samuel ser um garoto e não uma garota, não fazia diferença alguma.
Nem vinte segundos haviam se passado após o sinal ser tocado e mais da metade dos alunos já se localizavam nos corredores do colégio, rumo ao portão principal. Ícaro por sua vez, deixou o amigo tomar sua frente e, para aliviar o desconforto de passar em frente a ele, cutucou uma espinha perdida entre os ralos pelos que cobriam seu rosto - herança genética de seu pai, o qual lhe presenteou com barba aos dezessete anos.
"Por que ele tinha que se sentar todos os dias do lado da porta?"
Faça chuva ou faça sol, Samuel sempre se sentava do lado da porta. Era quase uma devoção. Perdeu as contas de quantas vezes ao chegar atrasado, encontrando outro em seu lugar, ele armou o maior barraco dentro da sala. Por isso, depois de um tempo, ninguém mais ousou se sentar na Cadeira do Samuel. Sim, haviam dado esse nome à cadeira.
Entretanto, podemos chamar de coisa do destino, força do pensamento ou apenas, uma inocente coincidência, mas ao ficar a um passo de distância do causador de suas mãos frias, uma borracha simplesmente saltou no chão, aterrissando em frente ao seu tênis.
"Puta que pariu!"
Sem alternativa, o moreno agachou-se, apanhando a borracha e a colocando sobre a mesa bagunçada do garoto de aprendizado lento - Samuel nunca foi o melhor dos alunos; não é à toa que sempre era o último a deixar a sala.
- Valeu - agradeceu, não recebendo palavra alguma de volta, pois, Ícaro jogou sua bolsa sobre o ombro e se retirou daquele ambiente com certa pressa, sem tempo de ouvir o: - Sempre metido.
Ao chegar no bicicletário, já com poucas bicicletas, parou ao lado da sua, descansando ambas as mãos sobre os punhos dela de cabeça baixa. Seu coração não queria se normalizar. As mãos não tinham a intenção de deixarem de suar ou esquentarem. Era nervosismo.
Ícaro estava apaixonado, assustadoramente apaixonado.
Paixão esta que intensificou ainda mais a sua necessidade de beijar o garoto de cabelos até os ombros, no instante que um boato surgiu nos quatro cantos do colégio: Samuel é gay. Eu tenho chance, foram as primeiras palavras que vieram à sua cabeça. Ícaro adorou saber sobre a orientação sexual de Samuca - como o chamava em pensamento -, mesmo correndo o risco de não passar de um rumor; implicância de adolescentes. De todo jeito, nem tudo era só flores. A forma como os alunos se referiam a Samuel dentro da sala, nos corredores e no grupo na Internet, o irritava muito. Viadinho; bicha; boiola. Ícaro nunca fez o tipo briguento, mas sabia que uma hora não conseguiria se controlar e partiria para a agressão física, colocando para funcionar outro presente genético: seu corpo levemente robusto.
Fisicamente, Ícaro podia ser muito bem comparado com um rapaz de vinte anos. Samuel, por outro lado, não carregava um porte forte, muito menos magro, até porque, era viciado em comer besteiras - seus pneuzinhos provavam isso. Como ele mesmo se autodescrevia nos aplicativos de paquera: eu tenho um corpo bem humano.
- Pedala, boqueteiro!
Assim que aquelas duas palavras acompanhadas de risadas chegaram ao ouvido de Ícaro, e ele, procurando o som se deparou com Samuel alisando a nuca de cabeça baixa, enquanto o outro rapaz ria e caminhava tranquilamente com sua bike, aquelas mãos frias tornaram-se quentes. Seu rosto estava febril. O corpo inteiro do garoto pegava fogo. Era raiva; ódio; sede de violência.
- Vai ter um duelo de FIFA lá na casa do Thiago, vamô? - anunciou Davi ao lado do portão no momento em que Ícaro passou por ele, já montado em sua bicicleta.
- Não, tô zoado. Vou pra casa. - Se despediu com um toque de mão, logo levantando o pedal e seguindo pela rua movimentada, sem esperar outras palavras do amigo. Ícaro se encontrava irritado demais para fazer qualquer coisa que não fosse brigar.
- Tá, mas cê vai vir amanhã? - Davi elevou o tom, de modo que o apressadinho o ouvisse.
- Não, né?! Amanhã é sexta, animal!
Não se sabe ao certo quem começou com essa tradição, porém, sexta-feira era sinônimo de feriado. Menos para Samuel, esse nunca faltava, contudo, não por gostar de estudar e sim para não ficar em casa.
- Só porque eu ia te pedir pra entregar o meu trabalho, vacilão?!
- Se fuuu... - Ícaro deixou a rua sem se importar com a desgraça de Davi, já que ele havia entregado o seu trabalho há séculos. Embora fosse arruaceiro de vez em quando, prezava por boas notas. - Mano do céu! - exclamou em meio a um assobio direcionado a uma garota na calçada, a qual apenas riu, envergonhada.
Entretanto, esse instante de paz durou pouco, uma vez que o rapaz que importunou Samuel dentro do colégio passava também de bicicleta ao seu lado.
Portanto, Ícaro aumentou a intensidade das pisadas nos pedais até alcançar o outro, e assim, simplesmente chutou sua roda traseira, levando o rapaz ao chão em total confusão. Não satisfeito, desceu da sua própria bicicleta, em transe, por fim fechou o punho com tamanha força, que, mais tarde não seriam apenas os nós de seus dedos que o incomodaria, mas também a sua palma.
- Aê... - Desferiu decerto, o seu mais forte soco no rosto do rapaz que ainda não entendia o que se passava. - pedala, arrombado!
Um pouco mais leve, Ícaro se dirigiu calmamente à sua casa, sem saber que aquela cena também foi vista por alguém muito importante para ele.
S E X T A
Sentado todo torto no sofá ao lado de Wellington, seu pai, Ícaro não viu a mãe se aproximar, uma vez que estava muito entretido no celular enquanto jogava conversa fora com uma ex-ficante, que ainda o considerava seu crush. O garoto que naquele instante parou de digitar para coçar o olho direito entre um bocejo - Ícaro queria estar dormindo, porém, seus pais não toleravam preguiça e permitir que ele não fosse às aulas nas sextas-feiras, já era de bom tamanho -, não se julgava bonito. Nem feio. Contudo, aqueles seus olhos dourados encantavam.
Não só os olhos.
- Filho, não estou conseguindo ligar o computador - informou sua mãe.
- Preciso pegar uma receita pro almoço.
Após se afundar ainda mais no estofado, ele fingiu um desmaio.
- Ícaro!
O grito do pai não só o fez acordar do desmaio simulado, como também, a se dirigir até onde estava o computador, na sala de estudos.
Por sorte, o problema foi causado apenas pelo cabo estar fora da tomada, por isso em segundos ele já tinha ligado a máquina e lançado um olhar convencido em direção à mulher à sua frente, a qual agradeceu depois de dizer: "meu bebê é um gênio".
De volta à sala de estar, apanhou o seu smartphone do braço do sofá, jogando-se nele de modo desleixado e ganhando um olhar repreendedor do pai. Ícaro não era mais uma criança para agir como tal. Em seguida, percebendo que a garota ainda não havia lhe respondido, decidiu checar o monte de notificações no grupo da sua turma, pois, desde que acordou, não viu necessidade de as ler, já que nunca se deparava com nada de interessante ali, no entanto, ao pôr os olhos nas ditas mensagens, algo o deixou no mínimo, preocupado.
Em meio a vários emojis chorando de rir, outros vermelhos de raiva, um nome se repetia: Samuel.
Com a coluna totalmente ereta e olhos atentos, Ícaro começou a subir as mensagens na tentativa de entender o que estava acontecendo. Seu pai percebeu de imediato aquela súbita mudança de postura, porém, nada falou. Nisso, ansioso demais para compreender o que lia, o menino optou por perguntar, como quem não queria nada, qual a razão de tudo aquilo, e principalmente, "qual Samuel?", dado que não existia apenas um Samuel no colégio.
A resposta veio no privado, de seu amigo.
"É o moleque da nossa sala. Aquele q só senta do lado da porta, pô...", respondeu, Davi, com um emoji triste. Ele fazia parte daqueles que se encontravam indignados com o ocorrido. "Bora jogar FIFA?", completou, mudando de assunto.
No fundo, Ícaro tinha esperanças de ser outro garoto e aquela confirmação só o fez respirar profundamente.
"Não. Mas o qq tem, ele?"
"Tão falando q foi expulso de casa, o pai botou pra fora depois de ver o cabeludinho se agarrando com outro moleque"
"Deve ser mentira. Esses fdp vivem pegando no pé dele", Ícaro enviou a mensagem desejando realmente isso. Como se seus pensamentos positivos tivessem força para mudar a realidade.
"Acho q é sério, véio. Ele nem apareceu no colégio hj e vc sabe, o moleque nunca falta"
Ícaro não se conteve, largou o celular ao seu lado e com os cotovelos sobre as coxas, cobriu o rosto. Estava aflito. Com medo. Medo do estado em que Samuel se encontrava. Será que bateram nele? Será que ele tem onde ficar? Será que... Seus questionamentos foram interrompidos pela mão de seu pai, a qual aterrissou sobre o seu ombro direito. Ao virar o rosto, achou olhos o estudando com apreensão.
- Tudo bem?
- Não... - Maneou a cabeça em negativa. - Quer dizer, sim. Comigo sim. Só... - Levantou-se. - Já volto.
Sob os pedidos do pai em forma de ordem para que ficasse, e o aviso da mãe sobre o almoço estar quase pronto, ele simplesmente subiu em sua bicicleta, pedalando com urgência em direção à praça não muito longe do colégio. Ícaro já havia flagrado Samuel ali várias vezes desenhando em um dos bancos de madeira. Bem, era o que parecia, já que nunca chegou perto o suficiente para ter certeza. Poderiam ser exercícios, poesia, a planta de um esconderijo secreto, mas a intuição dele dizia que eram desenhos.
A intuição de Ícaro era das boas.
Ao longe, ele parou a bike, esticando bem o pescoço para tentar cobrir o máximo de área possível daquela praça com os olhos e saber se Samuel estava lá, quando para a sua felicidade, no banco quase camuflado pelo tronco de uma das árvores havia alguém deitado.
"Por favor, que seja ele!"
Tomando impulso e voltando a pedalar longe do banco da bicicleta a fim de ganhar mais velocidade, em dois tempos Ícaro já se localizada sobre os paralelepípedos com os olhos cravados naquele ponto escondido. Não foi preciso chegar muito perto para reconhecer a mochila que era feita de travesseiro, o casaco verde e o amontoado de cabelos espalhados sobre a bolsa.
Sorriu apenas por se imaginar afagando aqueles fios indecisos, os quais não sabiam se eram lisos ou ondulados.
Nesse intervalo, preferiu descer da bicicleta, terminando o trajeto a pé ao mesmo tempo em que a levava ao lado do seu corpo, de maneira que ela servisse de escudo entre ele e Samuel. Ícaro até tentava entender aquela timidez que só aparecia quando ele estava perto do dono do número 31 na chamada, enquanto ele ganhara o 13 pela segunda vez, assim como o outro, algo que julgava ser coisa do destino.
- Oi - pigarreou, pegando o menino distraído com as folhas da árvore totalmente desprevenido e assustando-o sem querer. - Foi mal, eu não queria... - E não sabendo o que dizer, optou por suspirar.
Samuel que naquela altura já havia sentado com sua bolsa no colo, quebrou o contato visual. Ele também se encontrava envergonhado, mas por um motivo diferente ao de Ícaro.
"Agora esse embuste sabe que virei um mendigo", constatou.
- Quê que cê quer? - quis saber de um jeito rude, ainda fitando o zíper da mochila.
Mais um suspiro e Ícaro deixou a bicicleta no chão, sentando-se em seguida ao lado do garoto impaciente. Samuca havia brigado com o pai no início da noite e desde então, passou aquelas últimas horas na rua. Por ter saído voado para não apanhar, só teve tempo de pegar sua bolsa escolar e nela, não possuía dinheiro algum. Logo, estava morrendo de fome, fato que despertava um certo mau-humor no menino.
- Você... - limpou a garganta mais uma vez. Porra, como é difícil falar com ele. - Fiquei sabendo que...
- Ficou sabendo o caralho! - o cortou, encarando-o com os olhos semicerrados. - Fizeram fofoca porque vocês não sabem fazer outra coisa a não ser falar da minha vida! - De pé, pendurou a bolsa nas costas, puxou o capuz do casaco e começou a se afastar com rapidez.
Sem pensar duas vezes, Ícaro pegou a bicicleta, acelerando o passo para alcançar o irritadinho, forma como o chamou em pensamento.
- Samuel, espera.
- Me-me de-deixa em paz! - gaguejou por uma razão: estava chorando.
"Que merda!", Ícaro notou.
Por isso, tornou a deixar o seu meio de transporte no chão, dessa vez sem nenhum cuidado, para enfim, se colocar na frente daquele com olhos vermelhos e rosto molhado.
- Você dormiu na praça? - a resposta para essa pergunta lhe informaria se Samuel tinha ou não um lugar para ficar.
- Não é da sua conta! - Passou a manga do casaco nos olhos. - Agora saia da minha frente.
Entretanto, o mais alto não saiu.
Em vez disso, o segurou pelo cotovelo ao vê-lo desviar de si para passar. Samuel por sua vez encarou aquela mão, mas não fez nenhum movimento para se livrar dela, permanecendo então, de cabeça baixa, em silêncio.
- Porque, tipo... se não tiver onde dormir pode ficar lá em casa. O meu irmão tá morando com a namorada, tem uma cama vaga no meu quarto.
Após erguer os olhos desconfiados, Samuel se manteve fitando aquelas íris douradas por um instante. E não era para menos. A troco de quê alguém que nem sequer lhe dirigia a palavra no colégio, de repente resolveu o ajudar? Deve estar querendo me zoar, pensou.
- Vá procurar outro pra fazer piada! - por fim se livrou daquela mão, porém, internamente gostou do toque, mesmo não sabendo o motivo.
- E por que eu faria piada contigo? Tá doido? - perguntou, parado e apenas encarando as costas de Samuel se distanciando.
- Sei lá, talvez porque vocês são uns embustes que vivem em função do que eu faço?! - O choro já havia cessado, só faltava a irritação, no entanto essa, só com comida.
Ícaro também estava se aborrecendo, mas não por causa da resistência do outro, e sim por estar sendo acusado injustamente.
- Para de me colocar nesse pacote, eu nunca te tratei mal, porra!
Aquele berro foi o suficiente para fazer Samuca interromper os passos e ali, se manter reflexivo, dando-se conta de que realmente, Ícaro, assim como Davi, era um dos poucos que não o aborrecia com piadas homofóbicas e pequenas agressões, embora não socializasse consigo. Portanto, virou-se, com um semblante menos carrancudo.
- Tem comida, lá?
Não conseguindo conter o tímido sorriso, Ícaro correu até a bicicleta, levantou-a e com pressa, montou nela, eliminando a distância entre ele e Samuel.
Parou ao seu lado.
- O almoço só tá esperando a gente. - Soltou um dos punhos do guidão para abrir passagem. - Sobe, aí, Cabeludinho.
Samuel tirou a mochila das costas, colocando-a para frente antes de sentar-se sobre o cano da bicicleta. Apesar de não gostar muito daquele apelido, pela primeira vez não se incomodou com ele, pois, sentiu que não veio recheado de chacota.
Continua...
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